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Os limites na revisão constitucional em Moçambique

Os limites na revisão constitucional em Moçambique

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Uma revisão constitucional deve ser delimitada no seu objecto, ficar restrita ao essencial. Qualquer texto jurídico pode ser aperfeiçoado. Mas um país não pode mudar constantemente as normas constitucionais, porque isso cria uma grande instabilidade política.

“Se a liberdade inclui desistir da liberdade, então arriscamo-nos a nunca recuperar a Liberdade.”

(autor desconhecido)

Sumário: 1. Introdução. 1.1. Considerações gerais. 2. Conceitualização da Constituição. 3. Poder Constituinte Originário e Derivado. 3.1 Os Limites do Poder Constituinte Derivado. 3.2. Limites Materiais Expressos: Próprios e Impróprios. 3.3. Preterição de Limites e Transição Constitucional. 4. A Evolução dos Limites de Revisão no Constitucionalismo Moçambicano. 5. Conclusão. 6. Bibliografia.


1. Introdução

1.1. Considerações gerais

A Comissão Ad Hoc para a Revisão da Constituição da República, criada pela Resolução n.º 45/2010, de 28 de Dezembro, já iniciou as suas actividades, mas não é ainda conhecido o conteúdo das matérias a rever. A Bancada do partido proponente (Frelimo) ainda não apresentou o objecto da Revisão, tendo diferido esta apresentação para o mês de Outubro, na IV Sessão da Assembleia da República, altura em que as bancadas parlamentares serão chamadas para a apresentação das suas propostas.

A Constituição de 1990, que introduziu o Estado de Direito Democrático, foi adoptada pela Assembleia Popular, ainda num sistema de partido único, em que a FRELIMO dirigia o Estado por definição constitucional. Neste aspecto importante não há diferença substancial em relação a Constituição de 1975. Diferentemente das duas anteriores Constituições, a Constituição de 2004 foi adoptada pela Assembleia da República e resulta da implementação do Estado de Direito introduzido pela Constituição de 1990.

Partindo da premissa de que a última Constituição é relativamente nova, revestindo-se de importância histórica e política sem igual na história recente de Moçambique, que razões levam o partido no poder a fazer desencadear um processo de revisão transcorridos apenas seis anos desde a sua adopção?

Tanto a comunidade política, como a civil, se têm mostrado apreensivos sobre as matérias a reformar. Na prossecução desta apresentação vamos, a título ilustrativo, reter quatro situações que nos parecem mais relevantes e sobre elas discorrer.

Basta apreciar o que vem sendo discutido nos jornais nacionais. Durante algum tempo especulou-se sobre uma presumível intenção do Presidente Armando Emílio Guebuza querer candidatar-se a um terceiro mandato[1]. Nesta perspectiva tem se noticiado que, usando a maioria de que dispõe no Parlamento, a Frelimo irá alterar a Constituição, removendo o limite máximo dos dois mandatos ora impostos ao Presidente da República.

Uma segunda preocupação prende-se com a ideia veiculada de, em definitivo, pretender a Frelimo o retorno ao monopartidarismo. Para tal, alerta a Chefe da Bancada parlamentar da Renamo na Assembleia da República que, com a Revisão Constitucional, o grande objectivo da Frelimo é tão-somente acabar com a oposição em Moçambique, retornando-se assim aos tempos de partido único([2]).

Outra inquietação é a apontada pelo Delegado Político da Renamo na Província de Sofala para quem “a Revisão Constitucional visa reforçar a hegemonia machangana no poder do Estado”, contribuindo assim para a positivação da descriminação dos cidadãos em razão da origem étnica([3]).

Finalmente há quem alude a mudança de regime político do Presidencialismo para o Semi-presidencialismo([4]).

Em suma, grande parte das preocupações suscitadas em torno da presente Revisão Constitucional assentam no ponto de a Frelimo, entanto que proponente, mercê da maioria de que dispõe na Assembleia da República vir a alterar a Constituição a seu bel-prazer, visto que a oposição parlamentar não está em condições de constituir um eficaz contrapeso.

Neste artigo procuramos aprofundar acerca dos limites: pode-se admitir a existência de limites à reforma constitucional? Que limites seriam esses? Como tais limites actuam efectivamente na Constituição? Essas são apenas algumas das indagações que serão desenvolvidas.

Relativamente as questões de ilustração não pretende o autor dar respostas nestas linhas. Espera que, finda a apresentação teórica do tema, sejam todos os participantes capazes de ajuizar sobre os limites da revisão, subsumindo as referidas questões no quadro jurídico-constitucional a rever.


2. Conceitualização da Constituição

Sendo a Constituição a base socio-cultural expressa pelo sentido de compromisso colectivo mantido durante séculos de existência dos povos e em cuja complexidade assenta a identidade nacional dos moçambicanos, a Lei Constitucional surge como a forma escrita ou legal deste compromisso assumido desde os nossos ancestrais e construído com múltiplos sacrifícios entre guerras e mortes, muitas das quais com marcas profundas na alma de cada nacional.

Embora o movimento constitucionalista universal seja tributário da revolução burguesa que projectou a ideia do pacto social escrito dos povos com o derrube do absolutismo simbolicamente transparente no despotismo exercido pelo Rei Luís XIV e celebrizado com a máxima “L´Etat cest moi!”, a ideia de constituição é tão antiga quanto a existência das primeiras sociedades humanas organizadas. A Constituição é difusa comportando valores maleáveis às circunstâncias e exigências históricas dos povos no seu processo evolutivo reflectindo por fim o seu inconsciente político colectivo. É a dimensão abstracta dos laços fundamentais ou a matriz, se quisermos, das relações de convivência perene que se tornam concretas com a Lei Constitucional. A Lei Constitucional é assim o documento escrito que reflecte os princípios unanimemente escolhidos pelo povo do manancial de valores incorporados na Constituição. A Lei Constitucional é a dimensão jurídica da Constituição enquanto dimensão política do compromisso de coexistência pacífica e progressiva dos povos num mesmo espaço territorial, embora o legislador constituinte prefira a terminologia Constituição da República.


3. Poder Constituinte Originário e Derivado

Preliminarmente, cabe, aqui, uma breve definição de poder constituinte originário e poder constituinte derivado.

O poder constituinte originário, igualmente intitulado de próprio, diz respeito ao órgão legislativo incondicionado, possuidor de uma autoridade política máxima, podendo, por sua vez, gerar uma nova Constituição, no caso de um Estado neófito, bem como a permuta de uma Constituição por outra. O poder constituinte derivado também designado de impróprio ou instituído é aquele que é fundado e previsto no poder constituinte originário, exercendo a função de agente modificador ou complementar de Constituição.

O poder originário é temporário, pertence a uma assembleia eleita com a finalidade de elaborar a Constituição, deixando de existir quando cumprida a sua função. O poder derivado é um poder latente, que pode se manifestar a qualquer momento, desde que cumpridos os requisitos formais e observados os seus limites.

Isto posto, passemos ao confronto das características do poder constituinte originário com o derivado acerca dos aspectos da originalidade, limitação e condicionalidade.

Quanto à originalidade, o poder originário é inicial ou original, porquanto todos os poderes dele derivam. É um poder supra legem, ou seja, todos os poderes constituídos se submetem a ele, visto que cabe a esse a função política e extrajurídica de criar uma Constituição, que é a égide maior da política, da sociologia e da ordem jurídica de um Estado. O poder derivado é posterior, pois provém do poder constituinte originário “implica a existência prévia de uma organização constitucional da qual ele legitimamente emana para o desempenho da sua actividade”. É um a posteriori em relação a Constituição.

Quanto à limitação, o poder originário é ilimitado e omnipotente dentro de um ordenamento jurídico positivo, não estando limitado e sujeito a uma Constituição. O poder constituinte derivado é limitado, porque está subordinado ao originário, sendo por ele limitado. No que tange a este aspecto, diz-se: “o poder constituinte actua sempre atado ao direito, na moldura de um ordenamento jurídico, ao contrário daquele poder constituinte que nasce das Revoluções, Golpes de Estado e das crises políticas profundas que acometem os povos da mesma maneira que as enfermidades os indivíduos”.

Quanto à condicionalidade, o poder originário é incondicional, posto que não há regras ou formas prefixadas para sua manifestação. O derivado é condicionado, uma vez que a sua manifestação ocorre mediante formas preestabelecidas e fixadas, localizadas na Constituição, destarte, se serve de órgãos representativos, tais como: uma assembleia especial, um parlamento ou um corpo de cidadãos (referendum). Ademais, salientamos que o poder constituinte originário não está atado a limites formais, sendo considerado, por essência, um poder político ou extrajurídico, estando mais atrelado a Ciência Política, ao passo que o poder constituinte derivado se insere na Constituição, sendo, pois, conhecedor de limitações, podendo ser considerado, primordialmente, como jurídico, tendo por desiderato a reforma do texto constitucional, apresentando estreitos laços com a Ciência do Direito Constitucional. Um se manifesta em ocasiões de relativa normalidade e paz, sempre abraçado aos preceitos jurídicos vigentes; o outro, ao contrário, chega na crista das Revoluções e Golpes de Estado e se exercita quase sempre sobre as ruínas de uma ordem jurídica contestada, destarte tem o poder na acepção jurídica a competência para a mudança constitucional. Nas palavras de Jorge Miranda, “não é, com efeito, todos os dias que uma comunidade política adopta um novo sistema constitucional, fixa um sentido para a acção do seu poder, assume um novo destino; é apenas em tempos de viragem histórica, em épocas de crise, em ocasiões privilegiadas irrepetíveis em que é possível ou imperativo escolher. E estas ocasiões não podem ser catalogadas a priori; somente podem ser apontados os seus resultados típicos – a formação de um Estado ex novo, a sua restauração, a transformação da estrutura dos Estados, a mudança de um regime político”.

3.1. Os Limites do Poder Constituinte Derivado

Partindo da premissa que o poder constituinte originário é ilimitado na sua actuação, mercê de não estar vinculado a nenhum quadro jurídico, mas antes a uma concepção filosófica ou ideológica de identidade, justifica-se que não tenha limitações de exercício. 

Entrementes, o poder constituinte derivado tem o escopo de rectificar ou adaptar a constituição vigente às aspirações sociais, políticas e económicas da realidade, de forma a possibilitar uma maior completude do ordenamento jurídico e dinamização do quotidiano. Actua num quadro jurídico pré-estabelecido, devendo obediência as suas directrizes. Aliás, nas constituições do tipo rígida, como é o caso da Constituição Moçambicana, exige-se um processo especial para a sua modificação em relação ao processo das leis ordinárias. Este impedimento de uma livre modificação da lei fundamental vem vislumbrar o resguardo da garantia da Constituição e, consequentemente, uma relativa estabilidade da própria Constituição.

O poder de reforma altera a matéria constitucional, adicionando, suprimindo ou modificando normas e princípios. Este poder não é, contudo absoluto. Encontra limites quanto a forma e quanto a matéria.

Os limites formais ou de procedimento dizem respeito a forma, ou seja, a elementos temporais, circunstanciais, competência e iniciativa para a revisão.

Consoante Canotilho, os limites temporais costumam ser justificados pela necessidade de assegurar uma certa estabilidade às instituições constitucionais, conferindo à Constituição formal momento de solidificação da legalidade democrática. Algumas constituições estabelecem períodos que vão de cinco ou mais anos para a susceptibilidade de qualquer alteração.

As limitações circunstanciais consistem no impedimento da concretização de procedimentos de revisão em determinados momentos históricos, designadamente a proibição de revisão em estado de sítio e de emergência. Consoante ainda Canotilho “a história ensina que certas circunstâncias excepcionais podem constituir ocasiões favoráveis à imposição de alterações constitucionais, limitando a liberdade de deliberação do órgão representativo”.

Sobre a iniciativa aponta-se o órgão com legitimidade para desencadear a reforma. Muitas vezes exclusivamente o Parlamento, outras este órgão, bem assim o Presidente da República.

A competência para aprovação da Lei de Revisão é quase sempre acometida ao Parlamento a quem, nas constituições rígidas, se exige que disponha de uma maioria qualificada para a aprovação.

As regras do processo de revisão devem obedecer a critérios como legitimidade para iniciativa da abertura do processo (órgão competente), quorum e tempo para apresentação de um projecto de revisão.

Quanto a matéria de revisão, o princípio é que nem todas as matérias são susceptíveis de revisão. A revisão constitucional conserva um valor integrativo, no sentido que deve deixar o sistema constitucional no essencial idêntico, pois não se pode alterar a identidade constitucional. Segundo ainda Canotilho, “a revisão deve ser solidária com o fundamento político-filosófico da Constituição.” Dessa forma, legitima-se a existências de limites superiores à revisão, sejam eles expressos ou implícitos.

Canotilho defende assim a superioridade da função constituinte em relação à função de revisão. O que deve haver é um respeito e uma coexistência do poder de revisão com os princípios constitucionais fundamentais e basilares, não devendo aquele sobrepor-se a este, sob pena de tornar a Constituição um mero esqueleto de normas ineficazes, deficientes e passíveis de extinção.

3.2. Limites materiais expressos próprios e impróprios

Em primeiro lugar, releva definir o que são limites materiais ao poder constituído. Estão em causa opções fundamentais do poder constituinte que denotam uma determinada consciência jurídica e que o poder constituinte considera que são pilares da Constituição que não podem ser mexidos.

Em seguida, é necessário definir o que são limites materiais expressos: são limites que estão expressamente apontados no texto constitucional que inibem o poder de revisão. Assim, temos um poder constituinte que não só impõe limites de ordem formal ao poder constituído como ainda se acha com legitimidade para impor determinados valores ao poder constituído.

A questão aqui é, portanto, saber se o poder constituinte tem ou não esta legitimidade. Relativamente a esta questão existem 3 teses:

- Tese dos limites materiais como imprescindíveis e insuperáveis - o poder de revisão é um poder constituído pelo que tem necessariamente de se compreender dentro dos seus parâmetros. Não compete ao poder constituído dispor contra opções fundamentais do poder constituinte originário. Rever a constituição formal implica respeitar a constituição material, respeitar os seus preceitos que denotam a consciência da ideia de Direito, do regime ou do projecto em que se corporiza.

- Tese daqueles que rejeitam a legitimidade das normas que impõem limites materiais - não existe uma diferença substantiva entre aqueles que detém o poder constituinte e o poder de revisão. Não existe diferenças de valor nas matérias constitucionais. Se fazem parte da Constituição então têm o mesmo valor.

- Tese dos que admitem limites materiais ao poder de revisão, mas que os tomam como relativo, susceptíveis de remoção através de dupla revisão - as cláusulas de limites materiais são possíveis, sendo legítimo ao poder originário decretá-los. E é forçoso que sejam observados enquanto estiverem em vigor. São normas constitucionais como quaisquer outras e podem ser objecto de revisão com as consequências inerentes. É neste contexto que surge a tese dos limites próprios e impróprios de Jorge Miranda. Este pretende defender a ideia de que os "verdadeiros" limites materiais (limites próprios ou de 1º grau) não são susceptíveis de revisão constitucional, ao contrário do que acontece com os "falsos" limites materiais (limites impróprios ou de 2º grau) estes já susceptíveis de dupla revisão.

3.3. Preterição de limites e transição constitucional

É preciso compreender que todas, mas todas as constituições têm aquilo a que chamamos de limites materiais de revisão. Tentando ser muito simples no discurso, isso significa que todas, mas todas as constituições, têm um conjunto de traves mestras, sem o qual - ou destruído o qual - não estamos perante as mesmas constituições.

Essas traves mestras, numa palavra, são os ditos limites materiais à revisão constitucional.

Para dar um exemplo, se, por revisão constitucional, os Deputados, cumprindo todas as formalidades do processo de revisão constitucional, consagrassem, num preceito, a confessionalidade do Estado, não estaríamos perante uma revisão constitucional, porque quando se revê a Constituição, ela permanece a mesma, nas suas traves mestras, e, neste caso, a trave mestra da separação das Igrejas do Estado teria sido atingida de morte. Qualquer pessoa, sem dificuldade diria: esta coisa é uma coisa nova, mas não é a Constituição de 2004.

O mesmo se passa com as constituições dos outros países. É exactamente a mesma coisa. Pegamos em cada uma delas, procedemos à sua análise e identificamos quais são aqueles princípios essenciais que formam o coração desses textos, os tais princípios que se forem desvirtuados - e até podem ser - têm de nos levar a concluir que ocorreu uma ruptura, uma transição constitucional, no limite uma revolução, mas nunca uma simples revisão constitucional, precisamente porque já não reconhecemos as constituições originárias que tinham sido objecto de análise.

Afirma Canotilho que “dada a existência de limites formais e materiais, as leis de revisão que não respeitarem esses limites serão respectivamente inconstitucionais sob o ponto de vista formal ou material”.

A consequência imediata desse desrespeito é assim a inconstitucionalidade da Lei de revisão. Quanto ao tipo poderá configurar uma inconstitucionalidade orgânica (revisão por órgão incompetente), formal (forma do acto, procedimentos, circunstâncias) ou material (conteúdos, matérias). Quanto à valoração da gravidade da violação e seus efeitos tais inconstitucionalidades poderão ser reconduzidas a inexistências jurídicas, nulidades, anulabilidades ou irregularidades (categorias do direito civil e direito administrativo aplicadas ao Direito Constitucional) quanto mais fundamental e mais próxima do núcleo central da Constituição for a norma desrespeitada.

No entanto, as consequências poderão não ficar pela inconstitucionalidade. Imagine-se que, um determinado poder constituinte derivado, respeite todos os limites formais de revisão (forma, competência e procedimentos) mas acabe por violar limites materiais, a consequência pode não somente levar a uma mudança de vicissitude (da revisão à transição constitucional) como sanar a própria inconstitucionalidade material uma vez que, tratar-se-ia de nova Constituição e de um poder constituinte inicialmente derivado agora transfigurado em originário.

Jorge Miranda explicita que a experiência dos últimos anos tem mostrado que já não são em pequeno número as transições constitucionais felizes. Além disso, agora no plano da política constitucional, pode preferir-se – a ter de haver mudanças radicais ou de regime – que elas se desenrolem dentro de processos de revisão, e não a revelia de quaisquer processos preestabelecidos comprovados (até porque que, assim, se evitam as soluções de continuidade e os custos e riscos inerentes às revoluções); ou que, mantendo-se a legitimidade democrática, o povo tenha sempre meios processuais adequados à livre reorientação dos seus projectos institucionais.

De resto, ainda segundo o mesmo autor, acrescente-se que o não fecharem-se os processos previstos na Constituição a grandes transformações políticas e sociais acaba por ser, não um elemento de perturbação e instabilidade, mas sim um elemento de conservação e estabilidade – porque as formas têm as suas próprias exigências, canalizam e disciplinam os agentes do poder, desencorajam extremismos, apontam para o compromisso com os princípios até então dominantes.


4. A Evolução dos Limites de Revisão no Constitucionalismo Moçambicano

A Revisão Constitucional, como mecanismo através do qual é alterado o texto da Lei Constitucional em benefício da sua adaptação histórica, é na essência o processo de conformação entre a Lei Constitucional e a Constituição vindo daí a identificação da vontade da maioria popular ao seu texto pela alteração do seu conteúdo.

Os limites surgem para estabelecer fronteiras entre os valores maleáveis e os não maleáveis. Estes últimos são o garante da estabilidade política sem a qual é impossível a manutenção do vínculo da colectividade política. É por isso que a descontinuidade provocada na Lei Constitucional vem abalar a estabilidade deste compromisso ancestral traindo profundamente o povo, seu destinatário.

A Constituição de 1975, na sua versão originária, apresentava limites formais de revisão. A sua rigidez assentava na previsão de que qualquer alteração a própria constituição teria de ser aprovada por um mínimo de dois terços dos deputados da Assembleia Popular. Entretanto, não apresentava limites expressos de revisão em matéria de conteúdo. De observar que nas Constituições dos países com sistemas marxistas-leninistas não se topam normas sobre limites materiais de revisão constitucional, o que está ligado à concepção de constituição-balanço e constituição-programa que lhes subjaz.

A revisão de 1978 sobre a Lei Constitucional, como última presença da Constituição Revolucionária de 1975, não previu quaisquer normas relativas a revisão da própria Lei Constitucional tal era a falta de percepção jurídica do Estado própria dos sistemas centralistas de poder agenciada a sollo pela Frelimo.

Os limites nascem pela primeira vez com a revisão que se opera em 1990 como antecâmara para os acordos de paz de 1992. Relativamente aos limites circunstanciais e de procedimento, passa a estar prescrito que a revisão da Constituição podia ser operada a todo o tempo  – não havendo aqui qualquer limite temporal, contanto que as propostas de alteração devessem ser depositadas na Assembleia da República noventa dias antes do início dos debates (artigo 204.º da Constituição de 90). O interesse que presidia tamanha leveza na positivação dos limites temporais era sem dúvidas a percepção provisória da Constituição que cada um dos partidos políticos (Renamo e Frelimo) tinha durante o processo de revisão. Cada partido julgava vir a alterar a Lei Constitucional tão logo alcançasse o poder político que julgava absolutamente certo de aceder, dada a popularidade junto do eleitorado reclamada dos dois lados, pelo que era de aliviar a pressão dos limites temporais sobre tais pretensões.

Apesar da Constituição de 90 não apresentar nenhuma enunciação expressa de limites materiais de revisão, estes podem, contudo, ser apurados de forma implícita por recurso a um exercício de hermenêutica jurídica, ao dizerem respeito a matérias dos direitos fundamentais dos cidadãos e da organização dos poderes públicos. Neste caso as propostas de revisão adoptadas pela Assembleia da República seriam submetidas a debate público e levadas a referendo. Nos restantes casos, a alteração da Constituição é aprovada por maioria qualificada de dois terços dos deputados da Assembleia da República (artigo 199.º, números 1 e 2).

A Constituição de 2004 consolida o Estado de direito democrático e comporta de forma expressa limites formais e materiais de revisão. Pela primeira vez na história constitucional é ínsito um verdadeiro limite temporal, expresso pela condição de a revisão da lei magna só poder ocorrer decorridos 5 anos após a última revisão([5]) (artigo 293.º), já que a anterior Lei Constitucional previa a sua revisão a todo o tempo, condicionado pelo pedido do Presidente da República ou de um mínimo de um terço dos deputados da Assembleia da República (artigo 204.º da Constituição de 90).

De resto, os limites formais mantêm a base substancial da anterior Constituição. A iniciativa de revisão compete ao Presidente da República ou a pelo menos um terço dos deputados da Assembleia da República (artigo 291.º, número 1 da Constituição de 2004). A aprovação das alterações à Lei Constitucional continua condicionada por dois terços dos deputados em efectividade de funções. Só a Assembleia da República pode fazer leis de revisão, e não qualquer outro órgão, mantendo-se a ideia de que o Presidente da República não pode recusar a promulgação de Leis de Revisão Constitucional – artigos 295º, n.º 1 e 2). Os limites circunstanciais apontam que na vigência do estado de sítio ou do estado de emergência não pode ser aprovada qualquer alteração da Constituição (artigo 294.º)

Pela primeira vez ainda, a Constituição de 2004 elegeu de forma expressa limites materiais de revisão, ou seja, as matérias que não podem ser objecto de reforma. Com efeito, o artigo 292.º dispõe o dever que recai sobre o poder reformador de respeitar as matérias que se prendem com:

a) a independência, a soberania e a unidade do Estado.

b) a forma republicana do Estado.

c) a separação entre as confissões religiosas e o Estado.

d) os direitos, liberdades e garantias fundamentais.

e) o sufrágio universal, directo, secreto, pessoal, igual e periódico na designação dos titulares electivos dos órgãos de soberania das províncias e do poder local.

f) o pluralismo de expressão e de organização política, incluindo partidos políticos e o direito de oposição democrática.

g) a separação e interdependência dos órgãos de soberania.

h) a fiscalização da constitucionalidade.

i) a independência dos juízes.

j) a autonomia das autarquias locais.

k) os direitos dos trabalhadores e das associações sindicais.

l) as normas que regem a nacionalidade, não podendo ser alteradas para restringir ou retirar direitos de cidadania.

Entende-se que, pese embora a extensão do artigo supramencionado, têm sido afirmados outros limites transcendentes. Seria na sua lógica os limites sobre o território do Estado (artigo 6.º, n.º 1 – o território da República é uno, indivisível e inalienável) e salvaguarda do estado social (atende-se aos direitos sociais tendencialmente universais: saúde (artigo 116.º), educação (artigo 113.º) e segurança social (artigos 124.º e 126.º).

Para Jorge Miranda a descrição enunciada não visa criar limites materiais de revisão. Visa antes declarar e garantir os limites a serem observados em revisão. Nesse sentido, pelo relativismo pode se admitir a revisão dos limites materiais. Porque é de princípios que se trata, não de preceitos avulsos (os preceitos poderão ser eventualmente modificados, até para clarificação ou reforço de princípios) a revisão, deve é garantir a intangibilidade destes princípios.

Jorge Miranda situa-se assim numa linha comum de desvalorização dos limites materiais expressos ou, pura e simplesmente, considerando as normas que consagram esses limites iguais às outras normas constitucionais; ou considerando, entende que pode haver uma “dupla revisão”, a primeira para apagar a norma que cristaliza o assunto a alterar e a segunda para fazer a directa alteração na matéria que deixou de estar protegida pelo limite material que entretanto desapareceu na primeira revisão.

Canotilho, por outro lado, entende que os limites materiais são para respeitar. A sua doutrina, com a qual, no caso mais nos identificamos, sugere que o poder constituinte, ao fazer uma nova Constituição tem o direito de diferenciar entre normas constitucionais mais fortes e outras menos fortes, tendo toda a liberdade de considerar algumas delas super-rígidas e excluí-las de um poder constituído – não constituinte – de revisão constitucional. Para este jusconstitucionalista, o critério de diferenciação fundamental na teoria dos limites materiais radica no conceito de identidade constitucional (Verfassungskern): “rever” conserva esse núcleo essencial da Constituição, enquanto “mudar” o aniquila…

Mesmo considerando a relativização na revisão dos limites materiais decorrente do número 2 do artigo 292.º da Constituição que permite a revisão constitucional das matérias expressas, se o processo for previamente sujeito a referendum, há-de se considerar, recuperando os ensinamentos de Jorge Miranda, caso a caso, o que caracteriza um limite absoluto e ao que reporta um limite relativo. Quer dizer, o poder constituinte originário tem de ser democraticamente legitimado, no sentido de que a feitura de uma constituição definitiva deve ser informada pela participação dos cidadãos e pelo método democrático. Não se deve perder a noção de que o poder reformador é materialmente limitado, quer dizer que o poder que faz a revisão da constituição deve respeitar determinados princípios (determinado conteúdo). Que o poder constituinte seja culturalmente situado, quer dizer que se exerce no quadro de uma cultura política. E esta é a cultura da limitação do poder político por via do constitucionalismo democrático.


5. Conclusão   

Não há de negar-se que o tema da revisão constitucional é polémico por si só, pois, qualquer alteração na Constituição de um país leva a sérias consequências políticas e económicas, além de repercutir em todo o ordenamento jurídico. Todavia, em muitos momentos mostra-se a mesma imprescindível para a manutenção da força normativa da Constituição, bem como para a sua adaptação às novas realidades sociais, económicas e políticas.

A verdadeira reforma não necessita da alteração de normas constitucionais, mas sim de uma reforma política. Contudo, é de se aceitar que a evolução seguida pela Constituição, por meio de sucessivas revisões, tem correspondido à evolução da sociedade.

As revisões devem por isso ser delimitadas no seu objecto. Ou melhor dizendo, que fiquem restritas ao essencial. Nesse particular, deve-se sempre, ao levar a efeito uma revisão da Constituição, atentar-se para os limites e objecto dessa reforma, bem como ao princípio da segurança jurídica e da própria estabilidade política.

É sempre possível melhorar a Constituição e qualquer um tem muitas ideias de alteração à Constituição. Qualquer texto jurídico pode ser aperfeiçoado. Mas é importante que fique assinalado que não há nenhuma obrigação jurídica de rever; e um país não pode estar a mudar constantemente as normas constitucionais, porque isso cria uma grande instabilidade política.

Compulsada a actual Constituição de Moçambique, destacam-se nela inúmeras virtudes, dentre as quais, o facto de se tratar de uma Constituição-garantia e ao mesmo tempo uma Constituição-prospectiva. É uma Constituição muito preocupada com os direitos fundamentais dos cidadãos e dos trabalhadores e com a divisão do poder. Procura dar vida e enriquecer o conteúdo da democracia, multiplicando as manifestações de igualdade efectiva, participação, intervenção, socialização, numa visão ampla e não sem alguns ingredientes de utopia, talvez reminiscências de um momento histórico de perseguição do marxismo porque o nosso país passou, decorrente da reforma constitucional de 1978.

Foi um fenómeno de desenvolvimento constitucional, e não de ruptura, aquele que atravessou as Constituições de 1975, 1990 e 2004, em mais de trinta e cinco anos da história constitucional de Moçambique, por efeito das revisões constitucionais, de uma jurisprudência ainda embrionária, mas enriquecedora e na interacção da crescente adopção da cultura cívica do moçambicanos.

Os cidadãos sabem, doravante, que têm na Constituição a sua carta de direitos e liberdades. E os tribunais e os órgãos administrativos sabem que a devem conhecer e aplicar.

Naturalmente, uma Constituição, como lei, pode ser aperfeiçoada e deve-se evitar o imobilismo. E, de resto, ainda que não haja revisões formais, uma Constituição evolui por força da interpretação, da prática e das decisões dos tribunais. Tudo está em que as revisões sejam realizadas na base da experiência, em tempo razoável à luz do dia, com equilíbrio e procurando aumentar, e não diminuir, os consensos inerentes às soluções constitucionais. Tudo depende ainda da destrinça entre aquilo que é permanente e aquilo que é conjuntural, entre aquilo que deve constar da lei fundamental e aquilo que deve pertencer às leis ordinárias, entre aquilo que dá identidade à Constituição e ao regime e aquilo que é acessório.

As revisões constitucionais devem ocorrer sim mas desde que as mesmas sejam realizadas com equilíbrio e não de forma global. De resto nenhuma Constituição é perfeita, pode ser sempre melhorada ou actualizada, pode ser mais ou menos aproximada da última expressão da vontade popular.

Em síntese, constata-se que as Constituições devem ser alteradas e aperfeiçoadas de modo a se adaptarem às novas exigências sociais, económicas e políticas. Todavia, essas modificações devem ser pautadas pelos princípios constitucionais e realizadas com equilíbrio, consensos e com olhos postos no futuro.

Em qualquer reforma, sejam modificados dezenas e dezenas de artigos, formais ou reais, de outros, devem permanecer os princípios cardeais de identidade da Constituição - os sintetizados da ideia de Estado de Direito democrático (declarado no preâmbulo e, também, no artigo 3.º). Os limites devem pois ser sempre respeitados.


6. Bibliografia

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Notas

([1]) O jornal diário O Pais, de 26 de Agosto de 2010, publicou um extenso artigo no qual o SG do Partido Frelimo indica não corresponder a verdade que o actual Presidente da República tenha intenção de se candidatar a um terceiro mandato.

([2]) V. o jornal Zambeze, de 26 de Maio de 2011.

([3]) In www.canalmoz.co.mz/hoje/19290-revisao-constitucional-visa-reforcar-hegemonia-machangana.html, acessado em 26 de Maio de 2011.

([4]) V. neste sentido, o boletim Wordpress, edição de 18 de Abril de 2011 e o estudo  conjunto do Instituto do Apoio à Governação e Desenvolvimento (GDI) e da Liga dos Direitos Humanos (LDH) que propõem ainda a redução de poderes do Presidente da República.

([5]) Nem bem assim, porquanto extraordinariamente, pode a revisão ocorrer a qualquer momento desde que aprovada por maioria de pelo menos três quartos dos deputados da Assembleia da República. 


Autor

  • Carlos Pedro Mondlane

    • Juiz de Direito em Maputo (Moçambique);- Formador no Centro de Formação Jurídica e Judiciária (CFJJ); - Membro do Conselho Superior da Magistratura Judicial (CSMJ);- Membro da Associação Moçambicana de Juízes (AMJ); - Promotor de Direitos Humanos;- Mestre em Direito Empresarial pela Universidade Católica de Moçambique - Licenciado em Direito pela Universidade Eduardo MondlaneAutor de:- Lei de Promoção e Protecção dos Direitos da Criança, Anotada e Comentada- Código de Processo Civil, Anotado e Comentado- Colectânea dos 15 Anos da Lei de Terras: Venda de Terra em Moçambique: Mito ou Realidade?- Manual Prático dos Direitos Humanos (no prelo)

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MONDLANE, Carlos Pedro. Os limites na revisão constitucional em Moçambique. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3644, 23 jun. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24761. Acesso em: 16 abr. 2024.