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O estupro enquanto crime de gênero e suas implicações na prática jurídica

O estupro enquanto crime de gênero e suas implicações na prática jurídica

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Impõe-se ver o estupro como crime de gênero porque perpetua as desigualdades segundo as quais homens e mulheres devem se comportar de maneiras distintas em sociedade: aqueles, de forma sexualmente livre e dominante; estas, de maneira resguardada e prudente.

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo apresentar o crime de estupro como fruto das assimetrias de gênero, ora delimitado na figura feminina, apontando como as desigualdades nos papéis impostos culturalmente a homens e mulheres influenciam o tratamento sócio-juridico do tema. O artigo demonstra como os discursos estereotipados transcendem as instituições, fazendo com que os poderes instituídos legitimem as diversas formas de violência advindas com o referido paradigma. Nesse sentido, a partir da análise de decisões judiciais, é realizada uma reflexão sobre a conduta do operador do Direito, que, infelizmente, ainda atua de forma discriminatória e controladora no que diz respeito à liberdade e à dignidade sexual da mulher. De maneira geral, o presente texto pretende debater a postura da sociedade no que se refere ao delito de estupro, com a finalidade de ampliar as discussões sobre as representações de gênero e as inúmeras formas de violência que elas acarretam. Especificamente, no entanto, o trabalho tem por finalidade atrair esta discussão para o âmbito do Direito, apresentando as dificuldades em concretizar a aplicação da justiça para a ação criminosa do estuprador, devido à formação machista a que estão submetidos boa parte dos profissionais do mundo jurídico.

Palavras-chave: Estupro. Violência de gênero. Prática jurídica.


INTRODUÇÃO

O crime de estupro é certamente uma das formas de violência mais antigas da história da humanidade. Desde a Antiguidade, onde era considerado delito contra a propriedade, até os dias atuais, em que afronta a dignidade sexual segundo o ordenamento jurídico de boa parte dos países inspirados na consagração da dignidade humana, a exemplo do Brasil, o ato sexual forçado sempre foi reprimido pelas sociedades, sob fundamentos que vêm sendo modificados com o decurso do tempo.

Cediço, porém, que, apesar dos contornos diversos pelos quais vem passando, o estupro sempre ostentou uma característica peculiar e atemporal: tem nas assimetrias de gênero seu alicerce, uma vez que está inegavelmente imbricado às relações de poder construídas culturalmente.

Este trabalho aborda o delito tipificado no art. 213 do Código Penal Brasileiro como fruto das representações de gênero, demonstrando como o discurso desigual influencia o tratamento sócio-jurídico do tema.

Para tanto, utiliza como marco teórico o conceito de gênero, salientando que as discriminações geradas a partir dos papéis impostos ao homem e à mulher na sociedade se maximizam à medida que transcendem os poderes instituídos, os quais, por sua vez, formalizam o preconceito e a injustiça.

O interesse pelo tema ora tratado decorre das inquietações que ele provoca. Afinal, debater a violência de gênero e apontar caminhos para dirimi-la se faz fundamental para o desenvolvimento de uma sociedade realmente preocupada em assegurar direitos mínimos, essenciais a uma existência digna. Não há como admitir, em verdade, que as sociedades e suas instituições permaneçam na contramão do que preveem os diversos ordenamentos jurídicos do mundo inteiro no que tange à garantia de direitos humanos. O estupro é um delito que afronta a dignidade sexual e moral das mulheres e sua gravidade não pode ser minimizada mediante uma análise carregada de valores preconceituosos e machistas.

No presente trabalho, foi realizada pesquisa eminentemente doutrinária, de caráter interdisciplinar, fazendo uso de estudos e pesquisas que abordaram o estupro à luz do paradigma de gênero e demonstraram as dificuldades em assegurar um tratamento digno às vítimas do delito. Trata-se basicamente de pesquisa bibliográfica de autores dedicados ao debate do tema, principalmente no que se refere à incursão do discurso machista no âmbito dos processos judiciais que envolvem o delito ora citado. Importa mencionar a importância da internet na redação deste texto, haja vista a existência de bastante e variado material sobre o tema, desde as teses e pesquisas realizadas academicamente até dados e informações constantes em sítios oficiais acerca desse tipo de violência no país.

O artigo foi dividido da seguinte forma: no primeiro capitulo, o texto alude, em suma, às questões de gênero e sexualidade, introduzindo o tema e mostrando como as construções sociais sobre os comportamentos esperados dos sujeitos no seio social estão arraigadas no imaginário das pessoas, por exemplo, no tocante à inferiorização do gênero feminino perante o masculino.

No capítulo seguinte, inicia-se a análise do crime de estupro, apresentando considerações históricas e o atual enquadramento do delito no ordenamento jurídico brasileiro.

Realiza-se uma reflexão sobre o discurso do costume social sobre referido crime e seus sujeitos, o qual, em virtude de ter o paradigma de gênero como sustentáculo, tem como principal consequência a inversão da lógica natural esperada no que se refere à tentativa de descoberta da culpa pelo ato.

Por fim, o trabalho se propõe a analisar a postura do profissional do Direito diante da violência de gênero, desde sua formação acadêmica até a prática nos Tribunais. Para isso, faz uso de algumas decisões de Cortes do país, demonstrando exatamente que, em que pese o avanço em garantia de direitos às mulheres trazido pela Constituição Cidadã de 1988, as assimetrias de gênero ainda alcançam, com freqüência, os poderes constituídos, os quais, por conseguinte, legitimam a desigualdade.

De maneira geral, o presente texto pretende debater a postura da sociedade no que se refere ao delito de estupro, com a finalidade de ampliar as discussões sobre o paradigma de gênero e as inúmeras formas de violência que ele acarreta. Especificamente, no entanto, o trabalho tem como objetivo atrair esta discussão para o âmbito jurídico, apresentando as dificuldades em concretizar a justiça esperada para a ação criminosa do estuprador, devido à formação machista a que estão submetidos os operadores do Direito.


1. GÊNERO

O senso comum e o saber científico, de forma geral, têm em comum o discurso de que as desigualdades existentes entre homens e mulheres são justificadas pelas diferenças biológicas entre os sexos. Sempre foi assim e, atualmente, grande parte da sociedade ainda acredita que os papéis de cada um estão predeterminados em virtude de um fundamento natural.

Conforme ressaltou Simone de Beauvoir (1970), com pioneirismo inquestionável na literatura que discutiu referidas desigualdades, os antifeministas apelaram para todos os meios a fim de provar a inferioridade feminina: tanto a religião, a filosofia e a teologia, quanto as ciências biológicas, a psicologia experimental, entre outros campos do saber, continham argumentos que distanciavam os mundos do homem e da mulher.

Na década de 1960, todavia, surge o conceito de gênero, responsável por questionar toda a ideologia de superioridade biológica masculina. Revela-se verdadeiro marco na história das Ciências Sociais latu sensu, visto que visa a desconstruir as justificativas naturais dadas às desigualdades, advogando a tese de que as funções apontadas como masculinas e femininas são, em realidade, construções culturais.

1.1  Uma abordagem teórico-conceitual para gênero

Nas palavras de Joan Scott (1990, p. 5), a palavra gênero “indicava uma rejeição ao determinismo biológico implícito no uso de termos como ‘sexo’ ou ‘diferença sexual’”. Sobre o tema, leciona Machado (2000, p. 5):

Gênero é uma categoria engendrada para se referir ao caráter fundante da construção cultural das diferenças sexuais, a tal ponto que as definições sociais das diferenças sexuais é que são interpretadas a partir das definições culturais de gênero. Gênero é assim uma categoria classificatória que, em princípio, pode metodologicamente ser o ponto de partida para desvendar as mais diferentes e diversas formas de as sociedades estabelecerem as relações sociais entre os sexos e circunscreverem cosmologicamente a pertinência da classificação de gênero. Este conceito pretende indagar metodologicamente sobre as formas simbólicas e culturais do engendramento social das relações sociais de sexo e de todas as formas em que a classificação do que se entende por masculino e feminino é pertinente e faz efeito sobre as mais diversas dimensões das diferentes sociedades e culturas.

Significa dizer que as representações do que é eminentemente feminino ou masculino são, em verdade, edificadas pela sociedade em um dado momento histórico. Com o novo conceito, se fortalece a noção de que os seres humanos são realmente socializados durante toda a vida para agir conforme a cartilha de condutas predeterminadas pelas instituições sociais, e não segundo uma destinação natural.

Para Scott (1990, p. 21-26):

O gênero é uma primeira maneira de dar significado às relações de poder. Seria melhor dizer: o gênero é um primeiro campo no seio do qual, ou por meio do qual, o poder é articulado. [...] A ênfase colocada sobre o gênero não é explícita, mas constitui, no entanto, uma dimensão decisiva da organização, da igualdade e desigualdade. As estruturas hierárquicas baseiam-se em compreensões generalizadas da relação pretensamente natural entre o masculino e o feminino.

As assimetrias de gênero acarretam uma divisão estigmatizante entre homens e mulheres, a estas restando uma posição sempre inferior e subsidiária. Em realidade, mais do que uma inferiorização feminina, é certo dizer que cada indivíduo é colocado contra si próprio, já que, “para corresponder ao ideal masculino ou feminino, cada um tem de rejeitar em si aspectos que são considerados do outro sexo, de alguma forma, mutilando-se” (LINS e BRAGA, 2009, p. 336).

Como bem sintetiza Vera Regina Pereira de Andrade (2004, p. 262):

[A construção social do gênero] se processa pela atribuição dicotômica e hierarquizada de predicados aos sexos, em cuja bipolarização não apenas são opostas qualidades masculinas às femininas, mas estas são inferiorizadas: racional/ emocional, objetivo/ subjetivo, concreto/ abstrato, ativo/ passivo, força/ fragilidade, virilidade/ recato, trabalho na rua/ no lar, público/ privado. O pólo ativo é representado pelo homem-racional-ativo-forte-guerreiro-viril-trabalhador-público, o pólo passivo é representado pela mulher-emocional-passiva-fraca-impotente-pacífica-recatada-doméstica.

Ainda que implicitamente, portanto, a sociedade reproduz um discurso que sobrepõe os direitos e as liberdades dos homens aos das mulheres, construindo instituições que diariamente violentam os sujeitos do sexo feminino. Com efeito, desde muito cedo, os passos de cada um são desenhados de acordo com o gênero ao qual pertencem, sem um exame preocupado acerca das implicações dessa separação de universos. Como regra, as pessoas não atentam para o fato de que essas desigualdades constituem fonte de desrespeito e desavenças; pelo contrário, é comum a legitimação das variadas formas de violência em virtude de uma possível desobediência à cartilha social de boas maneiras.

Infelizmente, as injustiças trazidas com a construção social do sexo anatômico permeiam todos os aspectos da vida humana de acordo com cada cultura. Todavia, cumpre salientar a importância e o avanço já galgado com a teorização sobre gênero, haja vista que até pouco tempo atrás não existia uma corrente sistematizada para explicar o porquê do abismo de direitos e garantias jurídicas e morais entre homens e mulheres. Outrossim, tampouco existiam estudiosos e ativistas com organização suficiente para debater e tentar dirimir as desigualdades, uma vez que a sociedade estava envolta por argumentos deterministas, que não visualizavam qualquer possibilidade de mudança e melhoria nas relações sociais.

Destarte, com a problematização do paradigma de gênero, é lançada uma nova perspectiva: a de que a desigualdade, uma vez construída socialmente, pode ser desconstruída, desde que haja a necessária e exaustiva reflexão e atuação nesse sentido.

1.2 .O controle da sexualidade feminina

O exercício da sexualidade tem sido controlado de acordo com as normas morais das sociedades desde a Antiguidade, fenômeno denominado por Lins e Braga como repressão sexual (2009, p. 283). Para eles, “o que é permitido e o que é proibido passa a ser interiorizado em cada indivíduo, junto à família, na escola, na religião e meios de comunicação”.

Com efeito, a vivência da sexualidade é mais um agente da ordem sociocultural. Em que pese a existência de anatomias distintas, ditas complementares pelas religiões e pelo conhecimento científico, os seres humanos são, em verdade, educados pelas diversas instituições sociais para usarem seus corpos e exercerem seus direitos sexuais de acordo com seus papéis no cotidiano.

Nesse sentido, leciona Guacira Lopes Louro, em O Corpo Educado – Pedagogias da Sexualidade (2000, p. 5-6, grifo nosso):

Muitos consideram que a sexualidade é algo que todos nós, mulheres e homens, possuímos "naturalmente". Aceitando essa idéia, fica sem sentido argumentar a respeito de sua dimensão social e política ou a respeito de seu caráter construído. A sexualidade seria algo "dado" pela natureza, inerente ao ser humano. Tal concepção usualmente se ancora no corpo e na suposição de que todos vivemos nossos corpos, universalmente, da mesma forma. No entanto, podemos entender que a sexualidade envolve rituais, linguagens, fantasias, representações, símbolos, convenções... Processos profundamente culturais e plurais. Nessa perspectiva, nada há de exclusivamente "natural" nesse terreno, a começar pela própria concepção de corpo, ou mesmo de natureza. Através de processos culturais, definimos o que é — ou não — natural; produzimos e transformamos a natureza e a biologia e, conseqüentemente, as tornamos históricas. Os corpos ganham sentido socialmente. A inscrição dos gêneros — feminino ou masculino — nos corpos é feita, sempre, no contexto de uma determinada cultura e, portanto, com as marcas dessa cultura. As possibilidades da sexualidade — das formas de expressar os desejos e prazeres — também são sempre socialmente estabelecidas e codificadas. As identidades de gênero e sexuais são, portanto, compostas e definidas por relações sociais, elas são moldadas pelas redes de poder de uma sociedade. 

Assim, os homens do mundo patriarcal devem pautar-se de forma sexualmente livre – e até libertina! – devido à posição de superioridade e independência que lhes cabe. Devem ser, portanto, rígidos, másculos e dominadores. Por sua vez, às mulheres resta a necessidade de resguardar sua moral sexual, agindo de forma efetivamente recatada. Suas vestimentas, seus diálogos e seus comportamentos devem revestir-se da cautela necessária a ensejar o respeito do seio social. Seu corpo não é considerado sua propriedade, senão verdadeiro objeto de controle da sociedade.

Nesse diapasão, inconteste o fato de que a sexualidade é o campo em que se aguçam as desigualdades perpetradas pelo paradigma de gênero, haja vista que é aqui onde os estereótipos são multiplicados. Destarte,

Qualquer inadaptação ou desvio de conduta corre o risco de ser duramente criticada/o ou discriminada/o socialmente: elas podem se tornar “putas” e “galinhas” (em razão de uma vida sexual ativa), ou “sapatões”, “machonas” ou “freiras” (como categoria de acusação em alusão à castidade para as que se recusam a aderir à prática sexual por imposição do parceiro); e eles, “bichas”, “veados”, “mulherzinha”, “maricas”. Em suma, há modelos de gênero rigidamente estabelecidos que inspiram representações e práticas sociais para jovens de cada sexo. (BRASIL, 2009, p.52)

Em realidade, malgrado o reconhecimento de que a construção social de gênero restringe a liberdade tanto dos homens quanto das mulheres, inegável o fato de que o caráter de opressão sexual se consubstancia muito mais fortemente sobre a realidade feminina. Conforme salienta Silva (2010), é possível, assim, encontrar toda sorte de preconceitos e estereótipos – como os juízos de valor que categorizam as mulheres em honestas e prostitutas, em boas mães e mulheres de família etc. Para Saffiotti (2004, apud SILVA, 2010), “é no âmbito da sexualidade feminina que se exerce o grande controle masculino”, corroborando a ideia de que a sexualidade é também exercida como uma forma de poder.

Nas sociedades que reproduzem discursos andocêntricos, a mulher é a parte desempoderada das relações sociais, sem domínio, inclusive, sobre seu próprio corpo. A ordem sociocultural decide as questões ligadas à sexualidade e à reprodução, utilizando as mais diversas formas de violência para combater comportamentos desviantes. Aliás, conforme salienta Ávila (2003, p. S467), “essa repressão e esse controle do corpo e da sexualidade são elementos centrais da dominação patriarcal e da sua reprodução”.

Nesse sentido, verifica-se que o paradigma de gênero e as imposições desiguais à vivência da sexualidade masculina e feminina se espraiam em todos os aspectos da vida social, servindo de justificativa ao cometimento de várias espécies de crimes diariamente. A violência doméstica, em todas as suas faces, bem como as agressões de natureza sexual, são exemplos nítidos e fundamentais para explicar que as desigualdades construídas culturalmente são extremamente prejudiciais à convivência harmoniosa em sociedade.

Nos casos de estupro, especificamente, vê-se a costumeira ligação dos motivos do crime ao comportamento da vítima na sociedade. A natureza delituosa e violenta da conduta do estuprador é por vezes relativizada devido ao não enquadramento da vítima nos preceitos estabelecidos como ideais para uma mulher. 

 


2.O DELITO DE ESTUPRO

A violência é um fenômeno milenar, constante nas mais diversas sociedades do mundo inteiro desde sempre. Fenômeno de múltiplas causas, a violência presente nas relações humanas é um processo agravado e perpetuado pela ordem sociocultural em cada período histórico.

Para Grossi (1996, p. 134), a violência contra a mulher, por sua vez,

Apresenta-se como uma das violações mais praticadas e menos reconhecidas no âmbito dos direitos humanos no mundo. Ela se manifesta de diferentes formas, desde as mais veladas até as mais evidentes, cujo extremo é a violência física.

Com efeito, a violência contra a mulher é deveras antiga e multifacetária e, devido aos fundamentos de natureza patriarcal utilizados para justificá-la, sempre carregou caráter de invisibilidade perante as sociedades. Os discursos de dominação masculina, impregnados no seio social e em suas instituições, banalizaram e até estimularam o uso da violência contra a pessoa do sexo feminino que, de alguma forma, se desvirtuava dos papéis a ela impostos.

Nesse panorama, situa-se o estupro, que é certamente uma das formas de violência mais antigas da história da humanidade. Em realidade, o ato sexual forçado sempre encontrou repulsa nas diversas sociedades conhecidas, tendo, no entanto, passado por um processo de “evolução” cultural e jurídica marcado por transições complexas e extremamente importantes em suas justificações.

2.1 Sobre a história do crime

Do Antigo Testamento até o período medieval, o estupro era considerado crime contra a propriedade, do qual era sujeito passivo, na verdade, o dominus da mulher estuprada. Vilhena e Zamora (2004, p. 115) explicam que “roubar ou raptar uma mulher de seus proprietários de direito, normalmente pai ou marido, destruiria o seu valor de propriedade, sobretudo no caso de virgens”. Neste período, não se compreendia a mulher como sujeito de direito, motivo pelo qual não havia a intenção de se punir o estuprador em virtude da agressão sexual, senão apenas pela violação ao patrimônio de outro homem.

Na exímia lição de Segato (1999 apud RATTON, 2007, p. 4):

O grande divisor de águas dá-se, contudo, entre sociedades pré- modernas e modernas. Nas primeiras, o estupro tende a ser uma questão de Estado, uma extensão da questão da soberania territorial, já que, como o território, a mulher e, mais exatamente, o acesso sexual à mesma, é mais um patrimônio, um bem, pelo qual os homens competem entre si... com o advento da modernidade e do individualismo, essa situação pouco a pouco se transforma, estendendo a cidadania à mulher, transformando-a em sujeito de Direito a par do homem. Com isso, ela deixa de ser uma extensão do Direito de outro homem e, portanto, o estupro deixa de ser uma agressão que, transitivamente, atinge um outro por intermédio de seu corpo, e passa a ser entendido como crime contra sua pessoa.

De fato, a partir do século XVI já se delineia certa modificação no que tange ao tratamento do tema, uma vez o crime de estupro passa a ser notado como verdadeira agressão sexual, mas que violava principalmente a honra das famílias da vítima, o que incentivou a edição de leis mais duras para punição dos acusados. Contudo, malgrado a percepção abstrata da gravidade do delito, os tribunais da época pouco reprimiam a conduta, conforme assevera Vigarello (1998, p. 21):

A repressão brutal combinava com processos falíveis e confusos que acabavam, em sua maioria, recusados pelas cortes, principalmente por causa da raridade das queixas, investigações não-concluídas e fatos pouco aprofundados. Dessa forma, é possível afirmar que reinava o pouco interesse em averiguar os danos causados às vítimas, especialmente quando se tratava de mulher adulta e não havia assassinato nem indícios materiais da agressão. Existia, por assim dizer, certa tolerância em relação à violência, o que não significava impunidade generalizada, pois a justiça se fazia presente por meio dos rituais de suplício.

O estupro maculava a mulher, tornando-a impura, indigna. Toda a intensa repressão cristã sobre o ato sexual na época não deixava a conjunção carnal forçada à margem. Na verdade, a intensa reprovação social sobre a ideia de sentir prazer era transmitida ao estupro, como se a violência da conduta delitiva não fosse suficiente para inibir essa possibilidade. Com a denúncia de um caso de estupro, surgiam as suspeitas sobre a postura da mulher, sobre um possível consentimento ou provocação, acarretando, na maioria das vezes, a impunidade do agressor. Todo esse cenário trazia para a ofendida o medo de ser associada à figura de partícipe do ato pecaminoso e promíscuo, fazendo geralmente com que desistisse de relatar o abuso sexual sofrido.

Ainda nesse período, cumpre salientar que outros tantos fatores influenciavam bastante na responsabilização do agressor. Se a vítima era virgem e de classe social mais elevada, o crime assumia maior gravidade no meio social, uma vez que havia a necessidade de recompor a honra da família. Como se vê, em suma, os avanços legais obtidos na Era Moderna ainda não foram suficientes para enxergar a mulher como a real vítima do estupro. Aqui, ela ainda é vista como objeto do qual o estuprador se utilizou para denegrir a imagem do seu proprietário.

Dissertando sobre aspectos históricos do delito de estupro, Manfrão (2009, p. 13) explica que, em meados do século XVIII, por conseguinte,

Algumas modificações na lei penal começam a surgir em razão da emergência de novas formas de pensamento a respeito da violência. Uma das mais importantes é que o conteúdo da transgressão criminal começa a se dissociar das idéias de pecado e blasfêmia. Entretanto, essas modificações não determinaram uma mudança imediata na abordagem cultural e na prática jurídica do estupro, que conservam, por exemplo, a opinião tradicional de suspeita de consentimento da mulher. A mudança ocorre em relação a certas circunstâncias do ato, como quando a vítima era criança. Além disso, surge uma nova sensibilidade quanto à impunidade do estupro, a opinião pública passa a criticar os casos em que os homens detentores de posições sociais privilegiadas abusavam dessa condição para violentar mulheres menos afortunadas na certeza de que não seriam punidos. E a impunidade, de fato, continuou a existir, pois a mudança da opinião pública não implicou em alteração nos processos judiciais, as condenações continuaram baixas.

Conforme prossegue a autora, o final desde século e o centenário seguinte é uma fase marcada por avanços sociojurídicos, primordialmente no que tange à percepção da violência. Vê-se a necessidade de se delimitar e hierarquizar condutas, escalonando-as e criando tipos capazes de proporcionar uma atividade judicante mais eficaz. Ocorre verdadeira ampliação dos delitos de natureza sexual, agora compreendidos como crimes contra os costumes.

Ainda que se admita que a mentalidade da sociedade continuasse a punir muito mais o sujeito passivo do crime de estupro do que seu agressor, haja vista todo o discurso ainda muito forte de suspeita sobre a conduta feminina, se faz essencial salientar que os abusos sexuais ganharam maior visibilidade no período, acarretando, assim, maior número de denúncias.

Todo esse caminho culminou num século XX cheio de discussões sobre os crimes sexuais, impulsionadas, principalmente, pelo advento dos movimentos feministas questionando o discurso de superioridade masculina e de domínio sobre o corpo da mulher.

2.2 .Estupro no ordenamento jurídico brasileiro

O estupro está tipificado no artigo 213 do Código Penal, no capítulo Dos Crimes contra a Liberdade Sexual, do título Dos Crimes contra a Dignidade Sexual. Este título foi recentemente modificado pela Lei n.º 12.015, de 7 de agosto de 2009, que trouxe algumas significativas alterações para o tratamento dos crimes sexuais.

Antes da edição do referida lei, o título VI do diploma penal brasileiro era intitulado Dos Crimes contra os Costumes, cujo bem jurídico tutelado era a pretensão estatal de se manter um moralismo sexual na sociedade, e não necessariamente a dignidade e a liberdade sexual da vítima.

A modificação da mencionada nomenclatura reflete o avanço do ordenamento penal brasileiro, que agora visa a proteger a pessoa da vítima em sua plenitude, enxergando os crimes sexuais como verdadeira violação ao fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana. Para Greco (2010, p. 451):

A expressão crimes contra os costumes já não traduzia a realidade dos bens juridicamente protegidos pelos tipos penais que se encontravam no Título VI do Código Penal. O foco da proteção já não era mais a forma como as pessoas deveriam se comportar sexualmente perante a sociedade do século XXI, mas sim a tutela de sua dignidade sexual. [...] O nome dado a um Título ou mesmo a um Capítulo do Código Penal tem o condão de influenciar na análise de cada figura típica nele contida, pois, através de uma interpretação sistêmica ou mesmo de uma interpretação teleológica onde se busca a finalidade da proteção legal, se pode concluir a respeito do bem que se quer proteger, conduzindo, assim, o intérprete, que não poderá fugir às orientações nele contidas. A título de exemplo, veja-se o que ocorre com o crime de estupro, que se encontra no capítulo relativo aos crimes contra a liberdade sexual. Aqui, como se percebe, a finalidade do tipo penal é a efetiva proteção da liberdade sexual da vítima e, num sentido mais amplo, a sua dignidade sexual.

Com efeito, a importante alteração acima descrita obriga formalmente o operador do direito e a sociedade de forma geral a olhar para os crimes de natureza sexual de forma distinta da visão utilizada no decorrer da História, reconhecendo que a tipificação penal em comento tem escopo de proteger diretamente o direito fundamental de liberdade e de disposição do próprio corpohist.

Por outro lado, com o advento da Lei 12.015/2009, o delito capitulado no artigo 213 do Código Penal teve sua redação completamente modificada, devido à união dos tipos de estupro e de atentado violento ao pudor em apenas uma figura penal. Atualmente, é a seguinte a descrição do crime em comento: constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.

O crime de estupro teve seu alcance ampliado, haja vista que a sua redação anterior foi acrescentado o texto do antigo delito de atentado violento ao pudor. Não houve, em realidade, abolitio criminis no que tange ao antigo crime previsto no art. 214 do Código Penal. Conforme Greco (2010, p. 486):

Não houve descriminalização do comportamento até então tipificado especificamente como atentado violento ao pudor. Na verdade, somente houve uma modificação nomen juris da aludida infração penal, passando, como dissemos, a chamar-se estupro o constrangimento levado a efeito pelo agente a fim de ter conjunção carnal, ou, também, a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso. Aplica-se, na hipótese, o chamado princípio da continuidade normativo-típica, havendo, tão somente, uma migração dos elementos anteriormente constantes da revogada figura prevista no art. 214 do Código Penal, para o art. 213 do mesmo diploma repressivo.

Em verdade, pela antiga redação apenas o coito vaginal era considerado estupro e, portanto, apenas a mulher poderia ser sujeito passivo do crime. As inúmeras outras condutas existentes que porventura violassem a liberdade sexual das pessoas se subsumiam, no máximo, ao crime de atentado violento ao pudor. Agora, nos dizeres de Leal e Leal (2009):

Ao promover a fusão tipológica do atentado violento ao pudor com o crime de estupro, o legislador preferiu o caminho de uma incriminação unificada das condutas praticadas com violência ou grave ameaça contra a liberdade sexual. Em síntese, são os coitos por via vaginal (conjunção carnal, na linguagem codificada), anal ou oral (referidos como "outros atos libidinosos", conforme a lei penal), praticados contra a vontade da vítima e que podem ser reunidos sob a denominação genérica de atos de violação da integridade sexual de outrem. [...] Verifica-se que, em termos terminológicos, temos agora uma infração penal unificada e abrangente da cópula vaginal e/ou dos demais atos libidinosos, sempre que praticados pelo agente de forma violenta ou mediante grave ameaça contra a vítima.

Assim, da ampliação do modus operandi do delito constante no art. 213 do Código Penal decorre outra importante mudança: agora trata-se eminentemente de crime comum, uma vez que qualquer pessoa pode ser autora e/ou vítima do crime de estupro, seja do sexo masculino ou feminino.

Além disso, a nova lei trouxe duas formas qualificadas para a infração penal ora tratada, demonstrando a intenção de agravar a punição daqueles que violam a liberdade sexual de outrem. Destarte, para quem comete o delito tipificado no caput do artigo, a pena é de reclusão de 06 (seis) a 10 (dez) anos. Por sua vez, se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos, a sanção é de 08 (oito) a 12 (doze) anos de reclusão. Por fim, se da ação criminosa resulta morte, a pena é de reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.

Cumpre salientar, ainda, que a Lei n. 12.015/2009 corroborou o enquadramento da infração penal de estupro, em suas formas básica ou qualificadas, como crime hediondo, previsto no art. 1º, inciso V, da Lei n.º 8.072/90. Destarte, será insuscetível de anistia, graça e indulto, bem como de pagamento de fiança, e deverá ter a pena cumprida inicialmente em regime fechado (art. 2º, §2º).


3. O DISCURSO SOBRE O CRIME: do seio social aos processos criminais

Como visto acima, há um denominador comum em toda a história do estupro: a coisificação da mulher vítima do crime. Praticamente em todas as sociedades conhecidas, a ocorrência do delito era analisada sob fundamentos que sempre trataram a dignidade e a liberdade sexual da mulher de forma subsidiária.

Mesmo que se admita a existência de avanços legais, em nível nacional e mundial, no que tange à necessidade de assegurar o desenvolvimento em plenitude do ser humano, o ordenamento jurídico brasileiro ainda carrega muitas normas de cunho excludente para com as minorias de maneira geral. O reflexo mais forte do preconceito no que se refere às mulheres especificamente se encontra no âmbito penal, com leis e um sistema de justiça criminal que ostentam antigas discriminações, como o controle da sexualidade e do corpo feminino e suas conseqüências para os crimes de natureza sexual.

3.1 .A construção sociocultural das imagens da vítima e do agressor

Desde sempre, as construções socioculturais de gênero minam o tratamento do crime em comento de forma extremamente eficaz. Na percepção da maioria das pessoas, o estupro não é analisado como violador da dignidade sexual das mulheres, senão como consequência natural a um determinado comportamento. In casu, a conduta feminina é vista como verdadeira determinante para a ocorrência ou não do estupro.

Conforme sintetizam Vilhena e Zamora (2007, p. 313):

Uma explicação que procura defender os homens e transferir a responsabilidade às mulheres é a de que elas consentiram no ataque, sem se defender de verdade ou até pediram por ele, usando roupas curtas, apertadas, perfume, cabelo e maquiagem chamativos. Outra explicação é a de que as mulheres gostam mesmo é de homens de verdade e de que é impossível distinguir entre um não verdadeiro e um não fingido, que, na verdade, pretende excitar e estimular um ataque mais vigoroso.

Sobre a tão falada permissividade da vítima, com maestria leciona Eleonora Zicari Costa de Brito (2004, p. 172):

Por consentimento entende-se não a vontade da mulher, mas sua maneira de ser social. Afinal, as mulheres, nesses discursos, não têm vontade própria quanto a sua sexualidade. Ou bem se preparam para cumprir o "dever conjugal", garantindo-se como mulheres "honestas", ou seguem o caminho da sexualidade irrestrita e irrecusável a todos. Nesse sentido, o que esses discursos instauram é a justificativa do estupro como punição social para a "má conduta" da mulher "devassa".

A investigação social sobre a contribuição da vítima para a ocorrência do crime está edificada no controle da sexualidade feminina. Na verdade, todos os modelos de conduta apontados como tipicamente femininos são explicados culturalmente como a melhor forma de evitar maiores males. Para as massas, se a mulher é cuidadosa e não se desvia das regras comportamentais do seio social, certamente terá menores chances de se tornar vítima de violência sexual. Implica dizer que, para o senso comum, normalmente a mulher só é estuprada se der algum motivo, o qual geralmente está imbricado com sua moral sexual. Como bem lembram Vilhena e Zamora (2004, p. 117), ignora-se, por exemplo, com tal argumento, que mulheres de hábito de freira ou de burca também são violentadas.

O discurso desigual que transfere à mulher vítima do crime de estupro a responsabilidade pela violência sofrida acarreta verdadeira tolerância social para com as agressões sexuais. A mídia, a religião, a política, o sistema de justiça criminal, entre outras instituições, costumam banalizar os efeitos do crime, fazendo com que a própria vítima incuta em si o sentimento de culpa, o que costuma engordar as chamadas cifras negras do crime. Em sabendo do pesado julgamento social sobre sua conduta, a vítima, em enorme parte dos casos, assume a sensação de vergonha por ter sido estuprada, preferindo resguardar-se de todo o desgaste que uma possível denúncia traria.

Com efeito, esse argumento ganha concretude ao se analisar brevemente a relação sexual forçada no âmbito doméstico. Afinal, quem pode negar o caráter de invisibilidade dado ao crime que ocorre no espaço familiar? A cultura de estupro existente na sociedade é perpassada desde cedo entre todos. As meninas aprendem desde criança que não devem “provocar” atos dessa espécie. São ensinadas a zelar pelo seu corpo e por sua moral sexual de forma a evitar as “correções” advindas com a violência. Torna-se completamente compreensível, por exemplo, saber de crianças e adolescentes que foram estupradas durante anos por pessoas bastante próximas, que só denunciaram muito tempo depois e que, ainda assim, se corroem por acreditar que, de alguma forma, atraíram a ação do estuprador.

Júnia Vilhena e Maria Helena Zamora (2004, p. 118, grifo nosso) citam exatamente o estado de paralisia que atinge a vítima de estupro na seara privada, motivado justamente pelo medo ser julgada e condenada por uma possível culpa.

O estupro costuma ser reduzido ao privado e essa esfera, como sabemos, tende a ser sacralizada e despolitizada. Para alguns, a denúncia amplia a vergonha da vítima e da família devendo, portanto, ser evitada, como veremos mais adiante. Para outros, o estupro, simplesmente, não é da nossa conta. Guardadas na segurança do lar, as “nossas” mulheres sabem se comportar e estão a salvo. Engano. Também o lar, com seus sentimentos privatizantes pode gerar segredos e silêncios destruidores. As mulheres e meninas são freqüentemente estupradas dentro de casa por seus familiares, incluindo o próprio pai. Incluem-se, entre prováveis agressores, alguém a quem elas conhecem e, muitas vezes, a quem amam e em quem confiam: o namorado, o marido, o tio, o primo, o chefe, o amigo, o colega, o professor, o sacerdote, o vizinho... O estupro – ou sua tentativa – , partindo daquele

que era familiar, transformado de súbito em estranho, diferente e hostil, pode ser paralisante para a vítima, pela surpresa dolorosa da introdução da violência, mesclada pela supersexualização de uma situação não sexual ou onde a consumação do ato não estava em questão. Tal ataque pode assumir um tal caráter de traição, que tira a possibilidade de qualquer reação. O medo e em seu extremo, o horror, é paralisante. A impossibilidade de defender-se ou uma defesa considerada fraca são acusações lançadas contra as vítimas, assim como julgamentos e suposições sobre seu caráter moral, seus costumes e seu passado sexual.

O fato da vítima esconder o crime e vestir a camisa da culpa pelo ato é o reflexo mais forte das assimetrias de gênero. É, certamente, o efeito mais desejado pela ordem excludente que predomina na sociedade. Manter a mulher como vítima em potencial, como objeto de domínio masculino, é a intenção de uma maioria que pretende a perpetuação de valores machistas, eliminando a autonomia da mulher para lidar com seu próprio corpo.

3.2  A postura do operador do Direito e a duplicação da violência

A reprodução do discurso desigual e estereotipado envolvendo a temática de gênero não se materializa tão-somente nos meios informais de controle social, encontrando eco, essencialmente, nas instituições responsáveis por assegurar o bem-estar geral. Aqui se situa o Direito, que deveria ser um caminho para alcançar uma sociedade mais justa e igualitária, mas que, em grande parte dos casos, atua como um agente perpetuador das desigualdades, traduzindo o sentimento social machista e pouco preocupado com a garantia dos direitos humanos das mulheres.

Verifica-se comumente a formação de um discurso jurídico que não corresponde aos anseios das partes mais necessitadas da sociedade. Conforme salienta Streck (2002 apud SILVA, 2010), “o senso comum que domina o imaginário jurídico é construído a partir de um discurso que é vivido pelos usuários como um discurso universal, natural, óbvio”, havendo, dessa maneira, a predominância de conceitos estereotipados e discriminatórios. Assim ocorre com as variadas formas de violência de gênero e, primordialmente, com a violência sexual contra a mulher.

O tratamento dado ao estupro pelos operadores do Direito, em toda a persecução penal estatal, demonstra que a percepção do referido crime como corretivo aos desvios de conduta femininos ainda prepondera, em detrimento da visualização dos bens jurídicos realmente atingidos. Em realidade, quando da ocorrência de crimes dessa natureza, os órgãos de investigação e julgamento procuram verificar até onde a ofendida foi responsável ou contribuiu para a conduta delitiva do agente, para só então cogitar a punição merecida pelo ofensor.

Após a realização de pesquisa de campo na Delegacia da Mulher em Campinas, Nadai (2010, p. 4) concluiu que as representações de gênero permeiam as instituições de polícia de forma inconteste, refletindo em vários aspectos do seu cotidiano. Primeiramente, salientou o sentimento de inferioridade incutido nos profissionais da área no que tange à importância das delegacias especializadas em violência contra a mulher, consubstanciado na crença de que crimes dessa natureza carregam um menor potencial lesivo, merecendo, dessa maneira, uma menor atenção da sociedade. Nas palavras da pesquisadora, “é como se o plano de carreira legítimo dentro da corporação policial tivesse que passar por um tipo de violência tida como socialmente mais relevante e perigosa do que aquelas que chegam a DDM”.

Por fim, Nadai (2010, p. 6-9) assevera que:

Visivelmente, certas convenções de gênero e sexualidade passam a ser utilizadas pela polícia para construir o crime em complementaridade às tipificações legais. Marcados, não só por gênero e sexualidade, tais padrões de investigação se sobrepõem também a outros marcadores que constroem a vítima, em relação à sua idade, classe, violência sofrida e a relação com o autor. [...] As escrivãs, ao enquadrarem criminalmente o estupro, fazem-no colocando em prática certas convenções que produzem uma, entre muitas, distinções descritivas. Ou seja, deixam subentendido nos documentos que há Estupros e estupros, ou porque não, Vítimas e vítimas. Conseqüentemente, suas práticas terminam por convencionar certos padrões narrativos, contextuais e contingentes, que diferenciam crimes semelhantes.

A recepção nas delegacias especializadas geralmente é repleta de autoridades policiais que questionam o vestuário da vítima de estupro, o porquê de andar num local ermo sem companhia, a ausência de tentativas efetivas de pedir ajuda, entre outros tantos fatores que, segundo o conhecido discurso estereotipado, contribuem para a ação criminosa.

Da mesma forma se dá no âmbito judicial. O discurso que envolve os processos que têm por objeto crimes de natureza sexual, principalmente o delito de estupro, demonstra que toda a educação machista recebida desde as fases iniciais da vida não se irradia somente nas relações familiares e privadas, extrapolando, inclusive, as barreiras do exercício profissional. A forma como os operadores do Direito tocam os processos de estupro denota que a desigualdade de gênero, revelada principalmente no controle sobre o corpo da mulher e sua sexualidade, se impregna nos poderes instituídos, sendo, na verdade, por estes legitimada.

Nesse diapasão, Figueiredo (2002) explica que as decisões judiciais nos casos do delito tipificado no artigo 213 do Código Penal Brasileiro funcionam como mecanismo disciplinar para a mulher que não internaliza as práticas de auto-supervisão e auto-correção impostas para seu comportamento em sociedade. A autora explica, com brilhantismo:

De acordo com Foucault, diferentes discursos transformaram áreas como a sexualidade e o crime em objetos do saber científico e em alvos para práticas institucionais. Aplicando este ponto de vista aos julgamentos de estupro, podemos interpretar as práticas discursivas de juízes, por exemplo, como ferramentas de uma complexa pedagogia do comportamento, construída e posta em prática em parte pelo discurso jurídico. Esta pedagogia visa a supervisionar, disciplinar, educar e controlar a forma como homens e mulheres se comportam social e sexualmente. Desta perspectiva, um julgamento e uma decisão judicial não representam apenas a avaliação jurídica e a punição de um indivíduo isolado. O discurso de advogados, promotores e juízes representa também uma avaliação sociocultural do comportamento humano, o uso pedagógico de exemplos, e uma tentativa de recompor a normalidade e restaurar o pacto social.

A busca pela verdade nos processos de estupro corriqueiramente acarreta uma inversão da lógica jurídica dos processos criminais, uma vez que à observação sobre a vida social e sexual dos sujeitos do delito é dada muito maior importância do que à análise do próprio fato criminoso e de todas as suas circunstâncias. Conforme ressalta Andrade (2003, p. 98-99):

O julgamento de um crime sexual – inclusive e especialmente o estupro – não é uma arena onde se procede ao reconhecimento de uma violência e violação contra a liberdade sexual feminina nem tampouco se julga um homem pelo seu ato. Trata-se de uma arena onde se julgam, simultaneamente, confrontados numa fortíssima correlação de forças, a pessoa do autor e da vítima: o seu comportamento, a sua vida pregressa. E onde está em jogo, para a mulher, a sua inteira "reputação sexual’ que é – ao lado do status familiar – uma variável tão decisiva para o reconhecimento da vitimização sexual feminina quanto a variável status social o é para a criminalização masculina.

Assim, vê-se que o julgamento da moral sexual da ofendida costuma ser determinante para aferição da real culpabilidade do agente no caso concreto. Em realidade, o fato de a mulher ser um sujeito historicamente coisificado e dominado à luz dessa ordem cultural de supremacia masculina e modelos de condutas predeterminados faz com que todo o sistema funcione a partir do esclarecimento de questões tidas como fundamentais para que se possa processar e julgar o crime de estupro – por exemplo: como a vítima se comportou, se provocou a atitude delitiva, se tem uma reputação ilibada no seio social, etc. Quer dizer que, por mais típico, ilícito e culpável que seja o fato de estuprar alguém, a crueldade desse delito será dirimida caso fique demonstrado que a vítima não se enquadrava nos padrões impostos socialmente.

Para a vitimologia, entretanto, essa verificação sobre o comportamento da vítima não se trata da mera reprodução de preconceitos e estereótipos, senão da necessária observação de um aspecto que pode alterar toda a percepção do evento criminoso, a qual está preceituada, inclusive, como circunstância judicial, no artigo 59 do Código Penal Brasileiro. Segundo esse campo do saber, a análise da pessoa do sujeito passivo do crime de estupro se faz fundamental para que haja um justo julgamento sobre o fato delituoso, uma vez que há uma predominância de vítimas tidas como provocadoras quando da ocorrência de infrações dessa natureza.

Nas palavras de Greco (2004, p. 104), “o enfoque quanto aos crimes sexuais consiste em verificar se a vítima criou aquele risco para ela com sua própria conduta, ou se ela se colocou em uma situação que resultou um crime sexual”. Desse discurso, observa-se que há uma eminente justificação para o ato criminoso quando levado a efeito contra mulheres que violam o que é moralmente aceito. Para Souza (1998, p. 23), pode-se falar, por exemplo, em uma postura convidativa da mulher “volúvel e leviana que freqüenta, em trajes provocantes, lugares de reputação duvidosa, bebendo e confraternizando, de forma liberada”.

Malgrado a importância dos estudos de vitimologia para o âmbito penal, resta inegável que essa atuação do sistema de justiça criminal tem como conseqüência a duplicação da violência em face da vítima de estupro, visto que, além de toda a agressão física e psicológica sofrida quando da consumação do crime, o sujeito passivo ainda é obrigado a prestar contas de seu comportamento, na tentativa de provar sua idoneidade moral e sexual e, destarte, sua condição de verdadeira vítima do fato delitivo.

Dissertando sobre tal realidade, Andrade (2004, p. 75) argumenta que essa violência institucional decorre da ineficiência do sistema de justiça penal para a proteção da mulher vítima de estupro, o qual “não previne novas violências, não escuta os distintos interesses das vítimas, não contribui para a compreensão da própria violência sexual e a gestão do conflito e, muito menos, para a transformação das relações de gênero”.

Com efeito, o funcionamento de toda a persecução penal estatal corrobora a ideia de sua atuação como instrumento de controle da autonomia e da sexualidade feminina, muito mais do que como mecanismo hábil para assegurar a dignidade da mulher. O sistema de justiça criminal, assim, funciona como o que a autora denomina de continuum, uma complementação e legitimação aos meios informais de controle. Para Andrade (2004, p. 75):

Isto porque se trata de um subsistema de controle social, seletivo e desigual, tanto de homens como de mulheres e porque é, ele próprio, um sistema de violência institucional, que exerce seu poder e seu impacto também sobre as vítimas. E, ao incidir sobre a vítima mulher a sua complexa fenomenologia de controle social, que representa, por sua vez, a culminação de um processo de controle que certamente inicia na família, o SJC duplica, ao invés de proteger, a vitimação feminina, pois além da violência sexual representada por diversas condutas masculinas ( estupro, atentado violento ao pudor, etc.), a mulher torna-se vítima da violência institucional plurifacetada do sistema, que expressa e reproduz, por sua vez, dois grandes tipos de violência estrutural da sociedade: a violência das relações sociais capitalistas (a desigualdade de classe) e a violência das relações sociais patriarcais (traduzidas na desigualdade de gênero) recriando os estereótipos inerentes a estas duas formas de desigualdade, o que é particularmente visível no campo da violência sexual. A passagem da vítima mulher ao longo do controle social formal acionado pelo sistema de justiça criminal implica, nesta perspectiva, vivenciar toda uma cultura da discriminação, da humilhação e da estereotipia.

No mesmo sentido, Brito (2004, p. 168) assevera:

A questão fundamental, ao que parece, é o fato do sistema penal, por sua própria construção generizada, ser incapaz de proteger e contemplar os agravos e violências contra as mulheres, observadas sempre pela lente moral que esquadrinha seus corpos e condutas segundo o paradigma da "verdadeira mulher", acabando por vitimizá-las duplamente.

O fato é que a natureza de ciência social impõe ao Direito a finalidade de dirimir as injustiças produzidas no cotidiano das pessoas, visando à obtenção do tão falado bem comum. Infelizmente, porém, a formação e a atuação da maioria dos profissionais das ciências jurídicas revelam uma vontade quase imperceptível de alteração no status quo, padecendo da ausência da necessária reflexão sobre as desigualdades presentes no seio social

3.3. Análise de alguns julgados

As discriminações para com a mulher, advindas das representações de gênero, ainda encontram bastante espaço nas ementas de decisões das Cortes do país. Como já demonstrado, nos processos de estupro é dada muito maior importância à verificação da vida e dos perfis dos envolvidos no delito do que ao fato delitivo em si.

Assim, como dito, é comum ocorrer uma inversão no ônus da prova nos processos de estupro, haja vista que a vítima passa a ser a responsável por provar sua idoneidade moral e sexual, bem como que seu comportamento não acarretou a ação agressora.

Devido à natureza dos crimes sexuais, que geralmente são cometidos sem a presença de testemunhas, a palavra da vítima assume extrema importância, a qual, aliada aos demais elementos constantes dos autos, é tida como principal meio de prova. Vê-se, destarte, a corriqueira a decisão de processos que absolvem ou condenam a partir da credibilidade ou não que a conduta da vítima enseja no seio social.

Nesse diapasão, pode-se dizer que quando não há menção expressa sobre o mau comportamento da vítima para justificar a absolvição do réu, o preconceito é verificado a contrariu sensu, quando há condenação do acusado baseada principalmente na idoneidade moral e sexual da vítima.

Como exemplo, em recente julgado, na apelação criminal ACR 12868 RN 2009.001286-8[1], o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte confirmou a condenação do juízo de primeiro grau de um acusado de estupro, uma vez que não havia dúvidas sobre a honestidade da vítima. Segundo a referida Corte, “considerada a idade da ofendida, bem como não tendo restado comprovado tratar-se de pessoa promíscua, sendo inclusive virgem quando do delito, há de prevalecer a presunção de violência” (grifo nosso).

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, analisando a apelação RS Nº 70045425295, decidiu pela absolvição de um acusado de estuprar uma menor, haja vista a existência de experiência sexual da vítima, circunstância que, na opinião dos insignes magistrados, afastava a materialidade do crime:

APELAÇÃO CRIMINAL. crime contra a liberdade sexual. estupro. AUSÊNCIA DE VIOLÊNCIA. EXPERIÊNCIA SEXUAL ANTERIOR DA VÍTIMA. SENTENÇA ABSOLUTÓRIA. MANUTENÇÃO.

A prova dos autos mostrou-se insuficiente para embasar, com a certeza necessária, um veredicto condenatório. Percebe-se que o réu mantinha um relacionamento amoroso com a vítima, que afirmou ter se apaixonado pelo acusado, com a prática consentida de sexo. Não há nos autos qualquer indício de violência por parte do acusado. Ademais, a ofendida não era mais virgem quando começou a se relacionar com o réu, do que se conclui que já possuía experiência sexual, não se podendo afirmar que o réu a tenha seduzido. Não sendo possível, no processo penal, a condenação com base apenas em indícios e suposições, impõe-se a manutenção da sentença absolutória, com fundamento no art. 386, VII, do CPP. APELO DESPROVIDO. (ACR Nº 70045425295, Sétima Câmara Criminal, TJRS, Rel. Des. Carlos Alberto Etcheverry, Publicado em 26/04/2012)

Assunção (2009, p. 240-282) trouxe alguns exemplos extraídos de decisões judiciais país afora, a saber:

Observo, também, que o apelante, contanto à época do suposto crime, 41 anos de idade, jamais cometera, até então, qualquer conduta delituosa, sendo esta a única acusação que sofreu na vida. A vítima, vinte anos mais nova, nasceu aqui mesmo, em “A.”, tem instrução primária e admitiu experiência sexual anterior, com o namorado, com quem costumava manter relações sexuais usando camisinha, conforme consta de depoimento colhido no inquérito (fls. 20/21). Pode-se afirmar, portanto, que não se trata de uma jovem ingênua e despreparada para a vida. Afirmou, contudo, que antes do evento, mesmo sofrendo assédio constante por parte do apelante, às escondidas da patroa, nada relatou a esta.

As declarações de S.D.C, às fl. 112, atestam que a ofendida usava roupas impróprias e sedutoras, namorava vários rapazes ao mesmo tempo e sempre relatava o que fazia às outras pessoas da vizinhança. Outra questão de fundo é que o depoimento da vítima remonta inconsistente, não sendo comprovado que a relação sexual foi realizada sem seu consentimento.

Com estas considerações, da mesma maneira que o Ministério Público concluiu sobre uma possível tentativa de estupro; outra versão perfeitamente defensável e lógica é a de que a vítima que não é tão jovem, hoje com 23 anos de idade, poderia querer uma saída honrosa, já que foi surpreendida em companhia de um homem casado, no entrar da noite, no cerrado. Com estas considerações, nego provimento ao recurso, por entender, também, a prova insuficiente para uma condenação. É como voto.

O que se observa dos casos acima apontados é que a existência de dúvida sobre a ocorrência do fato criminoso se baseia no quão confiável é a palavra da vítima e esta confiabilidade, por sua vez, se edifica normalmente sobre seu conhecimento e experiência sexual.

Nas palavras de Ratton (2007, p. 9):

O “tipo de escolha” pela mulher a ser violentada pode atenuar ou agravar a crime em si, podemos imaginar que existem tipos de mulheres que não devem ser tocadas, ou ainda molestadas. A violência sexual praticada contra virgens, mães, esposas etc. não será tolerada. A saída que tem o agressor é a de tentar culpabilizar a própria vítima por seu ato. Neste sentido ele fará de tudo para denegrir a sua imagem perante aqueles que o julgam.

Verifica-se, ainda, que os tribunais pátrios costumam desconfiar bastante da palavra da ofendida no que se refere ao consentimento desta para o ato sexual, alegando que a negativa e as tentativas de fuga da vítima devem ser efetivas. É o conhecido discurso de que “o ‘não’ deve significar realmente ‘não’” e que se faz imprescindível que a mulher atue de forma incisiva para se livrar da agressão. Assim entendeu a Corte de Justiça do Estado do Paraná:

CONTRA A LIBERDADE SEXUAL - ESTUPRO - NECESSIDADE DE DISSENSO EFETIVO DA VÍTIMA - INOCORRÊNCIA - SENTENÇA ABSOLUTÓRIA CONFIRMADA - RECURSO DESPROVIDO.

1- "Para a tipificação do estupro exige a lei que a vítima, efetivamente, com vontade incisiva e adversa, oponha-se ao ato sexual. Seu dissenso ao mesmo há de ser enérgico, resistindo, com toda sua força, ao atentado à sua liberdade sexual. Não se satisfaz, pois, com uma oposição meramente simbólica, um não querer sem maior rebeldia." (RT 535/287). (ACR 1595957 PR. Terceira Câmara Criminal. TJPR. Rel. Des. Renato Naves Barcellos. Publicado em 25/05/2001)

Essa visão sobre a necessária resistência inequívoca da vítima é lastreada, inclusive, nas lições de renomados doutrinadores, a exemplo Rogério Greco (2010, p. 464), cujo entendimento é o que se segue:

Para que seja efetivamente considerado o dissenso, temos que discernir quando a recusa da vítima ao ato sexual importa em manifestação autentica de sua vontade, de quando momentaneamente, faz parte do “jogo de sedução”, por, muitas vezes, o “não” deve ser entendido como “sim”.

Além dos casos já mostrados, a jurisprudência brasileira ficou nacionalmente conhecida por algumas esdrúxulas decisões sobre casos de estupro, denotando a percepção machista sobre a construção da imagem da mulher pelo Direito Penal e por todo o sistema de justiça criminal, conforme se vê no exemplo trazido por Andrade (apud STRECK, 2004):

A vítima é analfabeta e se mostrou simplória nos contatos com este juízo... Não encontro nos autos provas suficientes para condenar o acusado Celso Alberto, embora reconheça não seja elemento sociável nem de boa vida pregressa. Entretanto, pelos outros delitos a ele imputados, está respondendo processo. Finalizando, custa a crer que o acusado, um rapaz ainda jovem e casado, tenha querido manter relações sexuais com a vítima, uma mulher de cor e sem qualquer atrativo sexual para um homem. Ante o exposto e com fundamento no art. 386, VI do Código de Processo Penal, absolvo o acusado Celso Alberto da imputação a ele feita na denúncia.

Outra mostra clara de como a Justiça brasileira já pecou na análise processual do delito de estupro foi o famoso caso do tratamento do estupro como cortesia, oriundo do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, cujo texto foi colacionado por Costa (2012, p. 14), in verbis:

Será justo, então, o réu Fernando Cortez, primário, trabalhador, sofrer pena enorme e ter a sua vida estragada por causa de um fato sem consequências, oriundo de uma falsa virgem? Afinal de contas, esta vítima, amorosa com outros rapazes, vai continuar a sê-lo. Com Cortez, assediou-o até se entregar (fls.) e o que, em retribuição lhe fez Cortez, uma cortesia...

Com efeito, boa parte das decisões judiciais nos processos de estupro costuma reafirmar a dinâmica da dominação masculina no seio social, reproduzindo os discursos que restringem a autonomia e a liberdade sexual da mulher. Os operadores do Direito que atuam nas instruções criminais muitas vezes apelam para a presença ou não de “deslizes” sociais das vítimas, para fundamentar suas teses. Nesse sentido, conclui Costa (2012, p. 16, grifo do autor):

Eis o que as célebres autoras Pimentel, Schritzmeyer & Pandjiarjian afirmam revelar a ideologia patriarcal machista em relação às mulheres, verdadeira violência de gênero, perpetrada por vários (as) operadores (as) do Direito, que mais do que seguir o princípio clássico da doutrina jurídico-penal - in dubio pro reo - valem-se precipuamente da normativa social segundo seus próprios e subjetivos valores, que definiram magnificamente como: in dubio pro stereotypo.


CONCLUSÃO

Ab initio, se faz fundamental destacar que a elaboração deste trabalho ratificou a força que as assimetrias de gênero ainda emanam no seio social, nos mais diversos aspectos da vida de homens e mulheres. Inconteste, também, que uma das nefastas consequências trazidas com as representações dos papéis masculinos e femininos em sociedade é o delito de estupro, o qual restringe a liberdade sexual da mulher, impondo-a a dominação sobre seu corpo e a anulação de sua vontade.

Como efeito, a mulher ofendida no crime em tela sempre ocupou uma posição subsidiária, de inferioridade, uma vez que, na maior parte do tempo, sequer foi vista como verdadeira vítima do fato delitivo. Como se observou, as diversas sociedades que conheceram e trataram do estupro fundamentaram de maneiras distintas a necessidade de punição para o delito, escanteando, na esmagadora maioria das vezes, a necessidade de proteção da dignidade sexual da mulher.

Nesse diapasão, no decorrer dos séculos a busca pela verdade quando da ocorrência do crime de estupro passava inexoravelmente pela análise da vida dos sujeitos envolvidos no crime, especialmente sobre o comportamento sexual da ofendida no seio social, que, na percepção da maioria das pessoas, poderia, por si só, ter provocado a ação delitiva.

Como demonstrado, esse tipo de prática era uma constante não apenas nos meios informais de controle, mas, pelo contrário, se irradiava pelos sistemas de justiça criminal de inúmeras sociedades. Isso aconteceu durante bastante tempo e, conforme visto, em que pesem os avanços no tratamento do crime, no Brasil, os operadores do Direito atuaram e ainda atuam reproduzindo estereótipos, levando para os tribunais os discursos preconceituosos sobre o delito de estupro.

Da análise dos julgados, viu-se que a conclusão sobre a culpabilidade do agente criminoso passa pelo exame minucioso da vida da vítima e do agressor, sendo certo que a credibilidade dada à palavra da vítima dependerá primordialmente de seu comportamento sexual. De fato, os tribunais brasileiros costumam ser muito mais vigorosos quando da aplicação de sanções ao estuprador de moças recatadas, “honestas” e sem qualquer experiência sexual, do que aos agressores de mulheres cuja moral é reprovável aos olhos da sociedade.

Assim, inegável o fato de que o Direito Penal constrói a imagem feminina reproduzindo todo o controle cultural sobre seu corpo e sua sexualidade. Se a mulher se enquadra nos padrões que a sociedade impõe como corretos e moralmente aceitos, ela merecerá uma proteção ampla e irrestrita do sistema de justiça criminal. Todavia, quando desviante, à ofendida restará o ônus de provar sua condição de verdadeira vítima da infração, com todo um sistema trabalhando contra suas alegações.

Nesse sentido, impõe-se ver o estupro como crime de gênero porque perpetua as desigualdades, ressaltando que homens e mulheres devem se comportar de maneiras distintas em sociedade: aqueles, de forma sexualmente livre e dominante; estas, de maneira resguardada e prudente, dentro dos limites impostos socialmente à vivência da sua sexualidade, a fim de evitar agressões provocadas por possíveis desvios de conduta.

Cediço, então, que há uma premente necessidade de se buscar novos meios de dirimir os efeitos desse tratamento assimétrico, no anseio de se construir uma sociedade menos violenta. Um desses instrumentos pode e deve ser o Direito, que precisa atuar da maneira que realmente esperada, combatendo as injustiças existentes no seio social. Imprescindível, destarte, a preparação acadêmica de forma valorativa e a constante capacitação dos operadores da área, com a real preocupação em diminuir os abismos entre as prerrogativas destinadas ao homem e à mulher.

Os profissionais do Direito precisam, assim, atuar de maneira humanística, próximos à realidade social, que é cheia de injustiças e dores, na maioria das vezes provocadas pela falta de reflexão sobre os discursos culturalmente reproduzidos. 

Não há como se admitir o desenvolvimento pleno e pacifico de uma sociedade que determina desigualmente os lugares de cada um, punindo de maneira tão voraz aqueles que se afastam do caminho imposto. Se é sabido que as desigualdades não serão acabadas por completo, pelo menos nesse instante, é certo também que elas não serão diminuídas sem uma participação enérgica de todos nesse processo, principalmente daqueles responsáveis por emitir decisões que modificam destinos, como é o caso dos que fazem parte do mundo jurídico.


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Nota

[1] ACR 12868 RN 2009.001286-8, Câmara Criminal, Rel. Des. Judite Nunes, Publicado em 17/12/2010. Disponível em <www.tjrn.jus.br>. Acesso em: 15 out. 2012.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Rebeca Napoleão de Araújo; TORRES, Marina. O estupro enquanto crime de gênero e suas implicações na prática jurídica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3734, 21 set. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25354. Acesso em: 19 abr. 2024.