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Parlamentares condenados

prerrogativas democráticas

Parlamentares condenados: prerrogativas democráticas

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Em pleno século XXI, não há direito mais brega ou absurdo maior do que se proteger a corrupção pública salvando o mandato parlamentar. Só há uma forma do Poder Legislativo se salvar – pensando em todo o país –, e é cortando na carne todos que praticarem o malfeito. Aliás, em outros países, corta-se literalmente o sujeito corrupto.

Moralmente, para o Brasil, é excelente, pois lava-se a alma do povo. Para o Estado é péssimo, um desastre para todo cidadão quando sai em viagem e diz a seus interlocutores de onde vem. No conjunto, o que os casos têm em comum é o fato de que as condenações criminais pelo Supremo Tribunal Federal (STF), mas sem perda dos mandatos, significam a aplicação de regras de defesa da ordem jurídica democrática no país.

A Constituição Federal de 1988, em resposta ao golpe militar de 1964 e seus possíveis efeitos – ou ranço autoritário, como se dizia –, foi marcada por sua época, como salvaguarda de que o Poder Executivo não violaria prerrogativas essenciais da jovem democracia brasileira. Trata-se sim de uma justificativa ou defesa de preceitos constitucionais e democráticos. Tais prerrogativas cumpriram seu papel na história, defenderam a democracia contra ataques e achaques do centralismo absolutamente exacerbado. São regras democráticas:

  1. O parlamentar não poder ser detido dentro do recinto.
  2. Há garantia do voto secreto (mesmo em casos chocantes como esses, para que não se interponham retaliações do Poder Central).
  3. A responsabilidade pela cassação dos mandatos é de competência exclusiva da Câmara Federal, tudo isso é perfeitamente democrático.

Este conjunto de direitos democráticos foi elaborado, volto a dizer, para refrear os avanços autoritários de um poder aboslutista. São direitos, diria mais, que suplantam a figura de cada parlamentar, são direitos da própria democracia. Essas salvaguardas e muitas outras foram criadas para fortalecer a ordem jurídica democrática. Mas, o país importou mal o receituário do presidencialismo estadunidense, porque esquecemos de dar condições institucionais e de cumprir os mecanismos que atuassem como freios e contrapesos ao excesso do poder.

No Brasil, corrompe-se até o conceito – a realidade política deixaria absurdado qualquer cidadão civilizado no ambiente verdadeiramente democrático. Os mesmos direitos de proteção à democracia de outrora, hoje, protegem e defendem a maior imoralidade pública que se possa conhecer. O mesmo direito democrático é usado contra a República, portanto, contra a democracia e contra o povo. Para os clássicos da Ciência Política, a corrupção é um crime de lesa majestade e, atualizando-se o debate, atualmente, é um Crime contra a Humanidade.

Em pleno século XXI, não há direito mais brega ou absurdo maior do que se proteger a corrupção pública salvando o mandato parlamentar. Só há uma forma do Poder Legislativo se salvar – pensando em todo o país –, e é cortando na carne todos que praticarem o malfeito. Aliás, em outros países, corta-se literalmente o sujeito corrupto.

Seccionar o corpo tem algo de muito atávico, pois, é óbvio, não haverá regeneração natural do que fora desmembrado. Mas, além disso – e longe de significar a garantia de nunca mais se agirá assim, pois o crime intelectual só seria resolvido com a decapitação –, significa que o autor não é mais dono do seu corpo, não tem mais a posse de si, de seus direitos. Em suma, decepado, o malfeitor não é mais responsável por si mesmo e regressa ao estágio sub-humano.

Assim como o preso é tutelado no Brasil, nessas culturas, o corrupto é tratado como um desastre da natureza, porque, como inadimplente da moralidade humana, revela-se infra-humano. Veja-se que, decepado, tem na carne a pena definitiva, perpétua, irreversível, insculpida para sempre na cultura humana. Por onde for, todos irão ver a marca da vergonha (por isso, “a cultura é sua segunda pele”). A novela do grande Franz Kafka, Da Colônia Penal, é lapidar. Também por isso o corrupto decepado perdeu em definitivo os direitos essenciais. O decepado não tem mais o corpo, ou seja, de nada lhe adianta o Habeas corpus (que é, exatamente, “tenhas o corpo”).

John Locke, o grande filósofo liberal e responsável do Estado – uma das figuras dominantes do Iluminismo inglês –, recomendava amputar as duas orelhas dos vagabundos desempregados, enquanto Henrique VIII e Eduardo VI falavam em apenas meia orelha. Para os filhos da classe trabalhadora, ou seja, para os pobres de todo gênero, o liberal Locke propunha a obrigatoriedade de participarem das oficinas ou instituições correcionais, sob o artifício do ensino profissionalizante, de fundo pacificador e de acomodação moral.

Voltando aos casos concretos, além disso, há uma antinomia evidente, pois o parlamentar detido – em regime semiaberto – poderá votar sobre projetos de criação de direito penal. A contradição está em participar, influir na decisão de um determinado direito que lhe interessa diretamente. Penso que este é o maior contrassenso que temos que explicar e digerir.

Historicamente, o que tivemos de pior foi a manobra nazifascista que abateu a Constituição de Weimar, a primeira Constituição democrática, na Alemanha de 1919, fazendo-se uso de “recursos de defesa da democracia” – injustamente – contra a democracia. Do que a democracia brasileira tem que se precaver é exatamente disso: não há República com corrupção; mas há ainda menos democracia com golpes institucionais.                                       


Autor

  • Vinício Carrilho Martinez

    Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINEZ, Vinício Carrilho. Parlamentares condenados: prerrogativas democráticas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3718, 5 set. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25216. Acesso em: 24 abr. 2024.