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Representação do Delegado de Polícia e sua (des)vinculação ao parecer do Ministério Público

Representação do Delegado de Polícia e sua (des)vinculação ao parecer do Ministério Público

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Tendo em vista que o Delegado de Polícia é o titular da investigação criminal materializada no inquérito policial, suas representações não podem ficar condicionadas ao parecer favorável do MP, que é parte no processo penal, sem poder decisório.

Introdução

De acordo com o nosso sistema jurídico, a investigação de infrações penais é materializada, em regra, por meio do inquérito policial, de atribuição privativa das policiais judiciárias, nos termos do artigo 144 da Constituição da República. Pode-se afirmar, destarte, que 99% das ações penais interpostas pelos seus titulares legais (Ministério Público, nas ações penais públicas e a própria vítima, nas ações penais privadas) são subsidiadas pelas investigações realizadas pelas polícias Civil e Federal.

Ocorre que, ao longo dos procedimentos investigativos, diversas medidas cautelares, sejam elas de natureza real (sequestro, arresto etc.), probatória (interceptação telefônica, busca e apreensão etc.) ou de caráter pessoal (prisão preventiva, temporária, proibição de freqüentar determinados lugares etc.), são necessárias para a perfeita apuração do crime.

Atento ao fato de que o Delegado de Polícia é o titular do inquérito policial, o legislador lhe conferiu as ferramentas necessárias para o exercício desse mister. Assim, sempre que a Autoridade de Polícia Judiciária vislumbrar a necessidade da adoção de uma medida cautelar, que, em regra, só pode ser concedida pelo Juiz[1], ele deve se valer de uma representação para provocá-lo.

Consigne-se que esta representação não possui qualquer relação com a representação feita pela vítima nos crimes de ação penal pública a ela condicionados. Nesses casos, a representação da vítima tem natureza jurídica de condição objetiva de procedibilidade, sendo que a persecução penal não pode sequer ser iniciada sem a sua formalização.

Por outro lado, a representação elaborada pelo Delegado de Polícia, conforme já adiantamos, é um instrumento cujo objetivo é levar ao conhecimento do Poder Judiciário alguns fatos e circunstâncias que justifiquem e exigem a decretação de determinada medida cautelar. Tendo em vista que o nosso ordenamento jurídico adotou o sistema acusatório, o Juiz não pode exercer uma função ativa ou de protagonismo na fase investigatória da persecução penal. Justamente por isso, com a intenção de resguardar os interesses perseguidos na fase pré-processual, o legislador conferiu ao Delegado de Polícia a possibilidade de provocar o Poder Judiciário por meio da representação.


Representação do Delegado de Polícia e o parecer do Ministério Público: necessidade?

Nos termos do artigo 129, incisos VII e VIII, da Constituição da República, cabe ao Ministério Público a função de exercer o controle externo da atividade policial, bem como requisitar diligências investigatórias e a própria instauração do inquérito policial. Demais disso, o Parquet sempre deve atuar como o fiscal da lei.

Nesse sentido, o representante do Ministério Público sempre deverá ser ouvido nos casos em que houver representação do Delegado de Polícia pela decretação de alguma medida cautelar. Isso significa que o órgão ministerial deverá ofertar um parecer, vale dizer, emitir uma mera opinião sobre o caso representado, sem que, com isso, o Poder Judiciário fique vinculado à sua manifestação.

Contudo, há na doutrina quem defenda que, nesse caso, a decretação de medida cautelar sem que haja um parecer favorável do Parquet seria inconstitucional. Renato Brasileiro, por exemplo, fundamentando seu raciocínio no artigo 129, inciso I, da Constituição da República, que coloca o Ministério Público como titular da ação penal pública, advoga a tese de que essa titularidade também seria extensível às demais medidas de natureza cautelar. Segundo o autor, “devido ao caráter instrumental das medidas cautelares em relação à ação principal, devem elas ser pleiteadas pelo próprio titular da ação de acordo com a estratégia processual considerada eficiente e adequada para viabilizar a ação principal”.[2]

No mesmo sentido, Geraldo Prado ensina que “a autoridade policial não é parte no processo penal, não tem interesse que possa deduzir em juízo e a investigação criminal não guarda autonomia, ela existe orientada ao exercício futuro da ação. A constatação de comportamentos do indiciado prejudiciais à investigação deve ser compartilhada entre a autoridade policial e o Ministério Público (ou o querelante, conforme o caso), para que o autor da ação penal ajuíze seu real interesse em ver a prisão decretada”.[3]

Os defensores da tese destacam, outrossim, que a decretação de medidas cautelares oriundas de representações das Autoridades Policiais sem que haja o parecer favorável do Ministério Público constituiria uma verdadeira hipótese de atuação de ofício por parte do Magistrado, o que não é admitido pelo sistema acusatório, caracterizando, inclusive, uma ofensa ao princípio da imparcialidade do juiz.

Por fim, outro argumento utilizado para refutar a possibilidade de decretação de medidas cautelares sem a oitiva do Parquet, aponta no sentido de que, por ser o titular da ação penal pública, poderia ocorrer, por exemplo, a prisão preventiva de um investigado sem que o dominus litis sequer visualizasse a presença de justa causa para o oferecimento da denúncia.

Com todo respeito aos entendimentos em sentido contrário, mas as teses acima expostas partem de premissas equivocadas com o objetivo de subsidiar argumentos que, logicamente, também apresentam vícios inegáveis.

Primeiramente, devemos salientar que a investigação criminal não é direcionada ao titular da ação penal. Na verdade, o inquérito policial se caracteriza como um instrumento democrático e imparcial, cujo único desiderato é reunir provas e elementos de informação quanto à autoria e materialidade delituosa, justificando, se for o caso, a propositura da ação. Em outras palavras, o inquérito policial não serve nem a acusação e nem a defesa, sendo compromissado apenas com a verdade e com a justiça.

Muito embora o inquérito policial, na maioria das situações, sirva para reunir elementos contra o sujeito passivo da investigação, em outros casos sua função é exatamente contrária, ou seja, a de fornecer provas ao próprio investigado, impossibilitando, assim, que ele seja processado. É nesse sentido que o inquérito policial acaba atuando como uma espécie de filtro, impedindo que acusações infundadas desemboquem em um processo.

Aliás, justamente por ser um instrumento imparcial, o inquérito policial é de atribuição de uma instituição sem qualquer vínculo com o processo posterior, o que garante a independência e a legitimidade das investigações. Afinal, como poderia o Ministério Público, como parte da relação processual, conduzir a investigação com a devida isenção se ele já tem em mente uma futura batalha a ser travada durante o processo?![4]

Em consonância com esse entendimento, Eduardo Cabette assevera que o “Inquérito Policial não é e jamais será instrumento a serviço do Ministério Público ou do Querelante somente, mas sim da busca da verdade processualmente possível de forma imparcial, dentro da legalidade. O Delegado de Polícia não deve produzir ou colher provas e indícios somente voltados para a acusação, mas sim de forma genérica, primando pela total apuração dos fatos, venha isso a beneficiar a defesa do suspeito ou a incriminá-lo”.[5]

Desse modo, salta aos olhos que a titularidade da ação penal não apresenta qualquer relação com a titularidade da investigação criminal. Assim, as investigações conduzidas pelo Delegado de Polícia devem se desenvolver de maneira independente e desvinculadas das opiniões acerca dos fatos do titular da ação posterior. Não podemos perder de vista que a persecução penal se materializa em duas fases distintas, ainda que complementares, sendo que em cada uma delas nós temos um titular diferente, com convicções jurídicas e percepções possivelmente distintas sobre os mesmos fatos. Deve-se preservar, pois, a independência entre as instâncias, o que apenas fortalece e qualifica a decisão final, garantindo-se, ainda, a plena observância do sistema acusatório.

Ora, o Delegado de Polícia, como presidente do inquérito policial, é a autoridade mais indicada para saber quais as necessidades da investigação em desenvolvimento, sendo que a utilização de medidas cautelares constitui um dos possíveis caminhos a serem trilhados em busca da verdade dos fatos. Nesse contexto, se a adoção de tais medidas ficasse condicionada ao parecer do Ministério Público, isso significaria que a própria investigação ficaria vinculada a este órgão e sob o seu controle, o que, convenhamos, seria um absurdo, especialmente após o advento da Lei 12.830/2013, que dispõe sobre a investigação criminal conduzida pelo Delegado e Polícia. Consigne-se, ainda, que, para formar seu convencimento jurídico acerca dos fatos, a Autoridade Policial precisa das ferramentas necessárias para a investigação. Desse modo, se condicionarmos a sua representação ao parecer favorável do titular da ação penal, nós estaríamos, por via oblíqua, o impedindo de encontrar os fundamentos indispensáveis para a formação da sua decisão final, alijando por completo a própria investigação.  

Em sentido semelhante é o escólio de Marcos Paulo Dutra Santos, ao tratar da representação pela decretação da prisão temporária, cujo conteúdo deve ser repetido na íntegra: “Inexiste inconstitucionalidade no atuar da autoridade policial, mesmo porque o art.129, I, da Constituição da República tornou privativo do Ministério Público o exercício da ação penal pública, e não a postulação de medidas cautelares. Tampouco resta vulnerado o sistema acusatório, cujo berço constitucional também corresponde ao art.129, I, da Carta de 1988, porquanto a autoridade policial se alinha ao Parquet enquanto órgãos de repressão estatal, logo a representação pela prisão temporária não discrepa do poder de polícia judiciária que lhe foi confiado no art.144 da CRFB/88. Com efeito, as medidas cautelares são, em regra, postuladas por quem possui legitimidade ad causam. Mas isto não significa que o legislador, do alto de sua soberania, não possa eventualmente conceder tal legitimidade a quem não seja parte no processo. Não haverá ofensa a qualquer preceito constitucional caso assim o faça, mesmo porque seria uma legitimatio propter officium, isto é, uma legitimação decorrente do ofício desempenhado por tal agente. E assim o é no tocante à Autoridade Policial e à sua legitimidade para representar pela prisão temporária.”[6]

Reforçando os argumentos de Dutra Santos, entendemos que a teoria dos poderes implícitos, sempre invocada pelo Ministério Público para sustentar a sua legitimidade em realizar atos de investigação criminal, serve para demonstrar a desvinculação entre a representação do Delegado de Polícia e o parecer do dominus litis. Ora, se a titularidade da investigação criminal foi conferida às Polícias Judiciárias, tendo em vista que a adoção de medidas cautelares constitui ferramenta indispensável ao correto desenvolvimento desse mister, condicioná-las ao parecer favorável do Ministério Púbico seria a mesma coisa que retirar as ferramentas imprescindíveis à investigação, fazendo com que a própria existência de uma polícia investigativa perca o seu sentido. Em outras palavras, se o legislador constituinte incumbiu às polícias civil e federal o protagonismo na investigação de infrações penais (atividade-fim), implicitamente ele também lhes conferiu os meios para o desempenho de tão importante missão (representação pela decretação de medidas cautelares como, por exemplo, a interceptação telefônica ou a prisão preventiva).

Se, por outro lado, o representante do Parquet não vislumbrar a existência de justa causa para a propositura da ação, ele poderá se manifestar nesse sentido após o encerramento das investigações, optando pelo não oferecimento da denúncia e, por exemplo, requerendo o arquivamento do inquérito policial. Dessa forma restam preservadas as independências funcionais dos órgãos responsáveis pela persecução penal, sendo que a decisão final caberá sempre ao Poder Judiciário e não às partes. É mister não olvidar que na seara criminal o Ministério Público, em regra, é parte no processo, constituindo-se como o órgão responsável pela acusação. Justamente por isso, sua atuação deve ser opinativa ou de requerimentos, não podendo suas manifestações limitar, de qualquer modo, a decisão judicial. Aliás, conforme bem apreendido por Eduardo Cabette, “’decisão’ é somente a Judicial, cabe ao Ministério Público e demais atores processuais opinar e pedir. Não se podem confundir as funções jurisdicionais com as funções ministeriais.”[7]

Outro argumento que subsidia a desvinculação da decisão judicial ao parecer do Ministério Público se relaciona aos casos que envolverem ações penais privadas. Isto, pois, em prevalecendo a tese de que as representações necessitam da manifestação favorável do titular da ação penal, quando estivermos diante de um crime de ação penal privada, a vítima deveria ser notificada para oferecer um parecer sobre a necessidade da adoção de determinada medida cautelar, o que, com a devida vênia, nos parece teratológico, especialmente por prejudicar o próprio ofendido. Explico.  É cediço que, infelizmente, a advocacia pública não apresenta nos dias de hoje um serviço de grande abrangência, principalmente na fase preliminar de investigação. Dessa forma, caso a vítima precisasse se manifestar sobre a adoção de uma medida cautelar, ela provavelmente não teria aptidão técnica para esta análise, sendo que, na maioria dos casos, ela nem sequer saberia da existência de medidas cautelares, seus requisitos e pressupostos de admissibilidade. Consequentemente, os bens jurídicos envolvidos na investigação ficariam desprotegidos, o que, sem dúvida, também prejudicaria o futuro processo, colocando em risco, inclusive, a concretização da justiça.

Diante do exposto, entendemos que o parecer do Ministério Público não pode condicionar a decretação de medidas cautelares provenientes de representações do Delegado de Polícia, sendo que os entendimentos contrários prejudicam a investigação criminal e colocam em risco a própria função das Polícias Judiciárias, ameaçando, outrossim, o correto exercício do direito de punir pertencente ao Estado. Isso não significa, todavia, que o Parquet não possa se manifestar sobre a necessidade das medidas, pelo contrário. Como fiscal da lei, é até recomendável que o Ministério Público se manifeste, mas em um contexto opinativo, sem que isso possa vincular de qualquer forma a decisão do Poder Judiciário.


Referências

BRASILEIRO DE LIMA, Renato. Manual de Processo Penal. Vol.I. 2ª Ed. Niterói: Impetus, 2012.

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Lei 12.403 Comentada – Medidas Cautelares, Prisões Provisórias e Liberdade Provisória. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2013.

DUTRA SANTOS, Marcos Paulo. O Novo Processo Penal Cautelar. Salvador: Juspodivm, 2011.

MENDONÇA, Andrey Borges. Prisão e outras medidas cautelares pessoais. Rio de Janeiro: Forense, 2011.

PRADO, Geraldo. Medidas Cautelares no Processo Penal – Prisões e suas alternativas. Coordenação: Og Fernandes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.

SANNINI NETO, Francisco. Polícia Judiciária e a Devida Investigação Criminal Constitucional. Disponível em: http://atualidadesdodireito.com.br/franciscosannini/2013/10/09/policia-judiciaria-e-a-devida-investigacao-criminal-constitucional/ . Acesso em 25.04.2014.

____________________. Medidas Cautelares podem ser Concedidas pelo Delegado de Polícia. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/24122/medidas-cautelares-podem-ser-concedidas-pelo-delegado-de-policia . Acesso em 25.04.2014.


NOTAS

[1] Excepcionalmente, o próprio Delegado de Polícia pode conceder uma medida cautelar. É o que ocorre no caso da liberdade provisória mediante fiança, conforme previsão expressa do artigo 322, do CPP. Para uma melhor compreensão do tema, recomendamos outro trabalho de nossa autoria disponível em:  http://jus.com.br/artigos/24122/medidas-cautelares-podem-ser-concedidas-pelo-delegado-de-policia . Acesso em 25.04.2014.

[2] BRASILEIRO DE LIMA, Renato. Manual de Processo Penal. p.1149.

[3] PRADO, Geraldo. Medidas Cautelares do Processo Penal – Prisões e suas alternativas. p.131. No mesmo sentido, MENDONÇA, Andrey Borges de. Prisões e outras medidas cautelares pessoais. p.67-70.

[4] Sobre o tema, conferir artigo de nossa autoria disponível em: http://atualidadesdodireito.com.br/franciscosannini/2013/10/09/policia-judiciaria-e-a-devida-investigacao-criminal-constitucional/ . Acesso em 25.04.2014.

[5] CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Lei 12.403  Comentada – Medidas Cautelares, Prisões Provisórias e Liberdade Provisória. p.106.

[6] DUTRA SANTOS, Marcos Paulo. O Novo Processo Penal Cautelar. p.90.

[7] CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Op.Cit., p.107.


Autor

  • Francisco Sannini

    Mestre em Direitos Difusos e Coletivos e pós-graduado com especialização em Direito Público. Professor Concursado da Academia de Polícia do Estado de São Paulo. Professor da Pós-Graduação em Segurança Pública do Curso Supremo. Professor do Damásio Educacional. Professor do QConcursos. Delegado de Polícia do Estado de São Paulo.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANNINI NETO, Francisco Sannini. Representação do Delegado de Polícia e sua (des)vinculação ao parecer do Ministério Público. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3982, 27 maio 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/28228. Acesso em: 23 abr. 2024.