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Da (in)admissibilidade da prova ilícita no processo civil

Da (in)admissibilidade da prova ilícita no processo civil

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O direito à intimidade é um direito absoluto ou se pode ser relativizado no processo cível, a fim de permitir a admissibilidade de provas adquiridas por meios ilícitos?

Resumo: O direito à intimidade é um direito consagrado na Constituição brasileira de 1988. Questiona-se, porém, se trata-se de um direito absoluto ou se pode ser relativizado no processo cível, a fim de permitir a admissibilidade de provas adquiridas por meios ilícitos. O objetivo deste trabalho analisar, dentro de uma visão neoconstitucional do processo, se é possível admitir-se provas ilícitas no processo civil.

Palavras-chave: Prova, prova ilícita, direito à intimidade, processo civil, neoprocessualismo, neoconstitucionalismo.


Introdução

As influências por que passa a sociedade sempre desencadearam reflexos no Direito. As consagradas dimensões[1] dos direitos fundamentais, por exemplo, podem tranqüilamente ser objeto de estudo à luz do momento histórico em que ocorreram.

Atualmente, fala-se no neoconstitucionalismo, que seria uma reinterpretação da norma e do Direito à luz dos valores trazidos pela Constituição. Os princípios constitucionais, segundo esse novo Direito Constitucional, não seriam mera carta de recomendações, mas teriam força normativa, vinculando assim todo o ordenamento jurídico. O Direito não é mais sinônimo de lei, pois deve ser interpretadoconforme os princípios e valores consagrados na Carta Magna.

Este trabalho propõe uma revisita ao direito fundamental da vedação das provas ilícitas no processo civil a fim de, em uma ótica neoconstitucionalista, verificar as hipóteses desua inadimissibilidade frente ao direito à intimidade. Para tanto, será confrontada a jurisprudência majoritária do Superior Tribunal de Justiça (STJ) com o que vem dizendo a doutrina mais moderna (CAMBI, 2007) acerca do assunto. Ao final, com base nos reflexos do neoconstitucionalismo sobre o processo, será proposta uma mitigação à vedação absoluta às provas ilícitas no processo civil, hoje posição majoritária na jurisprudência do STJ.


1. Generalidades sobre a prova no processo civil

Pode-se, de forma genérica, afirmar que prova é tudo aquilo que conduz à demonstração das alegações que se faz. Nesse sentido, conforme o Alexandre Freitas Câmara “denomina-se prova a todo elemento que contribui para a formação da convicção do juiz a respeito da existência de determinado fato (Câmara, 2004, 393).

A palavra prova, em verdade, pode ser utilizada em diversos sentidos, a depender do contexto em que é tratada: prova como fonte, prova como meio utilizado ou prova no sentido subjetivo, segundo a análise do julgador.

A prova como fonte significa tudo de onde se possa extrair a demonstração daquilo que se alega. Assim, são meios de prova: as pessoas, as coisas e os fenômenos.

Prova como meio é exatamente aquilo que introduz no processo a demonstração pretendida. É a materialização das fontes, conforme permissivo legal. São exemplos de meios de prova: o testemunho, a perícia e a inspeção judicial.

Por fim, quando o termo é utilizado para se referir ao convencimento do julgador acerca das alegações realizadas e dos meios de prova utilizados, fala-se em prova em sentido subjetivo.

Importante destacar que, no Brasil, quanto aos meios de prova, vige o princípio da liberdade dos meios de prova. Às partes no processo, é permitido, ao menos a priori, utilizar-se de quaisquer meios de prova, ainda que não os previstos em lei. É esse o sentido, aliás, que dispõe o CPC, no art. 332:

Art. 332. Todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, sãohábeis para provar a verdade dos fatos, em que se funda a ação ou a defesa.

Assim, não há que se falar em tipicidade estrita aos meios de prova, eis que os meios previamente definidos em lei constituem rol meramente exemplificativo, dispondo as partes, por expressa previsão legal, de todos os meios de prova possíveis, desde moralmente legítimos, nos termos do art. 332 do CPC.


2. Da vedação constitucional à prova ilícita

O princípio à liberdade dos meios de prova no processo civil encontra-se limitado não somente pela própria lei, entretanto. A Carta Magna, ao dispor dos direitos fundamentais, expressamente, no inciso LVI do art. 5º, traz, como garantia decorrente do devido processo legal, a vedação às provas obtidas por meio ilícito. Tais meios de prova – como, e.g., a confissão obtida sob tortura – se utilizados no processo, gerarão como consequência a inexistência jurídica da prova através dela carreada aos autos (Câmara, 2004, 406).

Dinamarco traz definição irretocável sobre provas ilícitas, merecendo destaque às suas palavas, ipsi litteris:

Provas ilícitas são as demonstrações de fatos obtidas por modos contrários ao direito, quer no tocante às fontes de prova, quer quanto aos meios probatórios. A prova será ilícita – ou seja, antijurídica e portanto ineficaz a demonstração feita – quando o acesso à fonte probatória tiver sido obtido de modo ilegal ou quando a utilização da fonte se fizer por modos ilegais. Ilicitude da prova, portanto, é ilicitude na obtenção das fontes ou ilicitude na aplicação dos meios. No sistema do direito probatório, o veto às provas ilícitas constitui limitação ao direito à prova. No plano constitucional, ele é instrumento democrático de resguardo à liberdade e à intimidade das pessoas contra atos arbitrários ou maliciosos. (DINAMARCO, 2002, 50-51)

Pode-se afirmar, portanto, que o meio de prova é amplo, desde que não viole a moral e o direito. São exemplo de provas ilícitas (DIDIER, 2008, 38):

A confissão obtida sob tortura, o depoimento de testemunha sob coação moral, a interceptação telefônica clandestina, a obtenção de prova documental mediante furto, a obtenção de prova mediante invasão de domicílio etc. São também exemplos de provas ilícitas aquela colhida sem observância da participação em contraditório, o documento material ou ideologicamente falso, ou qualquer outra prova que se mostre em desconformidade com o ordenamento jurídico, pouco importando a natureza jurídica da norma violada.

Busca-se, portanto, assegurar a prevalência de direitos fundamentais frente à liberdade absoluta aos meios de prova. E não poderia ser diferente, pois de nada adiantaria a Carta Magna eleger valores e blindá-los sob a rubrica de direitos fundamentais, se, por via transversa, possibilitasse ao Estado ou a qualquer indivíduo a sua devassa por meio de pretensão legitimada na suposta busca pela verdade real.


3. Do Neoconstitucionalismo ao Neoprocessualismo: o direito à produção de provas como um consectário do devido processo legal

Após à 2ª Guerra Mundial, passou-se a questionar a validade do direito pautado exclusivamente nas leis de um país, a fim de se verificar a necessária parametrização do Direito segundo valores humanos, estes a razão maior de ser do regramento jurídico.

Fala-se, atualmente, no estudo do Direito Constitucional, em uma revisita aos valores morais, não simplesmente com vistas a ideais iluministas, mas sim partindo de outras premissas teóricas, pautadas em uma ordem jurídica emanada dos princípios e direitos fundamentais consagrados na Constituição. Surge o neoconstitucionalismo.

Como características de maior relevância do neoconstitucionalismo, podem ser destacadas (BARROSO, 2005): (i) o reconhecimento de força normativa à Constituição; (ii) a expansão da jurisdição constitucional; (iii) o desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional.

Assim, toda norma consagrada na Constituição passa a ter relevância de norma de superior hierarquia frente às demais normas do país, e, portanto, qualquer lei há de ser interpretada sempre segundo os valores, direitos e garantias consagrados na Carta Magna.

Por conseguinte, o princípio deixou de ter mera aplicação subsidiária frente a lacunas legislativas para tomar a relevante posição dentro do ordenamento jurídico que é destacada às normas de fundamentação para a legislação infraconstitucional. Não há, pois, que se falar em duas esferas do direito – pública e um privada –, mas em uma só ciência, um só sistema, de caráter publicista, que haverá de irradiar seus valores tanto na relação entre Estado e particular quanto entre particulares.

Como não se poderia esperar diversamente, o processo também passa a ter reflexos dessa nova onda constitucionalista. Fala-se, atualmente o neoprocessualismo, que seria o resultante da incidência das normas constitucionais sobre o regramento processual.

O processo, então, passa a ter nova dinâmica, cuja finalidade maior é realizar a garantia de acesso ao justiça, erigida à condição de direito fundamental, nos termos do art. 5º, XXXV, da Constituição da República. Nesse sentido, veja-se a real amplitude conferida a esta garantia, nos termos em que menciona Eduardo Cambi (CAMBI, 2007, 157):

Assim, a designação acesso à justiça nãose limita apenas à mera admissão ao processo ou à possibilidade de ingresso em juízo, mas, ao contrário, essa expressão deve ser interpretada extensivamente, compreendendo a noção ampla do acesso à ordem jurídica justa, que abrange: i) o ingresso em juízo; ii) a observância das garantias compreendidas na cláusula do devido processo legal; iii) a participação dialética na formação do convencimento do juiz, que irá julgar a causa (efetividade do contraditório); iv) a adequada e tempestiva análise, pelo juiz, natural e imparcial, das questões discutidas no processo (decisão justa e motivada); v) a construção de técnicas processuais adequadas à tutela dosdireitos materiais (instrumentalidade do processo e efetividade dos direitos).

O processo passa a ser interpretado à luz dos direitos fundamentais, como forma de concretizar tais direitos, seja no aspecto negativo, evitando a ocorrência de abusos frente aos direitos do indivíduo, seja no aspecto positivo, trazendo garantias mínimas ao devido processo, como meio de realização da justiça.

Uma das consequências lógicas desta nova ordem constitucional é que o processo há de ser adequado para tutelar o direito em análise, sob pena de não se ter um processo devido. O processo, mais que cumprir meros formalismos, há de ser apto a influenciar na decisão do magistrado, sob pena de se ter mera encenação, mero cumprimento de formalidades.

O processo devido, portanto, há que ser analisado não somente no seu aspecto formal ou procedimental (procedural dueprocessoflaw), mas ainda no seu aspecto material ou substantivo (procedural dueprocessoflaw), conforme esclarece Dirley da Cunha Júnior:

O devido processo legal material ou substantivo (substantive dueprocesso f law), de desenvolvimento mais recente, sobretudo na doutrina e jurisprudência norte-americana, impõe a justiça e razoabilidade das decisões restritivas a direitos. Vale dizer, parte do pressuposto de que não basta garantia da regular instauração formal do processo para assegurar direitos e liberdades fundamentais, pois vê como indispensável que as decisões a serem tomadas nesse processo primem pelo sentimento de justiça, de equilíbrio, de adequação, de necessidade e proporcionalidade em face do fim que se deseja proteger.

A fim de realizar este aspecto do processo, certamente, hão que se concretizar, na realização do processo, diversasgarantias e direitos fundamentais, dentre os quais, pode-se destacar o direito fundamental à prova, como consectário do devido processo legal.

A prova, conforme já exposto, é a forma de que dispõem as partes para demonstrar uma alegação feita em juízo. Portanto, inócua seria a garantia do contraditório, sem que se conferissem meios de influenciar o convencimento do juiz. O direito fundamental às provas assegurado às partes no processo é evidente manifestação do devido processo, em seu aspecto substantivo. Nesse sentido, veja-se o que foi afirmado por Paulo Henrique dos Santos Lucon (LUCON, 2008, 23):

O devido processo legal substancial impõe ao julgador que seja oferecida igualdade de oportunidades processuais. Essa igualdade, no campo do direito à prova, revela-se na efetiva possibilidade de participação aos litigantes e significa, para o julgador, o dever de fazer observar a garantia do contraditório na exata medida em que autoriza às partes a encartar aos autos todos os elementos de que dispõe para atuar sobre seu convencimento.

Assim, resta por inegável a qualidade do direito à prova de direito fundamental, como corolário do devido processo substancial, e não somente mera regra processual. Toda e qualquer regra de processo, portanto, há que ser interpretada no sentido de realizar o direito fundamental à prova, sob pena de se ter por inconstitucional, eis que não é possível a convivência de lei infraconstitucional que negue vigência a direito assegurado pela Carta Magna.


4. O tratamento dado pela Constituição Federal à prova ilícita e a visão do Superior Tribunal de Justiça quanto à sua admissibilidade no processo civil

A Constituição Federal traz, no art. 5º, XII, o direito à inviolabilidade:

Art. 5ºTodos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

XII - é inviolável sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;

Fica claro, portanto, que, apenas para fins penais, é admitido, como exceção, a possibilidade de quebra no sigilo assegurado pela Carta Magna. Tal exceção, entretanto, nos termos do dispositivo constitucional acima, restringir-se-á apenas à comunicação telefônica, e apenas para fins de investigação criminal, estando protegido portanto o sigilo da correspondência, das comunicações telegráficas e de dados.

Questiona-se, entretanto, na doutrina e jurisprudência se tal vedação explícita trazida na Constituição seria absoluta ou se admitiria outras exceções.

Veja-se como exemplo a decisão dada pelo STJ, no RMS 5.352/GO:

I – A impetrante/recorrente tinha marido, duas filhas menores e um amante médico. Quando o esposo viajava, para facilitar seu relacionamento espúrio, ela ministrava ‘Lexotan’ às meninas. O marido, suspeitoso, gravou conversa telefônica entre sua mulher e o amante. A esposa foi penalmente denunciada (tóxico). Ajuizou, então, ação de mandado de segurança, instando no desentranhamento da decodificação magnética. II – Embora esta Turma já se tenha manifestado pela relatividade do inciso XII (última parte) do art. 5º da CF (HC 3.982/RJ, rel. Min. Adhemar Maciel, DJU 26.2.96, no caso concreto o marido não poderia ter gravado a conversa ao arrepio de seu cônjuge. Ainda que impulsionado por motivo relevante, acabou por violar a intimidade individual da esposa, direito garantido constitucionalmente (art. 5º, X).

Analisando a decisão supra, verifica-se que o STJ, embora não se furtando de um raciocínio à luz do critério da proporcionalidade, onde sopesou valores assegurados constitucionalmente, terminou por entender que, no caso concreto em tela, há de prevalecer o direito à intimidade. Trata-se de posição quase que pacífica na jurisprudência do Tribunal da Cidadania, para quem o direito à intimidade, a priori, é sempre mais valioso que qualquer direito a prova ilícita.

Tal raciocínio (a priori) estaria condizente, porém, com a visão neoconstitucionalista do processo? Seria justo e aceitável que o Judiciário simplesmente eleja como preponderantes vedações constitucionais, quando se discutem, de outro lado, direitos também fundamentais, como direito à vida, direito do menor e direito à honra?

E mais. A vedação à violação à intimidade deve sempre prevalecer no processo civil? Caso negativo, em que casos se admite a exceção?

Imagine-se que, ao invés de conversas telefônicas, houvesse o marido tido acesso ao ­e-mail que a esposa, por hipótese, houvesse enviado ao amante. A correspondência conteria o mesmo conteúdo que a ligação telefônica interceptada do caso acima. Neste caso, seria possível ao juiz valorar o e-mail como prova em eventual processo civil em que se discutisse a destituição do poder familiar?

As mesmas indagações poderiam ser feitas para outras provas que possam ser registradas com o uso da informática, como a hipótese de registros de conversa em programas de bate-papo ou arquivos eletrônicos guardados em computador. Verifica-se, portanto, que a discussão volta aos mesmos questionamentos de antes quanto à admissibilidade da prova ilícita no processo civil, pois, em tais hipóteses, sempre haverá, pelo menos, um conflito aparente entre direitos fundamentais: de um lado, o direito à intimidade, da pessoa que teve sua conversa interceptada, sem seu conhecimento e, de outro, o suposto direito alegado do interceptador, calcado no direito fundamental à produção de provas.


5.A prova ilícita à luz doNeoprocessualismo

É cediço conforme afirma Eduardo Cambi, que “a Constituição brasileira de 1988, ao contemplar amplos direitos e garantias fundamentais, tornou constitucionalos mais importantes fundamentos dos direitos materiais e processuais (fenômeno da constitucionalização do direito infraconsticiocional)” (CAMBI, 2007, 155).

Deste modo, a construção do argumento jurídico deve ter sempre como fundamento de validade a Constituição, pois, de outro modo, corre-se o risco de se chegar a um raciocínio legal, porém conflitante com os valores consagrados no texto constitucional.

É fato que o Código de Processo Civil, ao tratar dos meios de prova admissíveis no Direito, dispõe, em seu art. 332, a admissibilidade de todos os meios legais e moralmente legítimos. Há que se adequar tal regra entretanto ao já citado art. 5º, XII da Carta Magna, posto que trazida uma vedação que servirá a todos os ramos do Direito.

Uma análise superficial e descompromissada com a nova ordem constitucional poderia terminar aqui. Entretanto, conforme já se verificou no caso em concreto supra, há situações em que fica evidenciado o conflito (ainda que aparente) do direito fundamental à intimidade com outros direitos fundamentais.

A doutrina aponta diversas correntes para a solução da questão posta:

Há, nesses casos, posições as mais variadas: há quem não admita, em hipótese alguma, a prova ilícita; há quem a admita sempre; há quem a admita apenas no processo penal, e desde que em favor do acusado; e há, por fim, quem defenda a aplicação do princípio da proporcionalidade para a solução do conflito. (DIDIER, 2008, 38)

Prossegue, Fredier Didier, na análise das soluções possíveis indicadas, posicionando-se acerca de sua opinião:

Esta última é a posição que prevalece e, sem dúvida, parece-nos a mais correta. Quando se está diante de um conflito de normas jusfundamentais (direito à prova versus vedação da prova ilícita), a solução deve ser dada sempre casuisticamente, à luz da ponderação concreta dos interesses em jogo, isto é, à luz do princípio da proporcionalidade. Os que admitem sempre a prova ilícita, ou nào a admitem nunca, pecam por considerar de modo absoluto e apriorístico os direitos fundamentais em jogo. Aqueles que entendem que a prova ilícita somente é admissível excepcionalmente, e apenas no processo penal, pecam por dois motivos: primeiro, por entender que sempre, no processo penal, há discussão em torno do direito à liberdade, o que é falso, pois nem todas as penas envolvem a privação da liberdade; segundo, por entender que nenhum outro direito fundamental, a não ser o direito à liberdade, pode ser mais relevante que o direito fundamental à vedação da prova ilícita, o que também é indefensável à luz da teoria dos direitos fundamentais.

Não basta, porém, que seja feito um juízo de proporcionalidade à luz do caso concreto. Prossegue o renomado processualista baiano na análise da admissibilidade da prova ilícita, trazendo critérios para seja aceita no processo:

A admissibilidade da prova ilícita no processo deve ser vista, porém, como algo excepcional. Para que seja admitida, é necessário que sejam atendidos alguns critérios: (i) imprescindibilidade: somente pode ser aceita quando se verificar, no caso concreto, que não havia outro modo de se demonstrar a alegação de fato objeto da prova ilícita, ou ainda quando o outro modo existente se mostrar extremamente gravoso/custoso para a parte, a ponto de inviabilizar, na prática, o seu direito à prova; (ii) proporcionalidade: o bem da vida objeto de tutela pela prova ilícita deve mostrar-se, no caso concreto, mais digno de proteção que o bem da vida violado pela ilicitude da prova; (iii) punibilidade: se a conduta da parte que se vale da prova ilícita é antijurídica/ilícita, o juiz deve tomar as providências necessárias para que seja ela punida nos termos da lei de regência (penal, administrativa, civil etc.); (iv) utilização pro reo: no processo penal, e apenas nele, tem-se entendido que a prova ilícita somente pode ser aceita se for para beneficiar o réu/acusado, jamais para prejudica-lo.

Busca-se, com isso, verificar, à luz do caso concreto, e não de acordo com um raciocínio a priori, qual direito deve preponderar, não se vedando, de maneira absoluta, a possibilidade de admitir-se no processo uma prova ilícita.

Mas por que motivo ainda vige o raciocínio a priori na jurisprudência do STJ, se o critério da ponderação de interesses é um critério bastante consolidado na interpretação constitucional?

Cabe aqui uma breve digressão histórica acerca dos direitos fundamentais de primeira geração, antes de prosseguirmos com a análise.

Os direitos fundamentais de primeira geração (ou primeira dimensão, como preferem alguns) defendem sobretudo o direito à liberdade do cidadão. Nos dizeres de Paulo Bonavides, “traduzem-se como faculdades ou atributos da pessoa e ostentam uma subjetividade que é seu traço mais característico; enfim, são direitos de resistência ou de oposição perante o Estado” (BONAVIDES, 2004, 563-564). Impõem, portanto, um dever de abstenção do Estado, como forma de garantir aos indivíduos o pleno exercício de suas liberdades.

O direito à intimidade faz parte dos direitos de primeira geração. É óbvio que não se presta unicamente para proteger o indivíduo de abusos estatais, mas também vincula o particular, que deverá respeitar os direitos à intimidade de outrem, conforme, aliás, dispõe a doutrina acerca da eficácia horizontal dos direitos fundamentais (SARMENTO, 2008).

Ao que parece, a jurisprudência mantém-se ainda presa a dogmas históricos, dado o ainda recente episódio em que o nosso país esteve imerso em regime de ditadura militar, onde foram subtraídos dos cidadãos diversos direitos fundamentais. Talvez este seja o grande motivo que ainda freia alguns avanços em nossa jurisprudência, sobretudo em nível de tribunais superiores, que resistem a mudanças que possam soar como um risco à democracia conquistada a duras penas.

Ora, invocar o Direito à intimidade com o fim de requerer ao magistrado um dever de abstenção à prática de uma conduta vedada pela Constituição é sem dúvida um direito líquido e certo de cada um, sempre que estiver em jogo a individualidade e a intimidade de cada um. Tal direito, porém, há de ser temperado à luz da razoabilidade para, num juízo de proporcionalidade, verificar-se se prepondera diante de outros direitos fundamentais que venham com o mesmo conflitar.

Nesse sentido, é salutar uma frase já consagrada no estudo dos direitos fundamentais, de autoria do eminente constitucionalista Alexandre de Moraes, segundo o qual os direitos fundamentais “não podem ser utilizados como verdadeiro escudo protetivo da prática de atividades ilícitas, nem tampouco como argumento para afastamento ou diminuição da responsabilidade civil ou penal por atos criminosos, sob pena de total desrespeito a um verdadeiro Estado de Direito” (MORAES, 1999, 57).

Trata-se, aliás, não só de um confronto de direitos individuais de particulares. Fala-se hoje em processo não somente com uma conotação privatística, como “um mecanismo de exclusiva utilização individual para se tornar um meio àdisposição do Estado para a realização da justiça, que é um valor eminentemente social” (MOREIRA, 1989, 26 apudCAMBI, 2007, 157). Admite-se portanto, e sem sombra de dúvida, um interesse coletivo que se impõe sobre o individual, conforme destacado por CAMBI (2007, 158), citando DINAMARCO (1996, 51):

A preponderância da ordem pública sobre os interesses privados em conflito manifesta-se em vários pontos da dogmática processual, tais como, por exemplo, na garantia constitucional de inafastabilidade da jurisdição, na garantia do juiz natural, no impulso oficial, no conhecimento de ofício (objeções) e na autoridade do juiz, na liberdade de valoração das provas, no dever de fundamentação das decisões judiciais, nas nulidades absolutas, nas indisponibilidades, no contraditório efetivo e equilibrado, na ampla defesa, no dever de veracidade e de lealdade, na repulsa à litigância de má-fé etc”

Desse modo, prossegue CAMBI, os fins públicos buscados pelo processo, como instrumento democrático do poder jurisdicional, transcendem os interesses individuais das partes na solução do litígio. Esta visão publicística, imposta pela constitucionalização dos direitos e garantias processuais (neoprocessualismo), não se esgota na sujeição das partes ao processo.


Considerações Finais

Conforme o exposto, verifica-se que, não obstante permaneça vigente o direito à intimidade, direito fundamental constitucional, tal direito, assim como qualquer outro direito fundamental, merece ser temperado, sempre que, no caso concreto, vier a conflitar com outros direitos fundamentais e, em um juízo de ponderação, aquele não seja o que prepondere. Tal raciocínio, longe de ser atentatório à democracia e às liberdades individuais, mostra-se condizente com o novo processo civil que se firma, atento aos valores constitucionais e à supremacia do interesse coletivo sobre o privado.


Referências

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2008.

CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil, v. I. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.

CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e Neoprocessualismo. In: DIDIER JR., FREDIE (ORG). Leituras Complementares de Processo Civil. Salvador: JusPODIVM, 2008.

DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno e OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil, v. 2. Salvador: JusPODIVM, 2008.

DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. apudCAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e Neoprocessualismo. In: DIDIER JR., FREDIE (ORG). Leituras Complementares de Processo Civil. Salvador: JusPODIVM, 2008.

DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil, v. III. São Paulo: Malheiros Editores, 2002.

LUCON, Paulo Henrique dos Santos. Devido Processo Legal Substancial. In: DIDIER JR., FREDIE (ORG). Leituras Complementares de Processo Civil. Salvador: JusPODIVM, 2008.

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 1999.

MOREIRA, José Carlos Barbosa. Dimensiones socialesdelproceso civil. In: Temas de direito processual. 4ª sérieapudCAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e Neoprocessualismo. In: DIDIER JR., FREDIE (ORG). Leituras Complementares de Processo Civil. Salvador: JusPODIVM, 2008.

SARMENTO, Daniel. A Vinculação dos Particulares aos Direitos Fundamentais no Direito Comparado e no Brasil. In: Temas de direito processual. 4ª sérieapudCAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e Neoprocessualismo. In: DIDIER JR., FREDIE (ORG). Leituras Complementares de Processo Civil. Salvador: JusPODIVM, 2008.


Referências na Internet

BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. Texto publicado na internet, no site http://jus.com.br/revista/texto/7547/neoconstitucionalismo-e-constitucionalizacao-do-direito, em 2005. Acessado em 15-out-2011.


Notas

[1] Os direitos de primeira geração (ou dimensão) trouxeram as liberdades individuais como uma forma de assegurar ao indivíduo proteções contra o Estado autoritário. Os direitos de segunda geração trouxeram direitos econômicos e sociais, e resultaram do período conhecido como Revolução Industrial. Por fim, os direitos de terceira geração, característicos da segunda metade do século XX, visam a assegurar direitos coletivos, tais como: meio ambiente, patrimônio público, moralidade administrativa e direito nas relações de consumo.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS NETO, Arlindo Gonçalves dos. Da (in)admissibilidade da prova ilícita no processo civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3615, 25 maio 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24528. Acesso em: 24 abr. 2024.