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Aspectos relevantes acerca do reconhecimento de pessoas ou coisas segundo o Código de Processo Penal e sua aplicação prática

Aspectos relevantes acerca do reconhecimento de pessoas ou coisas segundo o Código de Processo Penal e sua aplicação prática

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A preocupação acerca da credibilidade da palavra da vítima desafia discussões junto à doutrina e aos Tribunais. O ofendido, por estar em situação de extrema e incomum atividade mental, não se encontra em seu juízo normal no momento da aferição do delito.

A (DIS)FUNÇÃO PROBATÓRIA DO RECONHECIMENTO

Previsto no artigo 226, do CPP, o Reconhecimento de Pessoas ou Coisas está inserido no título reservado às provas do Processo Penal e tem por finalidade precípua a identificação de um suspeito ou de um objeto através da palavra da vítima ou das testemunhas.

Nas palavras de Guilherme de Souza Nucci (2007, p. 473), reconhecimento “é o ato pelo qual uma pessoa admite e afirma como certa a identidade de outra pessoa ou a qualidade de uma coisa.”.

Segundo prescreve Aury Lopes Júnior (2011, p. 667) “O reconhecimento é um ato através do qual alguém é levado a analisar alguma pessoa ou coisa e, recordando o que havia percebido em um determinado contexto, compara as duas experiências.”.

Como bem afirma o douto jurista gaúcho, o termo “reconhecer” trata-se, partindo-se de um conceito puramente literal e ortográfico emanado por Dermival Ribeiro Rios (1997, p. 452), de “Conhecer uma pessoa ou coisa ao tornar a vê-la; Verificar a identidade por algum sinal; Afirmar a autenticidade.”.

Partindo-se de tal concepção, denota-se que o ato de reconhecimento de pessoas ou coisas possui um caráter de inflexibilidade em relação a quem deve figurar em sua parte ativa (reconhecedor) e em sua parte passiva (reconhecido).

Por suposto, considerando a necessidade de haver um reconhecimento, ou seja, uma recognição de algo que já se presenciou no tempo passado, a posição de reconhecedor ficará adstrita somente às pessoas que são concebidas como hipotéticas vítimas da infração penal apurada e, também, às eventuais testemunhas diretas que presenciaram o cometimento do delito.

No polo passivo do ato, ou seja, na condição de reconhecido, estará presente a pessoa suspeita de ser agente do delito apurado e/ou as coisas utilizadas para o ato e/ou aquelas que foram subtraídas, em casos de crimes que envolvam o patrimônio.

Por elementar que o caráter restritivo que se evidencia nas figuras do reconhecedor e reconhecido dá-se em razão do lógico entendimento de que, apenas quem esteve, no passado, envolvido no enredo do delito (quer seja como vítima ou testemunha), pode atestar quem e/ou quê compôs a cena do crime[1].

Tal modalidade indiciária/probatória pode acontecer tanto no período das investigações preliminares, quanto na fase instrutória do processo penal, bem como pode ocorrer, cumulativamente, em ambas as fases, sendo considerada pela ampla maioria da doutrina como indício na fase inquisitória e prova na fase processual.

Entretanto, para além das margens teóricas que revestem o instrumento (pré-)probatório em comento, pensamos ser indispensável que se proceda com uma avaliação sucinta em relação a como o reconhecimento de pessoas ou coisas é levado a efeito em diversas situações da vida prática (policialesca e forense).

De início, é essencial ressaltar que, por se tratar de uma prova intimamente dependente de (pre) conceitos oriundos da mente humana, o legislador, ao elaborar em nosso Código de Processo Penal a sistemática referente ao reconhecimento de pessoas ou coisas buscou afastar ao máximo a possibilidade de, sobretudo, ocorrer eventual equivoco na indicação do suspeito.

Para tanto, dentre outras diligências, fez constar expressa referência de que “a pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida.” (art. 226, I, do CPP), medida essa que busca impedir que exista uma deliberada e falsa indicação do reconhecedor a reconhecido que, evidentemente, não se alinhe às características realmente existentes (ou, no mínimo, expostas) na mente da vítima ou da testemunha.

 Além disso, o protocolo legal reservado à formação do (a) indício/prova ora analisado (a) prevê a colocação de pessoas semelhantes perfiladas ao principal suspeito (art. 226, II, do CPP), no momento do reconhecimento, previsão essa que busca, evidentemente, evitar a indução do reconhecedor a atrair-se pela figura da pessoa que seja mais conformada às suas linhas mentais.

Ocorre que, na prática, tais prescrições não vêm sendo cumpridas de maneira integralmente fiel.

Exemplo claro disso surge a partir da “criação” da modalidade do reconhecimento de pessoas através de fotografias, sobretudo no âmbito policial, na fase inquisitiva. Funciona da seguinte maneira: após ser considerada vítima ou testemunha de determinada infração penal, a pessoa assim entendida dirige-se até o Distrito Policial responsável pela investigação do crime; Lá chegando, lhe é disponibilizado um estoque de imagens (geralmente virtuais) de pessoas que já foram anteriormente capturadas e criminalmente identificadas, para que, com base nesse (restrito) rol de aparências, a testemunha possa “reconhecer” quem tenha, segundo sua lembrança, cometido a infração penal; Em caso positivo, é procedida a lavratura de um “auto de reconhecimento”, onde constará uma declaração firmada pelo reconhecedor e, ao lado, a fotografia do suspeito, da forma como foi apresentada à testemunha, bem como uma descrição oficial do modo como foi feita a recognição, sendo que tal documento passará a integrar os autos do inquérito/processo e, consequentemente, ser considerado(a) indício/prova válido(a).

Contudo, afastando-se da utilitária visão empregada nessa inusitada sistemática, é inegável que tal protocolo de reconhecimento delira das prescrições legais, fato esse que corrompe, no mínimo, sua legitimidade perante o prisma do princípio da legalidade.

Mais do que isso, a questão central da preocupação reside na palpitação de uma dúvida, traduzida na (in)certeza a que tal prova (?) passa a propiciar para o processo penal, eis que formada mediante a ausência de qualquer amparo legal e/ou científico que lhe sustente o cabimento ou a segurança.

Com efeito, a partir do momento em que se percebe a efetiva negligência legal no trato prático com o meio de prova do reconhecimento de pessoas ou coisas, é necessário questionar-se se tal mecanismo de demonstração é funcional ou disfuncional ao processo penal, vez que, sem dúvidas, o desleixo com a aplicação da lei penal, no caso, é capaz de dar margens a diversos problemas, como, por exemplo, a ocorrência de uma nulidade e, acima de tudo, do processamento, aprisionamento cautelar e eventual condenação de pessoa que não possuía qualquer vinculação com o real cometimento do delito.

De tal sorte, considerando a complexidade de alguns pontos importantes a serem considerados em relação ao tema do presente estudo, reservaremos a análise de questões específicas nos tópicos seguintes, sendo que a avaliação de cada uma dessas é fundamental para que se compreenda de maneira mais coerente e responsável a real importância desse meio de prova perante o processo penal moderno, bem como acerca dos (d)efeitos negativos que o descuido de sua aplicação pode causar, não só para o acusado, mas para toda a sociedade.


DA (DES)NECESSIDADE DE (SE POSSÍVEL) SEREM ALINHADAS PESSOAS SEMELHANTES AO SUSPEITO PRÉ-INDIC(I)ADO: COLOCANDO O (AB)USO DA EXCEPCIONALIDADE EM SEU DEVIDO LUGAR

Como dito, o art. 226, do Código de Processo Penal possui em seu teor as regras necessárias para que se perfecibilize o ato em que a vítima ou as testemunhas do delito apurado atribuirão à determinada pessoa a autoria do fato ou, ainda, que indicarão em meio às coisas apreendidas aquela que possui algum tipo de conexão com o ato criminoso.

Para que melhor se entenda o mencionado dispositivo, transcrevemos seu inteiro teor. Assim:

        Art. 226.  Quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma:

        I - a pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida;

        II - a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la;

        III - se houver razão para recear que a pessoa chamada para o reconhecimento, por efeito de intimidação ou outra influência, não diga a verdade em face da pessoa que  deve ser reconhecida, a autoridade providenciará para que esta não veja aquela;

        IV - do ato de reconhecimento lavrar-se-á auto pormenorizado, subscrito pela autoridade, pela pessoa chamada para proceder ao reconhecimento e por duas testemunhas presenciais.

        Parágrafo único.  O disposto no no III deste artigo não terá aplicação na fase da instrução criminal ou em plenário de julgamento. (GRIFO NOSSO)

Dentre as primeiras impressões evidenciadas a partir da leitura do art. 226, inicialmente, é possível verificar que o procedimento definido no dispositivo direciona-se não só ao processo penal em sua fase de dilação probatória (instrução). Com efeito, as noções estabelecidas pelo nominado artigo devem ser aplicadas, também, na fase de investigação preliminar. Ou seja: considerando que em nosso sistema a investigação preliminar é definida pela legislação processual como o inquérito policial[2], as disposições do art. 226 tem imperiosa aplicação também na fase inquisitiva do art. 4º e seguintes do CPP.

Dessa forma, ao ser iniciada a investigação preliminar através do inquérito, em havendo a necessidade de ser providenciado qualquer tipo de reconhecimento de pessoas ou coisas por parte da suposta vítima e/ou das testemunhas, é essencial que sejam respeitadas as fases previstas no art. 226, do CPP. E tal respeitabilidade deve atender não só ao cumprimento total e eficiente de todos os paradigmas dispostos nos incisos do mencionado artigo, mas, também – e preponderantemente – à sucessividade da metodologia, em verdadeira ordem cronológica.

Assim sendo, inicialmente, para que se repute válido o reconhecimento (seja no âmbito do inquérito policial ou na instrução do processo penal), é necessário que sejam seguidos os seguintes passos, os quais serão, por fins didáticos, elencados em alíneas:

  1. Inciso I: A pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida – É o primeiro ato a ser providenciado. Nas infrações em que inexistir flagrante delito ou não se evidenciar qualquer indício pré-concebido (filmagem, fotografia, desenho, etc.) deverá a autoridade lavrar termo pormenorizado acerca dos traços físicos/estéticos do suposto autor do fato indicadas pela vítima e/ou testemunha , devendo ser, ao fim, tal documento, firmado pela pessoa declarante. Com base nessa caracterização que será possível a identificação de um ou mais suspeitos, os quais serão ombreados no ato definido no inciso II.
  2. Inciso II: A pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la – Esse é o apogeu do procedimento. Nesse ato, devem ser colocados em linha o(s) suspeito(s) e outras pessoas semelhantes ao(s) acusado(s) para que, em meio à diversidade de figuras esteticamente semelhantes, possa o reconhecedor apontar, com precisão, o indivíduo que, de acordo com suas sinceras lembranças, teria cometido o delito. Importante salientar que a certeza do reconhecedor é critério básico de validade do ato. Pairando dúvida, a credibilidade do ato resta deformada.
  3. Inciso III: Se houver razão para recear que a pessoa chamada para o reconhecimento, por efeito de intimidação ou outra influência, não diga a verdade em face da pessoa que deve ser reconhecida, a autoridade providenciará para que esta não veja aquela – Na época da elaboração do CPP[3] o reconhecimento foi previsto para ser feito, via de regra, diretamente, estando a hipotética vítima e a testemunha em frente ao suspeito. Todavia, com a conscientização de que a exposição do ofendido perante o delinquente pode, além de ser um ato arriscado, proporcionar algum tipo de abalo no reconhecedor que atribule sua percepção involuntariamente (enganar-se) ou que obste seu interesse em manter a acusação (mentir por medo), a maior parte dos atos de reconhecimento na fase policial acontece sem um contato direto entre o acusado e a pessoa que tem o dever de indicar um autor do fato. São usados os famosos “vidros espelhados” para que não ocorra interação. Já na instrução processual, considerando o fato de que já há um suspeito eleito (já, então, definido como “réu”) e de que o acusado deve exercer irrestrito direito à imediato contraditório e ampla defesa, o reconhecimento se dá de maneira direta e perante o Juiz. Mais do que isso, o Parágrafo Único do inciso, IV, veda o reconhecimento feito de maneira indireta na fase da instrução processual ou no plenário do júri. De tal sorte, na fase processual, deve a suposta vítima ou testemunha indicar o autor do delito perante o próprio suspeito.
  4. Inciso IV: Do ato de reconhecimento lavrar-se-á auto pormenorizado, subscrito pela autoridade, pela pessoa chamada para proceder ao reconhecimento e por duas testemunhas presenciais – Trata-se de uma determinação peremptória do Código de Processo Penal em relação a inarredável necessidade de que, ao fim do reconhecimento, seja lavrado termo pormenorizando atestando os acontecimentos passados no ato, devendo ser o mesmo, ao fim, firmado pelo reconhecedor, pela autoridade e por duas testemunhas que presenciarem a realização da identificação, sob pena de nulidade do ato. A importância desse registro funciona de modo a impedir que o reconhecimento seja subvertido em sua finalidade ou tenha sua forma alterada, bem como para que haja segurança na voluntária indicação da vítima ou testemunha em relação a esse ou aquele suspeito perfilado.
  5. Parágrafo Único: O disposto no no III deste artigo não terá aplicação na fase da instrução criminal ou em plenário de julgamento – Intuitiva, a redação do artigo dispensa qualquer tipo de maiores explicações. Simplesmente, define que na fase processual (instrução ou plenário do júri) o reconhecimento tem de ser feito sem qualquer tipo de separação entre o reconhecedor e o reconhecido. A indicação será feita de forma presencial.

Ponto importante a ser destacado na análise ora proposta do art. 226, do CPP, reside em seu inciso II, no que tange a pontuação para o fato de que, no ato do reconhecimento por parte da vítima ou testemunha, se possível, deverão ser colocadas pessoas semelhantes ao lado do suspeito principal, ombreadas a este.

Sem embargo, muito embora considerável corrente jurisprudencial[4] advirta para o fato de que o art. 226, II do CPP referir para que a locução “se possível” indique para um caráter liberatório do evento investigativo em relação a similitude física dos perfilados, é fundamental ter em mente que o comentado trecho não se trata de uma dispensa total da ordem legal, mas sim para uma mitigação da cogência, em caso de extrema impossibilidade, devendo ser tal impossibilidade fundamentada pela autoridade realizadora do ato de forma razoável, através da lavratura do auto previsto no inciso III, do art. 226, do CPP.

Gize-se, que considerando o fato de que a fase policial inadmite a imposição do contraditório, é dever da escala administrativa comprovar a idoneidade dos procedimentos por ela gerados, pois, caso assim não se faça, a sonegação das garantias processuais penais (tanto para a acusação quanto para a defesa) é presumida.

Para além de mera simbologia, a necessidade de pareamento de suspeitos enquadrados à retratação formulada pela (sedizente) vítima em momento anterior funciona como uma forma de dotar a situação de imparcialidade e, ainda, de evitar o acondicionamento do raciocínio do ofendido reconhecedor a acusar aquele que mais se aproxima dos caracteres físicos por ele elencados na descrição prevista no inciso I, do art. 226, do CPP.

Trata-se, de fato, de evitar fomentar qualquer tipo de estimulação do reconhecedor a desenvolver uma Falsa Memória sugerida[5], eis que, efetivamente, a apresentação de apenas um suspeito que se enquadre nas características previamente elencadas pela vítima ou testemunha favorece – e muito – a (de)formação de uma ilusão mental baseada em mera semelhança e, não, em efetiva certeza do reconhecimento.

Nessa esteira, como já explicado, inobstante a legislação contemple a possibilidade extraordinária de o reconhecimento ser prescindido do pareamento de indivíduos semelhantes, há que se reputar que tal situação apenas é cabível ante a inexistência de pessoas parecidas ou dispostas a serem alinhadas para análise, devendo tal situação ser fundamentada pela autoridade policial no respectivo auto, posto que, enquanto excepcional, em forma analógica a diversas previsões que advertem para a necessidade de motivação expressa em casos de métodos extraordinários, como, i.e., o art. 185, § 2º do CPP[6], é necessário que haja fundamentação que sustente sua (in)aplicabilidade ao caso concreto.

 Sem embargo, no que se refere aos critérios das nulidades no processo penal, a questão do reconhecimento produzido sem a observância dos preceitos impostos pelo art. 226, do CPP – inclusive em relação ao perfilamento de pessoas semelhantes ou a razoável justificativa da impossibilidade –, é manifestamente nulo, com base no art. 564, IV do CPP[7].

Ora, se a prescrição legal é peremptória ao definir a metodologia de realização do reconhecimento, é necessário que os preceitos estampados no Código de Processo Penal sejam respeitados, pois, acima de meros padrões burocráticos, os fundamentos legais respeitam uma sequência lógica – praticamente cientifica – da realização de um processo penal razoável.

Sem receios, no processo penal, qualquer tipo de disparate entre o ato realizado e a definição legal redunda, logicamente, na redução das garantias, quer seja do acusador, quer seja do acusado.

Não se pode jamais esquecer que o baluarte do direito penal (material e processual) é o princípio da legalidade, o qual, em sua dorsal essência, preconiza que a pedagogia anti-criminal deve ser realizada de modo único e exclusivo sobre os trilhos dos paradigmas legais.

Dessa maneira, para que inexista qualquer tipo de irregularidade formal, reputamos que há, sim, a imprescindível necessidade de que sejam integralmente observados os referenciais determinados no art. 226, pois, além da necessária homenagem ao princípio da legalidade, o modelo metodológico definido do comentado dispositivo atende positivamente a padrões científicos, como, por exemplo, a ausência de indução do reconhecedor a indicar o sujeito que mais se aproxima das características anteriormente descritas (inciso II) e a não exposição da vítima ou testemunha a proceder com o reconhecimento perante a presença livre do suspeito em casos em que a pessoa se sinta ameaçada com a presença do hipotético autor do fato (inciso III).


O RECONHECIMENTO DE PESSOAS ATRAVÉS DE FOTOGRAFIAS E A LESÃO AO DIREITO DE INATIVIDADE DO SUSPEITO NO (PRÉ)PROCESSO PENAL

Na atual conjuntura verificada na fase pré-processual do processo penal brasileiro, não raro nos deparamos, na prática, com um procedimento alternativo de reconhecimento de pessoas, o qual se dá a partir da exposição de imagens de suspeitos na tela de um computador, onde a suposta vítima e/ou a(s) testemunha(s) analisa(m) a(s) figuras dos indivíduos ali exposto(s).

A esse respeito, muito tem se discutido acerca da (in)validade probante deste versátil mecanismo, sendo que doutrina e jurisprudência divergem contundentemente sobre o tema.

Existem dois posicionamentos, evidentemente antagônicos. A saber:

a) o primeiro, julga ser impossível deferir credibilidade a uma visualização meramente fotográfica para a efetivação de um reconhecimento válido, pois, para além de estrondosa irregularidade formal, tal método inviabiliza uma qualificada percepção nocional das testemunhas analistas, prejudicando, assim, a finalidade do ato. Nessa linha, adverte Aury Lopes Júnior (2011, p. 670) que o reconhecimento fotográfico é intoxicado de um latente caráter de inadmissibilidade:

Exemplo típico de prova inadmissível é o reconhecimento do imputado por fotografia, utilizado, em muitos casos, quando o réu se recusa a participar do reconhecimento pessoal, exercendo seu direito de silêncio (nemo tenetur se detegere). O reconhecimento fotográfico somente pode ser preparatório do reconhecimento pessoa, nos termos do art. 226, inciso I, do CPP, nunca como um substitutivo àquele ou como prova inominada.

b) O segundo, reputa que o reconhecimento levado a efeito partir da visualização fotográfica por parte da sedizente vítima ou das supostas testemunhas é digno de admissibilidade probante, diante da inexistência de qualquer especificação formal dos meios de prova em nosso processo penal. Exemplo da adoção desse raciocínio está em Fernando Capez[2] (2006, p. 347):

[…] doutrinariamente forçoso é concluir que o reconhecimento fotográfico (com evidente cautela) constitui, na realidade, mais uma das provas inominadas. No entanto, convém ressaltar que o reconhecimento fotográfico, isoladamente (sem outras provas), não pode ensejar uma sentença condenatória.

No mesmo pavimento, assevera Eugênio Pacelli de Oliveira (2007, p. 366):

O reconhecimento fotográfico não poderá, jamais, ter o mesmo valor probatório do reconhecimento de pessoa, tendo em vista as dificuldades notórias de correspondência entre uma (fotografia) e outra (pessoa), devendo ser utilizado este procedimento somente em casos excepcionais, quando puder servir como elemento de confirmação das demais provas. Há decisões na Suprema Corte admitindo o reconhecimento fotográfico (RT 739/546)

Perante a celeuma doutrinaria ora em reverência, raciocinamos em via congruente ao do primeiro entendimento, no sentido de que o reconhecimento feito através da averiguação de imagens fotográficas é inoportuno ao processo penal, sendo patente sua integral inadmissibilidade, ante a manifesta lesão que esta prática provoca ao direito de inatividade processual do acusado (nemo tenetur se detegere).

Todavia, não se pode negar que pode ser admitida a utilização de fotografias para que seja estabelecido um modelo prévio de reconhecimento, no sentido de que, com base nas imagens visualizadas, a vítima ou a testemunha delineie as características do suspeito para que, posteriormente, seja procedida a competente verificação presencial, nos termos estabelecidos no art. 226, do CPP.

Com efeito, afora de qualquer tipo de resistência pragmática a uma forma de reconhecimento não previsto na legislação processual penal, consideramos que a imputação formal de um suspeito através de uma simples fotografia compromete a segurança jurídica do ato, ao passo que a exposição de imagens estáticas de diversas pessoas semelhantes pode, sem sombra de dúvidas, embaralhar a consciência de uma já traumatizada vítima (ou testemunha) e dar margem à eventual indicação equivocada de um indivíduo que, não obstante já possuir passagens nos protocolos policiais[8], pode não ter concorrido na infração penal apurada.


DO PROCEDIMENTO DE RECONHECIMENTO EM AUDIÊNCIA OU EM PLENÁRIO DO TRIBUNAL DO JÚRI

O Código de Processo Penal, na regulamentação do reconhecimento de pessoas em audiência ou no Plenário do Tribunal do Júri, traz apenas uma especificidade, consistente na inaplicabilidade do inciso III de seu artigo 226, que permite a utilização de artifício para impedir que o acusado, durante o ato de reconhecimento, consiga visualizar a testemunha ou o ofendido, causando-lhe intimidação ou outra influência.

Relegada a crítica à exceção para momento oportuno, verifica-se, prontamente, que a referida regra, contida no parágrafo único do artigo 226, impõe uma conclusão lógica, obtida a contrario senso: as demais formalidades previstas nos incisos I, II e IV do artigo 226 devem ser, obrigatoriamente, observadas no reconhecimento realizado em audiência ou em plenário.

A conclusão é reforçada pelo fato de o artigo 226, caput, não distinguir o reconhecimento realizado na fase pré-processual daquele realizado em juízo, trazendo uma regulamentação uniforme para os dois casos, salvo a excepcionalidade contida em seu parágrafo único. Ora, como se extrai da teoria geral do Direito e do disposto no artigo  11, inciso III, da Lei Complementar n. 95 de 1973, os incisos e parágrafos estão interrelacionados com o caput do artigo, que serve como vetor interpretativo.

Desse modo, por respeito ao devido processo legal (CRFB/88, art. 5º, LIV - “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”), quando houver a necessidade de se realizar o reconhecimento de pessoas em audiência ou em Plenário, deverão ser observadas as formalidades previstas no artigo 226, incisos I, II e IV do Código de Processo Penal, sob pena de a prova ser considerada ilícita e, portanto, inutilizável para a formação da convicção do julgador.

Todavia, embora a clareza da regra dispense maiores digressões interpretativas, a jurisprudência de nossos Tribunais Superiores se formou em sentido contrário, sendo posição dominante no Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça a concepção que reputa que o reconhecimento realizado em juízo prescinde das formalidades previstas no artigo 226 do Código de Processo Penal, já que realizado sob o crivo do contraditório.

Indo por tal enfoque, assim pontuou o Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o AgRg no Ag nº. 972.072/SC, afirmando que a instrução processual, por sua própria natureza contraditória, prescinde da formalidade do reconhecimento, afastando eventual defeito procedimental em razão da inobservância do ritual previsto no art. 226. Assim:

PENAL. AGRAVO REGIMENTAL. ALEGAÇÃO DE NULIDADE NO ATO DE RECONHECIMENTO DO ACUSADO. IMPROCEDÊNCIA. PEDIDO DE ABSOLVIÇÃO. EXAME APROFUNDADO DAS PROVAS. VEDAÇÃO NA VIA ELEITA. CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS DESFAVORÁVEIS. PENA-BASE FIXADA ACIMA DO MÍNIMO LEGAL. REGIME MAIS GRAVOSO. POSSIBILIDADE.

1. Não se proclama a existência de nulidade do ato de reconhecimento do agravante, visto que sua condenação está amparada em idôneo conjunto fático-probatório, notadamente nos depoimentos prestados na fase judicial, impondo-se notar que o reconhecimento realizado com segurança pelas vítimas, em juízo, sob o pálio do contraditório, prescinde das formalidades previstas no artigo 226 do Código de Processo Penal.

2. A análise do pedido de absolvição por falta de provas demandaria o exame aprofundado das provas, providência incompatível com a via estreita do recurso especial.

3. Havendo circunstâncias judiciais negativas a recomendar o regime mais gravoso, mostra-se correta a estipulação do regime fechado, de acordo com o que preceitua o art. 33, §§ 2º e 3º, do Código Penal.

4. Agravo regimental a que se nega provimento.

(AgRg no Ag 972.087/SC, Rel. Ministro PAULO GALLOTTI, SEXTA TURMA, julgado em 26/05/2008, DJe 16/06/2008) (GRIFAMOS)

Alinhado a essa noção, igualmente se pronunciou o Supremo Tribunal Federal, no HC 77.576/RS:

EMENTA: HABEAS CORPUS. PENAL. PROCESSO PENAL. ÁLIBI. REPRESENTAÇÃO. OITIVA DE TESTEMUNHAS. RECONHECIMENTO DE PESSOAS. FORMALIDADES. REEXAME DA PROVA. 1. É inviável, nos limites do habeas, a verificação da ocorrência de álibi para demonstrar a inocência do paciente. 2. Nos casos de ação penal pública condicionada à representação, é suficiente a manifestação da vítima ou de seu representante legal, no sentido de ver desencadeado o processo. Não se exige formalidades para a representação. 3. A oportunidade para a defesa arrolar testemunhas, é a da defesa prévia (CPP, art. 395). O pedido para ouvir testemunhas em outro momento processual é absolutamente intempestivo. 4. O reconhecimento de pessoas, feito perante o juiz em audiência, é válido como meio de prova. Prescinde das formalidades previstas no CPP, art. 226, eis que ocorrido sob o princípio do contraditório. Ao contrário do que ocorre na fase pré-processual. No inquérito policial sim, deve ser obedecido o disposto no CPP, art. 226, com a lavratura do auto de reconhecimento. 5. O habeas não é meio para a revisão do processo penal. Inviável o reexame de prova no rito especial e sumário que o caracteriza. Habeas Corpus indeferido. (HC 77576, Relator(a):  Min. NELSON JOBIM, Segunda Turma, julgado em 02/02/1999, DJ 01-06-2001 PP-00077 EMENT VOL-02033-03 PP-00473) (GRIFAMOS)

É importante ressaltar que, no julgamento do remédio heroico acima citado, na edificação dos fundamentos que culminaram com a ementa supra exposta, restou vencido o Ministro Marco Aurélio, que menciona, em seu voto, que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, felizmente, nem sempre se alinhou ao ali decidido, citando o precedente vertido no HC 74.704/SP (DJ 18-05-2001), do qual foi Relator e que tem a seguinte ementa:

COMPETÊNCIA - HABEAS-CORPUS - ATO DE TRIBUNAL DE ALÇADA CRIMINAL. Na dicção da ilustrada maioria, em relação à qual guardo reservas, compete ao Supremo Tribunal Federal julgar todo e qualquer habeas-corpus dirigido contra ato de tribunal, ainda que não possua a qualificação de superior. RECONHECIMENTO - FORMALIDADES - NATUREZA - INOBSERVÂNCIA. As formalidades previstas no artigo 226 do Código de Processo Penal são essenciais à valia do reconhecimento, que, inicialmente, há de ser feito por quem se apresente para a prática do ato, a ser iniciado com a descrição da pessoa a ser reconhecida. Em seguida, o suspeito deve ser colocado ao lado de outros que com ele tiverem semelhança, a fim de que se confirme o reconhecimento. A cláusula "se for possível", constante do inciso II do artigo de regência, consubstancia exceção, diante do princípio da razoabilidade. O vício não fica sanado pela corroboração do reconhecimento em juízo, também efetuado sem as formalidades referidas. Precedentes: habeas-corpus nºs 42.957/GB e 70.936/SP, relatados pelos Ministros Aliomar Baleeiro e Sepúlveda Pertence, perante a Segunda e Primeira Turmas, com arestos veiculados nos Diários da Justiça de 12 de outubro de 1966 e 6 de setembro de 1996, respectivamente. PROVA - ÔNUS - CRIME. Discrepa a mais não poder da ordem jurídica em vigor argumento, em reforço à condenação, no sentido de que as testemunhas da defesa nada souberam esclarecer sobre o crime. Ao Estado-acusador, e somente a este, cumpre desincumbir-se da prova da existência e autoria do crime. SENTENÇA CONDENATÓRIA - FUNDAMENTAÇÃO - INSUBSISTÊNCIA - REVISÃO CRIMINAL - SUPLEMENTAÇÃO. Descabe aduzir, em respaldo ao decreto condenatório, fundamentos a ele estranhos e, portanto, lançados quando do julgamento da revisão criminal. Tratando-se de medida para a qual somente a defesa é legitimada, o acórdão proferido não é passível de servir de suplementação à deficiência, seja de que natureza for, do título judicial revisando. (GRIFO NOSSO)

A principal celeuma estabelecida em relação à (des)necessidade de ser aplicada a fórmula procedimental estocada no art. 226, do CPP, diz respeito ao fato de que, na forma do anteposto, a jurisprudência das cortes Superiores reputam que a imposição do contraditório na fase judicial da investigação penal (instrução processual) torna prescindível o peremptório e solene modo ritualístico previsto no indigitado dispositivo legal especializado.

Entretanto, para além do entendimento atualmente adotado pelas cortes superiores, reputamos equivocada a compreensão que afasta a aplicação do art. 226, do CPP, na fase judicial.

Assim concebemos, em razão de, inicialmente, inexistir qualquer tipo de salvaguarda no teor semântico que estratifica a norma emanada pelo referenciado artigo, objeto do presente estudo.

Efetivamente, ao promovermos uma leitura – quer seja acelerada e leiga, quer seja pormenorizada e técnica – não se vislumbra qualquer expressão que limite a aplicação do dispositivo à fase de investigação preliminar, havendo, pois, plenitude em sua incidência em relação a todo e qualquer ato de reconhecimento a ser realizado durante a integralidade da persecução penal.

 Sem dúvidas, considerando o fato de que a redação do art. 226, do CPP, é categórica ao impor que “Quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma […]”, sem que exista qualquer discriminação de aplicação do formato indicado na sequencia em específicas fases da cognição criminal, carece de razoabilidade pretender afastar da etapa Judicial tal formatação.

É de se notar que a existência do contraditório ao longo da instrução processual não se afigura como corolário do desdém à ritualística determinada pelo conteúdo do art. 226, do CPP.

A uma, porque a simples presunção da existência do contraditório, muitas vezes meramente formalizado a partir da presença de defensor dativo ou até mesmo ad hoc[9], não é capaz de, por si só, resguardar a mínima credibilidade na certeira indicação do acusado como a pessoa que, efetivamente, estava presente no cenário descrito na peça incoativa (denúncia ou queixa-crime).

No exercício prático do processo penal, no tocante a realização de audiências para a colheita de prova oral, a disposição cênica que se afigura impede, na maior parte das vezes, que a sedizente vítima ou testemunha tenha regular campo de visão para apreciar a figura do réu.

 Na oportunidade em que se encaminha para prestar depoimento perante o juízo da instrução criminal, o reconhecedor senta-se, inexoravelmente, defronte ao Magistrado Presidente da solenidade e em sentido transversal ao acusado, cenário esse que propõe o contato da suposta vítima e/ou testemunha com o acusado apenas em limitada visão periférica, sem que lhe seja requerida a frontal avaliação das características físicas do réu.

 Sem embargo, em não havendo momento específico reservado para que o depoente possa, de forma detida e pontualmente compromissada, efetivar – ou não – o reconhecimento do acusado durante a instrução criminal, tal questão restará consumida pela consagrada dialética estabelecida na solenidade, sobretudo para fins da indispensável coleta da prova oral, a qual é considerada a motivação mor da designação da audiência.

 Ora, não há como admitir que a inocorrência da realização de mecanismo explicitamente propugnado na legislação durante instrução criminal seja convertido ao entendimento de que, por tal inobservância, merecem restar convertidos aos status de “prova” as informações (re)colhidas na fase investigativa, relegando a instrução criminal à inevitável absorção de demonstrativo formado em época inquisitiva, ao arrepio da disposição do art. 155, do CPP.

 É necessário ter em mente que a viabilidade de condenação é umbilicalmente dependente da formação de “provas”, elementos assim entendidos como tais[10], não podendo os mesmos serem confundidos com meros indícios/peças informativas extraídas na zona inquisitorial da persecução penal e carenados de validade por força de evidente utilitarismo.

 A duas, em virtude de ser a fórmula do reconhecimento previsto no art. 226, do CPP, meio cientificamente mais seguro de (re)cognição da situação processualmente verificada, conforme se explicará no tópico “5”, que sucede o ora empenhado, para onde remetemos o leitor, evitando reprisar o assunto desnecessariamente.

 Questão pertinente a ser observada para fins da realização do reconhecimento, é o indispensável assentimento do réu para que sua figura seja alvo da apreciação de sedizente vítima e/ou testemunha.

 Totalmente inadmissível conceber a coação do acusado à participar da exposição presencial de suas características, ante o postulado constitucional do nemo tenetur se detegere, estabelecido constitucionalmente como Garantia Fundamental do acusado, na forma do art. 5º, LXIII.

 Sem dúvidas, considerando a existência do postulado que reserva ao imputado – pessoa que conserva a presunção de inocência – a prerrogativa de não ver sua vida influenciada pela persecução penal que lhe atribui conduta penalmente reprimida, não haveria lógica para que se impusesse ao réu o ônus de cooperar com a investigação criminal (em nível policial ou judicial), devendo, então, haver sua expressa aceitação em participar, na condição de objeto de verificação, do reconhecimento pessoal a que se refere o presente trabalho.

 Outro ponto a ser imprescindivelmente considerado, correlato à realização do reconhecimento durante as audiências, é a (des)necessidade de a suposta vítima e/ou testemunha se defrontar com o acusado sem qualquer tipo de separação, de forma direta, dividindo o mesmo reduto do suspeito, estando imediatamente próxima e alcançável ao acusado, conforme preconiza o parágrafo único, do art. 226, do CPP.

 Segundo parte da doutrina, não obstante a existência de postulados principiológicos que, corretamente, pautem o decurso da investigação criminal, sobretudo o do princípio da não-culpabilidade, que preconizem que o réu não merece ser considerado perigoso por sua simples condição de imputado, no âmbito cotidiano, temos ciência de que determinados casos guardam dificuldades quanto ao encorajamento do reconhecedor em apontar o reconhecido de forma presencial-interativa, sem a existência de métodos de apartamento, tais como os vidros espelhados.

Daí, então, porque, tal seleção de pensadores defende o afastamento da obrigatoriedade de ser procedido o reconhecimento de modo direto, para que seja reservado ao ofendido ou à testemunha mínimos níveis de tranquilidade para exercitar a indicação que lhe compete. Raciocinando dessa forma, temos Guilherme de Souza Nucci (2007, p. 476): 

É nítida a finalidade da lei em preservar a pessoa colocada na difícil situação de reconhecer outra, normalmente um criminoso – e perigoso –, submetendo-se a situações de constrangimento de toda a ordem e impedindo-a, até mesmo, de proceder à formação da prova com a isenção e idoneidade demandadas pela busca da verdade real no processo penal. Assim, é totalmente incompreensível a vedação estabelecida para a preservação da imagem do reconhecedor frente ao reconhecido em juízo.         

Trafegando em sentido idêntico, verifica-se a preleção de Fernando Capez (2006, p. 348):

Por outro lado, atendo aos princípios do contraditório e da ampla defesa, e ciente da natureza acusatória do processo criminal brasileiro, pela qual o acusado tem o direito de conhecer todas as provas contra si produzidas, a lei proibiu a aplicação do mencionado artigo III em juízo, quer em plenário de julgamento, quer na fase de instrução criminal (CPP, art. 226, parágrafo único). Assim, a vítima ou testemunha terá de efetuar o reconhecimento frente a frente com o acusado, o que pode afetar o alcance da verdade real. Na prática, principalmente em processos crime de roubo, nos quais a palavra do ofendido assume valor preponderante, já que não conhece o réu e nem tem interesse em prejudica-lo, o inciso III do art. 226, tem sido largamente aplicado em audiência, sem que até hoje se tenha determinado a nulidade.

           

   E persiste em sua obra o renomado processualista, afirmando inexistir qualquer tipo de nulidade em situações onde, em audiências de instrução com destinação ao juízo monocrático ou em plenário que se direcione à jurados, seja aplicada a regra do inciso III, do art. 226, do CPP (2006, p. 348):

Tecnicamente seria uma prova ilegítima, dado que afronta norma de caráter processual; contudo, em atenção ao princípio da verdade real, da proteção ao bem jurídico e da proporcionalidade (também aplicável pro societate), entendemos não existir qualquer nulidade nesta prova. Reforça este entendimento o disposto no art. 217 do CPP, que autoriza a retirada do réu da sala de audiências, sempre que estiver incutindo fundado temor na testemunha ou vítima.

    Muito embora mereçam irrestrita deferência em relação ao posicionamento que adotam, no que se refere a inaplicabilidade do parágrafo único, do art. 226, do CPP, reputamos não se revestir de coerência a linha adotada pelos autores acima referidos.

   Percebe-se que ambos, ao justificarem as bases sustentadoras de seu entendimento, recorrem a conteúdos alienígenas e/ou ultrapassados do processo penal, tais como a verdade real e o princípio do in dubio pro societate.

  Ocorre, que os conceitos distanciam-se do processo penal enraizado em uma Constituição democrática como a que atualmente vige em nosso país, a qual, em nenhum momento, indica a existência de possibilidade de, defronte a dúvidas, ser a condição do réu alterada em “favor da sociedade” (in dubio pro societate) ou preconiza a possibilidade de um processo que possua a sobre-humana capacidade de revolucionar o tempo e recriar, no presente, um evento pretérito, em sua integral realidade, sem qualquer possibilidade de interferência (princípio da verdade “real”). 

  Ao inverso, a Carta Magna de 1988 irradia de si conceitos como processo pautado por contraditório e ampla defesa (art. 5º, LV), presunção de não-culpabilidade (art. 5º, LVII) e, acima de tudo, a legalidade penal (art. 5º, XXXIX).

  Dessa maneira, não há como, ao arrepio da norma penal vigente e baseado em postulados provenientes de local diverso da atmosfera constitucional, pretender afastar a aplicabilidade do parágrafo único, do art. 226, do CPP.

  Indo além de hipóteses isoladas em casos onde, eventualmente, se verifique receio da testemunha ou vítima em reconhecer o acusado, a aplicação do inciso III, do art. 226, na fase judicial, afigura-se incorreta e impraticável, na medida em que, além de negar vigência a inequívoco conteúdo legal, ainda cerceia do réu o direito de exercitar o contraditório perante o ato a que se propõe a realizar.

 Em razão da inabalável premissa do exercício do contraditório e da ampla defesa no processo judicial, mais do que simples apego burocrático, propugnar a aplicabilidade plena do parágrafo único atende ao fato de que, no âmbito do Poder Judiciário, é prerrogativa do acusado conhecer, de imediato, as imputações que lhe são atribuídas, para que possa repeli-las de pronto, evitando a preclusão da possibilidade do exercício de seu ônus processual.

 Sem embargo, ao se ver separado do reconhecedor, o reconhecido limita-se a obedecer eventuais ordens que lhe serão conferidas ao longo do ato, sendo-lhe tolhido ou, no mínimo, profundamente reduzido seu direito de autodefesa, conquanto não possa designar suas atitudes a partir da própria percepção.

Assim, por exemplo, a acusado inocente que seja fortemente semelhante com o real agente da infração penal, é vetada a possibilidade de expressar-se corporalmente da forma que lhe favoreça repudiar a similitude indicada pela testemunha ou vítima que, erroneamente, já tenha, em contexto inquisitivo, lhe atribuído a autoria de crime que não cometeu.

 Em consórcio ao entendimento por nós adotado, assim leciona Eugênio Pacelli de Oliveira (2007, p. 366):

O procedimento previsto no art. 226, III, do CPP, fundado no receio que a testemunha possa ter em relação à pessoa a ser reconhecida, é feito de modo sigiloso, isto é, impedindo que o reconhecido possa ver aquele que o reconhece. Em razão disso, a própria legislação estabelece não ser possível tal procedimento em juízo (art. 226, parágrafo único), em obediência às exigências da ampla defesa.

   Caso se exclua, efetivamente, a observância do parágrafo único, do art. 226, ter-se-á, sem dúvida, uma repetição do ato realizado no Distrito Policial, sem a homenagem da instantânea possibilidade de autodefesa do réu, tornando-se o reconhecimento, então, frívola formalidade, repetitiva e pragmática, sem em nada acrescentar na (re)cognição do juízo mediante a sintetização do exercício do contraditório, razão porque concebemos ser inequívoca a necessidade de o reconhecimento, na fase judicial, ser promovido mediante avistamento direto, sem a existência de mecanismos de alienação do acusado à pessoa que está a lhe avaliar e, eventualmente, atribuir-lhe a autoria de determinado delito.


POR( )QUE (DES)CRER NA VÍTIMA(?)

É comum, na prática penal, a assertiva de que, nos delitos cometidos clandestinamente, sem a provável presença de testemunhas – como ocorre usualmente nos crimes sexuais – a palavra do ofendido adquire especial relevo para a instrução processual; contudo, tal afirmação vem sempre acompanhada de uma outra: a versão da ofendido deve estar em consonância com os demais elementos de prova colhidos ao longo do processo.

A necessária aproximação de um dado mnêmico, incluído o reconhecimento de pessoas, com outros elementos de prova colhidos ao longo da investigação e da instrução criminal, porém, não deve ser exclusiva para o depoimento do ofendido.

Sabidamente, o relato oral de um fato pretérito, que se submete aos mecanismos construtivos da personalidade em seu processo de exteriorização, bem como às próprias falhas de memória, está sujeita a distorções e falsas representações. Ainda pior, a prova oral estará sempre sujeita a mentiras (voluntárias), o que pode ser compreendido pelo recurso mental da exposição de um dado fictício como sendo verídico, ou seja, de uma situação que não existe ou não existiu no plano fático mas que, porém, é salientada pela pessoa como algo que efetivamente ocorreu.

Questão relevante a ser ressaltada no reconhecimento de pessoas ou coisas (e, também, em todas as provas dependentes de testemunhos) está situada na questão das já conhecidas “falsas memórias”.

São as falsas memórias, em síntese, a ocorrência de lembranças na mente de determinada pessoa, a qual, inobstante seja compreendida pelo indivíduo como sendo algo que realmente aconteceu, trata-se de um dado pretérito falso.

Tal fenômeno pode ocorrer de duas formas. São elas as falsas memórias espontâneas e as falsas memórias sugeridas. Sobre o tema, expõem com clareza Lilian Milnitsky et. al. (2010, p. 25):

As FM [falsas memórias] podem ocorrer tanto a uma distorção endógena, quanto por uma falsa informação oferecida pelo ambiente externo. Loftus e Binet, por exemplo, realizaram estudos em que apresentaram deliberadamente uma informação falsa, após a apresentação do evento original. Estudos com esse levaram a conclusão que a memória pode sofrer distorções, tanto fruto de processos internos quanto externos. Assim, as FM [falsas memórias] passaram a ser classificadas conforme a origem do processo de falsificação de memória, sendo denominadas FM espontâneas e FM sugeridas.

São, enfim, as falsas memórias (FM), elementos prejudicadores da concepção de que uma pessoa possui em relação aos eventos que, de alguma forma, (não) foi capaz de ter contato ao longo de sua existência.

A título de exemplo de casos de falsas memórias, pode-se narrar a cotidiana situação de uma pessoa que possui plena certeza que deixou seus óculos dentro do estojo, sobre a cômoda de seu quarto. Entretanto, quando essa mesma pessoa vai em busca de seu óculos no local em que, nos termos de sua memória, havia deixado o utensílio, não o encontra. Tal situação evidencia a ocorrência de uma falsa memória espontânea, onde o indivíduo, através de uma distorção mental endógena, concebe a realidade do passado de forma diversa da que realmente ocorreu (STEIN, 2010, p. 25).

Outro caso de falsas memórias que pode demonstrar sua ocorrência durante o cotidiano, decorre de situações em que a pessoa está em iminente dispersão de atenção e, após algum tempo, é chamada a rememorar os fatos. Aqui, pode-se recorrer ao exemplo de alguém que chega após seu expediente de trabalho com diversas sacolas de compras em frente à porta de seu apartamento e dividindo a atenção entre o ato de acender a luz, achar no molho a respectiva chave da fechadura, de evitar pisar no vaso de plantas localizado ao lado da porta e, ainda, de manter as compras nas mãos. Ocorre que, no outro dia, pela manhã, o síndico do prédio informa ao nosso personagem que a mencionada planta foi quebrada e questiona se foi ele (o personagem) quem causou o dano. Inicialmente, nosso exemplo reluta e afirma, ainda, que foi extremamente cuidadoso para não esbarrar na folhagem. Todavia, após alguns argumentos apresentados pelo síndico, a pessoa passa a acreditar que é, sim, responsável pela danificação no objeto.

Tem-se, na descrição acima, um exemplo de falsa memória sugerida.

Em relação ao processo penal e, em específico, ao reconhecimento de pessoas ou coisas, a ocorrência de falsas memórias é algo que, sim, pode ocorrer, sobretudo considerando o fato de que, no procedimento em estudo, existe um questionamento direto e objetivo da vítima do delito para que, diante da perfilação de mais de um suspeito, aponte quem foi a pessoa que lhe causou ofensa.

Nesse ponto, surge a questão: é possível acreditar na vítima?

Não há como negar que a vítima chega ao processo diante de uma ampla carga sentimental, delineada, basicamente, por duas principais linhas, que são a pretensão de ver punida a pessoa que lhe causou o mal e o receio de se deparar, novamente, com o indivíduo que lhe causou traumas graves, como, por exemplo, violações sexuais, lesões corporais graves, ameaças, etc.

Daí, então, surge a necessidade de que se busque, através dos meios previstos no Código de Processo Penal, minimizar o risco da ocorrência de uma falsa memória na vítima ou na testemunha que procede com o reconhecimento.

A esse respeito, como já abordamos no tópico “2”, surge a imperativa necessidade de que, no ato de reconhecimento, serem colocados pessoas semelhantes a descrição previamente declarada pela vítima ou pela testemunha.

Através de tal sistemática, visou o legislador – com inteligência, ao nosso sentir – reduzir a indução da vítima ou da testemunha acerca de um reconhecimento errôneo e praticado mediante o enquadramento artificial da memória do reconhecedor com a imagem que lhe apresentada.   

Imaginemos o exemplo de uma situação em que ocorreu um crime de sexual[11] onde a vítima é arrebatada em meio a um ambiente de pouca luminosidade, na penumbra, por um homem que a mesma descreveu na ocorrência policial como sendo caracterizado por uma altura aproximada de 1,80m e cabelos compridos até o ombro. A descrição é genérica, pois, tendo em vista a falta de condições de visibilidade e o momento extremo da consumação do crime a vítima não pode apreender maiores informações visuais sobre o agente do crime.

Assim, no ato de reconhecimento, deverão ser ombreados suspeitos que, preferencialmente, ostentem as características indicadas pela vítima, sob pena de ocorrer um incontestável processo de indução de sua memória ao atribuir a imputação aquele que mais se aproxima da configuração alojada em sua mente e previamente descrita.

Ao defrontar-se com mais de uma pessoa adequada ao padrão estético que anteriormente descreveu, a vítima ou a testemunha pode, diante disso, identificar em meio aos perfilados aquele que possui maior similitude com sua memória, minimizando, assim, os riscos de atribuir a pessoa errada a autoria do delito.

Em caso contrário, ou seja, se for colocada, deliberadamente, apenas uma pessoa com as características descritas, ocorrerá um natural processo mental de identificação da vítima ou da testemunha com a única pessoa que se mostre compatível com as linhas descritivas preteritamente elencadas pelo reconhecedor, caso em que, surgirá uma inegável possibilidade da ocorrência de uma falsa memória sugerida, eis que através de um estímulo externo a pessoa (vítima/testemunha) compreenderá que, de fato, lembra da situação, quando, na verdade, apenas adequou a amostra momentânea da realidade à sua expectativa mnêmica (STEIN, 2010, p. 25).

Sobre o tema, o físico Leonard Mlodinow no livro intitulado Subliminar: como o inconsciente influencia nossas vidas afronta a questão de forma científica e esclarecedora. Ao tratar dos temas lembrança e esquecimento o cientista pondera sobre os equívocos ocorridos em testemunhos prestados por vítimas ou testemunhas em processos criminais. Relata o autor que, pasmem, em 20 a 25 % das vezes as testemunhas fazem uma escolha em que a polícia sabe ser incorreta, uma vez que o procedimento de reconhecimento é feito sem a observância do perfilamento de pessoas semelhantes ao suspeito principal o que, portanto, induz à indicação. (MLODINOW, 2013, p. 67).

Mlodinow nos dá, ainda, o exemplo de uma jovem chamada Jennifer Thompson, a qual asseverou categoricamente ter sido estuprada por determinado homem, chamado Ronald Cotton, simplesmente em razão de que o mencionado suspeito trabalhava num restaurante próximo ao apartamento da vítima (local do crime), por ter ele antecedentes criminais, pelas características físicas de Ronald serem compatíveis com a descrição de Jennifer à Polícia mas, sobretudo, em razão de o reconhecimento ter sido considerado como a prova capital do processo, acima, inclusive, dos testes periciais de seu cabelo e de seus fluídos vaginais, os quais sequer foram inicialmente realizados.

Ocorre que, meses após ter sido condenado à prisão perpétua, Cotton, ao trabalhar na cozinha da prisão, conheceu Bobby Poole, homem que guardava semelhança física com Ronald (e, portanto, com a descrição de Jennifer) e que cumpria pena pelo crime de estupro. Daí, então, ao indagar Poole sobre seus crimes, Cotton ouviu de seu companheiro de prisão a confissão (em tom de autoproclamação) sobre o estupro de Jennifer. Com a confissão feita na penitenciária, foi realizado novo julgamento a pedido de Cotton (algo que, no Brasil, seria uma revisão criminal) e Jennifer, comparando de modo presencial e simultâneo as figuras de Poole e Cotton, reafirmou ser o último o culpado pelo estupro que sofreu.

Persiste Mlodinow, expondo o desfecho do caso, no sentido de que após sete anos da reavaliação do caso de Ronald Cotton, o material coletado de Jennifer na noite do crime pode ser, finalmente, comparado com o de Poole e, assim, reconhecida a inocência de Cotton.

A questão toda se dá, sem dúvidas, em razão de que a partir do momento em que a vítima ou testemunha se depara com uma pessoa meramente semelhante às linhas gerais captadas por sua memória, ocorre uma inevitável adequação da figura às lembranças e, então, após alguns dados complementares –  como, por exemplo, a informação de que o suspeito já cumpriu pena ou possui antecedentes criminais –  vem a (falsa) certeza da imputação.

Novamente nos valemos da lição de Mlodinow (2013, p. 67) para caracterizar a situação, sendo que o autor utiliza-se do exemplo do caso de Jennifer Thompson para retratar a problemática do reconhecimento falho:

Na verdade, estudos experimentais nos quais pessoas são expostas a falsos crimes sugerem que, quando o verdadeiro culpado não está presente, mas da metade faz exatamente o que Jennifer Thompson: escolhem alguém de qualquer forma, selecionando a pessoa que mais se aproxima da lembrança que têm do criminoso. Como resultado dessas questões, identificações falsas de testemunhas parecem ser a principal causa de condenações indevidas.

A preocupação acerca da (ausência de) credibilidade da palavra da vítima é algo que, há muito, desafia discussões junto à doutrina e aos Tribunais. A questão se revela melindrosa, ao passo que não se pode, de plano, desprezar que a vítima conhece (e muito) a relação passada no ato do crime e seus contornos aparentes, uma vez que é, após o autor do crime, o primeiro ser que conhece da infração penal.

Contudo, por outro lado, surge a noção de que o ofendido, por estar em situação de extrema e incomum atividade mental, não se encontra em seu juízo normal no momento da aferição do delito. Via de regra, qualquer pessoa que se encontre sob a coação de uma arma de fogo, de uma arma branca, de um pedaço de madeira, enfim, que esteja diante de uma grave ameaça à sua integridade física ou, ainda, sob o intuito de evitar o acontecimento do crime[12], compreenderá a situação de uma maneira peculiar e, geralmente, sem a acepção necessária para gerar um relato seguro ao processo penal.

O Innocence Project[13], grupo de estudos filiado à Escola de Direito Benjamin Cardozo, situada em Nova Iorque, Estados Unidos, e que foca na análise de casos de condenações de inocentes, salienta que o reconhecimento do acusado através da vítima é responsável pela maior parte dos “erros judiciários”, algo em torno de 75 %.

Segundo a percepção dos pesquisadores, o “Eyewitness Misidentification” (testemunho ocular equivocado) é a principal causa de condenações injustas dos Estados Unidos, posto que derivam de relatos de testemunhas oculares, provas essas que, perante o Juiz ou perante o Júri, são persuasivas e induzem a julgamentos regulares, porém, após a comparação com dados genéticos ou demais provas, apresentaram-se equivocados.

Daí, então, porque, muito embora a palavra da vítima ou da testemunha mereça ser valorada em meio ao processo, para que haja um mínimo de certeza na condenação do acusado é necessário mais do que a mera afirmação. É fundamental que exista a evidenciação concreta acerca da indicação da vítima, sendo a verificação (con)formada além do mero “sim” ou “não”. Deve a vítima ou testemunha revestir a indicação de maiores detalhes, tais como gestos ou atitudes do autor do fato, detalhes peculiares (cicatrizes, falhas no couro cabeludo, deficiências físicas, etc.) ou, complementarmente, detalhes como o uso de determinada roupa ou artefato (joias, roupa íntima, óculos) os quais podem fomentar buscas e apreensões.

Não há dúvidas de que um detalhamento tão rico, em grande parte dos casos, é algo inviável, em razão de condições que fogem do domínio do ofendido – ou dos que presenciam o delito – e que atribulam sua percepção, tais como a baixa luminosidade, a rapidez do ato ou, ainda, o extremo pavor nos crimes de grave ameaça. Todavia, não obstante tais situações, é essencial que a investigação proceda com a maior extração possível de detalhes contidos na memória do reconhecedor, ao passo que pequenas caracterizações podem, efetivamente, determinar a culpa ou a inocência do suspeito e, consequentemente, sua condenação ou sua absolvição.

O que não se pode, de fato, é manter um padrão objetivo no reconhecimento, meramente estratificado na indicação simples e peremptória da vítima ou da testemunha, sem que se proceda com qualquer tipo de verificação complementar, porquanto tal mecanismo é, evidentemente, carente de um nível mínimo de credibilidade, suficiente para formar um seguro juízo de convicção, quer seja para o Juiz togado, quer seja para o Júri/Conselho de Sentença.


BIBLIOGRAFIA

CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 13ª ed. rev. e atual. Saraiva. São Paulo, 2006.

GRECO FILHO, Vicente. Manual de Processo Penal. 8ª ed. rev. atual. e ampl. Saraiva. S

LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal e Sua Conformidade Constitucional. 8ª edição. Lumen Juris. Rio de Janeiro, 2011.

________. Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal.Lumen Juris. Rio de Janeiro. 2001.

MLODINOW, Leonard. Subliminar: Como o inconsciente influencia nossas vidas. Zahar. Rio de Janeiro. 2013.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 6ª edição revista, comentada e ampliada. Revista dos Tribunais. São Paulo, 2007.      

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 7 ed. rev. atual. e ampl. Del Rey. Belo Horizonte, 2007.

RIOS, Dermival Ribeiro. Dicionário prático da língua portuguesa. Difusão Cultural do Livro. São Paulo, 1997.

STEIN, Lilian Milnitsky et. al. Falsas Memórias: fundamentos científicos e suas aplicações clínicas e jurídicas. Artmed. Porto Alegre, 2010.


Notas

[1] Trata-se de compreender que só reconhece quem, no pretérito, conheceu de algo.

[2] LOPES JR., Aury. Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal.Lumen Juris. Rio de Janeiro. 2001, p. 127.

[3] No início da década de 40.

[4] Nesse sentido, vide Apelação Crime Nº 70052962180, do TJRS.

[5] Sobre o tema das falsas memórias, trataremos de maneira mais detida no tópico 5 do presente estudo.

[6] Nestes termos: “Art. 185. O acusado que comparecer perante a autoridade judiciária, no curso do processo penal, será qualificado e interrogado na presença de seu defensor, constituído ou nomeado. […]§ 2o  Excepcionalmente, o juiz, por decisão fundamentada, de ofício ou a requerimento das partes, poderá realizar o interrogatório do réu preso por sistema de videoconferência ou outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens em tempo real, […]” (GRIFAMOS)

[7] Art. 564.  A nulidade ocorrerá nos seguintes casos: […] IV - por omissão de formalidade que constitua elemento essencial do ato.

[8] Importante atentar para esse ponto, relativo ao fato de que as pessoas expostas para o reconhecimento por foto serão, por lógico, somente aquelas que já foram capturadas ou se dispuseram a comparecer nas Delegacias de Polícia. A grande questão, aqui, é que a indicação de apenas um nicho de figuras se apresenta como um prejuízo para a produção do ato de reconhecimento, ao passo que (pré)induz a testemunha ou a vítima a focar apenas no rol de imagens apresentada, fato esse que causa na mente do reconhecedor novas linhas de memória e o conduz, em muitos casos, a substituir uma imagem real que existe em sua memória por outra similar. Todavia, como se sabe, num processo penal não basta que haja a mera “similaridade”, pois a semelhança não representa algo certo, mas, sim, aproximado, qualidade essa que não serve – e não deve servir – para embasar, sequer, um juízo de indiciamento.

[9] Profissionais que, via de regra, desempenham com afinco o encargo que lhes é atribuído mas que possuem naturais limitações a atuação em relação ao mérito, na medida em que não possuem qualquer contato com o réu ou o tem de forma ocasional.

[10] Sobre o conceito de provas, competente é a descrição de Vicente Greco Filho (2010, p. 186), que afirma que “a prova é todo o meio destinado a convencer o juiz a respeito da verdade de uma situação de fato.”. Persiste o renomado doutrinador, em trecho subsequente, afirmando que “A finalidade da prova é o convencimento do juiz, que é seu destinatário. No processo, a prova não tem um fim em si mesma, ou um fim moral ou filosófico; sua finalidade é prática, qual seja, convencer o juiz.”.

[11] Usa-se, aqui, o exemplo de crime sexual, eis que tais delitos ocorrem comumente sem a presença de testemunhas.

[12] Pode-se visualizar situação como esta nos casos de, por exemplo, furto ou roubo, em que o dono do patrimônio pretende reagir a ação do criminoso.

[13] http://www.innocenceproject.org/

[14] Termo que pode ser compreendido, em livre tradução, como sendo um “testemunho ocular equivocado”.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PUPE NETO, Affonso Celso Pupe da Silveira Neto. Aspectos relevantes acerca do reconhecimento de pessoas ou coisas segundo o Código de Processo Penal e sua aplicação prática. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3954, 29 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27796. Acesso em: 26 abr. 2024.