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Agências reguladoras e controle judicial de suas decisões

Agências reguladoras e controle judicial de suas decisões

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A decisão regulatória tende a ser altamente complexa, mas nem por isso está imunizada do controle judicial.

Resumo: O trabalho ora desenvolvido examina as características gerais das agências reguladores e a exigência atual por sua eficiência. Investiga a denominada discricionariedade técnica para concluir que, na realidade, trata-se de discricionariedade pura exercitada com base em conhecimentos técnicos. Analisa o controle judicial das decisões das agências, concluindo por sua viabilidade, desde que observados determinados parâmetros para não substituir a vontade do regulador pela vontade do órgão jurisdicional.

Palavras-chave: regulação econômica. agências reguladoras. Mediação  conciliatória de conflitos. Recurso hierárquico impróprio.


1. Agências Reguladoras: características gerais

Três são os aspectos que identificam um órgão como autoridade regulatória independente: autonomia financeira, independência administrativa e poderes-deveres inerentes ao exercício de suas funções. Essas características acorrem a outras entidades além daquelas denominadas de agências reguladoras. É o caso da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) após a edição, respectivamente, da Lei n.o 10.411/2002[1] e da Lei n.o 12.529/2011[2]. Estas leis ampliaram a competência, a autonomia e a independência desses órgãos, motivo pelo qual podem ser qualificados como entidades de regulação independente[3].

Por outro lado, o Banco Central do Brasil (BACEN), embora detenha atribuição regulatória, não se qualifica como agência reguladora. Seus dirigentes não exercem mandato a tempo certo, sujeitando-se a exoneração ad nutum. Significa dizer, embora a Constituição estabeleça a investidura por meio de ato complexo decorrente do concurso de vontades entre o Presidente da República e o Senado[4], a legislação infraconstitucional não garante o presidente e os diretores do BACEN contra demissão imotivada. Esta característica reduz sobremodo a independência do órgão, não permitindo sua classificação como ente regulador independente[5].

Diante da relevância, passemos ao célere exame dessas características.

1.1 Autonomia Financeira

A maneira mais singela de estrangular qualquer função é não propiciar os recursos financeiros necessários ao seu regular exercício. Somente é possível exercer a capacidade de autogoverno com recursos próprios. Com a atividade regulatória não é diferente, eis que se trata de função onerosa, envolvendo o custeio de pessoal especializado e em perene aperfeiçoamento, equipamentos adequados, meios de transporte para o exercício da atividade fiscalizatória, manutenção de instalações físicas, etc.

As agências são mantidas com recursos orçamentários, tributários e multas[6]. O primeiro decorre de verba que a Pessoa Política instituidora consigna em seu orçamento anual. O segundo consiste nas taxas cobradas pelo exercício de seu poder de polícia, denominadas taxas de fiscalização ou taxas de regulação. E o terceiro decorre de sanções pelo desrespeito às normas, legais e contratuais, afetas ao setor específico regulado[7].

No que toca à taxa de regulação, alguns autores alertam que nem sempre terá cunho tributário. Em se cuidando de fiscalização de atividade econômica desenvolvida sob o pálio da livre iniciativa e da livre concorrência, a exação é cobrada à conta de manifestação estatal do poder de polícia, o que lhe confere natureza tributária. Entretanto, se a atividade sob exame é serviço público ou exploração privada de monopólio estatal cuja execução foi concedida, permitida ou delegada ao particular, segundo regras legais e contratuais previamente definidas, a fiscalização tem o escopo de aferir o cumprimento dessas normas legais e convencionais, e não o exercício do poder de polícia. Nessa hipótese, a taxa de regulação tem natureza contratual, e não tributária[8].

Parte da doutrina advoga a impossibilidade de contingenciar a proposta orçamentária encaminhada pelo órgão regulador independente[9]. Olvidam, todavia, que o orçamento público é uno, considerando globalmente as receitas e despesas da máquina. A própria Constituição, ainda que implicitamente, autoriza a glosa à peça orçamentária na medida em que expressamente obriga o administrador a aplicar percentuais mínimos das receitas tributárias em determinados fundos e atividades[10]. Por isso, compete ao Chefe do Executivo adequar as inversões à expectativa de ingressos. Desvincular a proposta do orçamento público, interditando seu contingenciamento, seria conferir à agência mais do que autonomia. Seria conferir-lhe soberania, o que se afigura impossível[11].

As leis instituidoras preveem ainda outras fontes de receita, tais como as resultantes da venda de publicações técnicas e da prestação de informações a terceiros.  Marçal Justen Filho esclarece que os valores recebidos desta forma possuem natureza contratual, e, como se trata de situação excepcional, não resta violada a natureza pública do regime jurídico a que submetidas as agências[12].

1.2 Independência Administrativa

Consiste na gestão própria e distinta do órgão instituidor, abrangendo a gerência de sua estrutura interna e dos serviços a seu cargo. Para que se aperfeiçoe o autogoverno não basta a autonomia financeira, sendo necessário independência administrativa.

Nunca é demais lembrar que autogoverno não significa liberdade para buscar seus próprios desígnios. A agência reguladora não cria políticas públicas. Essa atribuição pertence ao núcleo estratégico do Estado, e não aos órgãos reguladores independentes. Sua independência reside na discricionariedade (regrada) para elaborar procedimentos e formas destinadas a conduzir e concretizar as políticas públicas previamente traçadas pela Administração Central e pelo Poder Legislativo.

No âmbito interno, a independência dos órgãos reguladores é marcada pela composição, forma de investidura, mandato, estabilidade e incompatibilidades de seus dirigentes.

A composição diretiva de cada agência é definida na lei instituidora. Todavia, à míngua de uma lei geral das agências reguladoras, a Lei n.o 9.986/00 procura conferir certa uniformidade à gestão de pessoal dessas entidades, dispondo sobre a composição da diretoria[13] (a administração será colegiada, exercida por uma diretoria ou um conselho diretor, sendo um de seus membros o presidente ou diretor-geral ou diretor-presidente); e fixando requisitos para os integrantes do corpo diretivo, tais como conhecimentos técnicos, aprovação por ato complexo, mandato fixo, e prazo de quarentena.

Quanto à aplicabilidade desta lei nas hipóteses em que conflitar com as leis instituidoras, observa-se o princípio da especialidade: em relação às agências criadas anteriormente a sua edição, a Lei n.o 9.986/00 é plenamente aplicável por constituir norma especial em relação aos temas tratados; todavia, em relação às agências criadas após sua edição, será norma geral caso a lei instituidora da agência contenha estipulação específica (p.ex., em relação à quarentena); remanescendo seu caráter geral e de aplicação compulsória às agências posteriormente criadas e que não contrariarem suas disposições (p.ex., se a agência, criada posteriormente, não estipular prazo de quarentena como acontece com a ANCINE, ANA e ANAC).

Com base nas leis instituidoras e na Lei n.o 9.986/00, extrai-se que os cargos da diretoria são providos por ato complexo mediante o concurso das vontades do Poder Executivo e do Legislativo[14]. Os dirigentes cumprem mandato fixo[15] e, a fim de que haja alternância no exercício dos cargos com arejamento de novas ideias e formas de pensar (i.e., para que haja pluralismo político), foi instituída a não coincidência dos mandatos.

Os dirigentes devem gozar de reputação ilibada, formação universitária e elevado conceito no campo de especialidade[16]. A lei instituidora não poderá se desvencilhar dessas qualidades[17]. Diante da especificidade da atividade executada, sem tais quesitos o administrador não conseguirá exercer suas funções com eficiência. E, como assinala Marçal Justen Filho, se tais requisitos fossem prescindíveis (de modo que qualquer do povo pudesse administrar a autarquia) seria de todo desnecessária sua criação como órgão regulador[18].

Reputação ilibada é a valoração positiva e objetivamente considerada pelo exercício de cargos e funções – públicas ou privadas – nas quais o sujeito tenha demonstrado “o cumprimento de atributos morais e de cidadania”[19]. Elevado conceito no campo da especialidade é o indiscutível reconhecimento da capacidade técnica de que a pessoa goza entre seus pares naquela determinada área do conhecimento[20].

Quanto às incompatibilidades, como já dissemos em anterior trabalho,

 [...] a Administração fundamenta todo o seu agir, dentre outros, no princípio da impessoalidade, de modo que lhe é interdito atuar com favoritismos, preferências ou, de qualquer modo, conferindo tratamento desigual aos administrados. Para prevenir condutas desse quilate é que são criadas as incompatibilidades, i.e., hipóteses em que o agente público – ante sua pessoal situação (por laços de amizade, familiares, econômicos, etc.) – deve abster-se de atuar, fazendo-se substituir por outro colega, ou afastando-se de uma atividade privada para que possa exercer a atividade pública.

[...]

A incompatibilidade não se prende ao exercício atual do cargo, podendo estender-se a período ulterior ao afastamento do agente. É a chamada quarentena, i.e., período em que as autoridades ficam impedidas de exercer determinadas atividades privadas após deixarem o cargo público[21].           

É bem por isso que os presidentes e diretores das agências reguladoras estão impedidos, por determinado tempo, de ocupar cargos nas empresas pertencentes ao setor regulado ou de representá-las junto ao órgão regulador do qual se afastaram[22]. Em todos esses casos a medida encontra a mesma justificativa: evitar que o ex-agente público, na defesa de interesses privados, valha-se de informações privilegiadas angariadas no exercício do cargo, ou que influencie os colegas que remanescem no serviço ativo[23]. No período de afastamento das atividades o dirigente se mantém vinculado à agência, dela percebendo remuneração compensatória equivalente ao cargo de direção que exercia[24].

A conjugação dessas regras (administração colegiada, forma de investidura, requisitos do administrador, mandato fixo e incompatibilidades) tem por fim assegurar o interesse público de estabilidade na fiscalização da atividade econômica.  Esta foi a fórmula adotada para proteger os órgãos de regulação independente contra ingerências decorrentes de interesses político-partidários e de atitudes populistas[25] ou eleitoreiras[26]. Os dirigentes das agências reguladoras – comprometidos com o atendimento das metas legitimamente traçadas para o setor – não terão receio de obstar os interesses duvidosos de grupos políticos que alcancem o poder. Os Poderes constituídos devem respeitar o cumprimento do mandato fixo dos dirigentes das agências, não bastando a mera vontade do Chefe do Executivo para a demissão. Significa dizer que antes do termo do mandato, a demissão dos administradores apenas ocorre nas hipóteses legalmente capituladas[27].

No âmbito externo, a independência dos órgãos reguladores é marcada pela aptidão para organizar seus serviços, tais como definir horário de atendimento ao público; estabelecer procedimentos para a discussão (por intermédio de audiências e consultas públicas) de temas regulatórios e para edição de normas abstratas (regulamentos) e concretas (atos administrativos) a serem aplicadas ao mercado; definir procedimentos para a obtenção de autorizações, licenças e informações em geral; estabelecer critérios para aferição de metas de desempenho; determinar procedimentos para o recebimento de reclamações e sugestões; criar métodos conciliatórios para aproximar os operadores econômicos dos consumidores; etc.

A independência do órgão regulador, como assinala Floriano de Azevedo Marques Neto, é fundamental para o desempenho de suas atribuições, de modo que se ponha em lugar equidistante dos operadores econômicos, dos consumidores e também do Estado (que pode atuar como operador econômico, ou pode agir premido por influxos eleitorais)[28].

1.3 Poderes-Deveres

A Constituição e as leis outorgam determinadas competências ao Estado, que, no plano material, as concretiza por intermédio da máquina pública. Esta atividade se desempenha com foco no interesse público, do qual nenhum ente estatal pode se desvencilhar. Para o adequado e eficiente exercício dessas competências, à Administração são conferidos poderes, em falta dos quais não seria possível sobrepor o interesse público ao privado[29].

Os poderes conferidos à Administração constituem obrigação, verdadeiros deveres-poderes, e não mera faculdade. Há inteira subordinação do poder em relação ao dever, tanto que aquele não pode ser exercido livremente, sujeitando-se sempre a uma finalidade. Mediatamente essa finalidade consiste no atendimento ao interesse público, e imediatamente, na edição de normas para regulamentar determinados atos e ações, na fiscalização destinada a apurar se o particular está cumprindo as normas, na aplicação de sanções para coibir práticas que desbordem das normas, etc.

A Administração está obrigada a exercitar o poder que lhe for conferido por lei, nos limites desta. Não há discricionariedade uma vez que sem o exercício do poder, ou o ato administrativo não se aperfeiçoa[30], ou se aperfeiçoa de modo viciado[31], ou, ainda que escoimado de vício, não alcança a finalidade pública esperada[32].

As agências reguladoras, relativamente ao segmento em que atuam, são dotadas de poder normativo, fiscalizatório, sancionatório e mediador de conflitos. Além desses poderes, comuns a todas as agências de regulação, outros poderão ser conferidos pela lei[33] a bem do exercício de suas funções. É o caso do poder de declarar a utilidade pública de certos bens com vistas à implantação de instalações de energia elétrica[34], e do poder de outorga da exploração de serviços públicos ou do uso de bens públicos[35].

Tais poderes são ancilares ao mister da regulação independente e objetivamente considerada. Não bastam em si, funcionando como instrumento para o implemento das políticas públicas setoriais já definidas[36].


2. Eficiência e atividade regulatória.

A sociedade atual, mais aberta e plural, mais democrática, fortemente influenciada pelos avanços tecnológicos, particularmente dos meios informacionais, reclama a produção de resultados. Não basta mais o respeito ao “processo” administrativo decisório e executivo de concreção da norma se a “finalidade” (i.e., a produção de uma utilidade pública) não for alcançada.

A eficiência no alcance de resultados da tradicional organização estatal – burocrática e hierarquizada – mostrou-se pífia, especialmente na prestação de serviços públicos e no controle de certas atividades econômicas. A solução, portanto, foi criar centros executórios autônomos e não hierarquizados com o escopo de conferir maior dinamicidade e eficácia às práticas governamentais. É a adoção do modelo de organização estatal em rede, que funciona ao lado da tradicional estrutura piramidal, baseada no processo formal de tomada de decisões com esteio na rígida hierarquia.

Esta realidade, composta por órgãos administrativamente independentes, dotados de significativos poderes e cujos dirigentes não podem ser imotivadamente destituídos, causa alguma perplexidade ao jurista acostumado com a tradicional organização estatal. Questionamentos de diversas ordens põem em dúvida a capacidade de tais entidades alcançarem seus objetivos. Passadas mais de década e meia da criação da primeira agência reguladora, muitas questões foram convenientemente elucidadas[37]. Outras, todavia, permanecem em aberto. Uma delas – o controle judicial das decisões – constitui o objeto do presente estudo.


3. Discricionariedade Pura e Discricionariedade Técnica

As agências reguladoras exercem função eminentemente técnica, atuando com imparcialidade e independência. Suas manifestações concretas, externadas em atos administrativos de cunho normativo e decisório, refletem esse juízo técnico profundo no segmento ao qual se dedicam. Esta, aliás, sua razão de ser: dominar a expertise do setor econômico específico de modo a impor condicionamentos aos prestadores e produtores.

De par com esta realidade, convencionou-se dizer que as agências exercitam juízo de discricionariedade técnica, ou seja, manifestam opção alcançável apenas pelo seleto grupo de pessoas que detêm conhecimento aprofundado em determinado ramo de atividade. A partir deste ponto avalia-se a possibilidade do questionamento judicial das decisões técnicas adotadas por esses órgãos.

A primeira observação a ser considerada diz respeito ao significado de discricionariedade técnica. A expressão tem o sentido de juízo de valor realizado a partir da interpretação da norma e segundo as possibilidades científicas admitidas e recomendadas por aquele ramo do conhecimento. Diante do caso concreto, a regra técnica determina quais caminhos são possíveis e viáveis, competindo ao profissional adotar um deles, que deverá coincidir com o que melhor atenda às necessidades específicas.

Distingue-se da discricionariedade comum, livre ou pura. Nesta, o administrador exerce juízo de valor e ainda assim remanescem duas ou mais opções legais e válidas, devendo escolher a que lhe convier. Na discricionariedade técnica, manifestado o juízo de valor, restará apenas uma como a melhor solução.

Resulta, então, que somente na manifestação pura é que existe verdadeira discricionariedade, de vez que após o juízo valorativo, ainda remanescerão ao menos duas opções legais e adequadamente válidas. Na outra modalidade, a interpretação da norma encerra a escolha da única opção que, sob o viés científico, é adequada ao caso concreto[38].


4. Controle Judicial das decisões emanadas das agências reguladoras

É com base nessas considerações que a doutrina, embora admitindo a possibilidade de escolhas técnicas, vem refutando a existência da denominada discricionariedade técnica[39], aduzindo que a emanação dos órgãos reguladores independentes constitui verdadeira manifestação de discricionariedade comum ou pura[40].

Ademais, a cláusula constitucional de inafastabilidade da jurisdição obsta qualquer tentativa de imunizar os órgãos públicos do controle exercido pelo Judiciário. Portanto, as manifestações das agências, ainda que de cunho técnico de alta profundidade, não se furtam ao referido controle. O tema, entretanto, merece algumas ponderações.

A primeira reside na possibilidade do controle judicial da execução de políticas públicas.  Elaboradas que são no âmbito do núcleo estratégico do Estado, às agências compete o desembaraço material, o exercício concreto dessas políticas. O controle judicial pode ser realizado sob o prisma do desempenho, pela agência, das competências regulamentares que lhe foram atribuídas. É possível, assim, ao Judiciário averiguar se a agência está cumprindo suas atribuições, ainda que ela goze de certa margem de discricionariedade no seu exercício, porque tais atribuições foram conferidas por lei, de forma que seu manejo é compulsório[41].

O controle de legalidade alcança os atos decisórios e os atos normativos praticados pelas agências. Em relação a esses últimos, incide sobre o processo de criação das normas. Tal controle não se restringe ao exame dos limites da competência do órgão regulador (i.e., se o ato administrativo manteve, ou extrapolou, os lindes da lei da qual deriva), urgindo averiguar se os procedimentos atinentes à elaboração da norma foram escorreitamente observados, tais como a comprovação objetiva da necessidade de sua edição, a submissão a consulta pública, a deliberação colegiada, etc.

Dúvida reside quanto à possibilidade de controle do ato praticado no amplo campo de escolhas lícitas franqueadas ao administrador. Significa dizer, ante a manifestação de competência discricionária, particularmente quando envolve aprofundado conhecimento técnico, até que ponto seria permitido o controle judicial?

No ato administrativo discricionário, a lei define apenas os limites da discricionariedade e a finalidade pública do ato, remetendo ao juízo exclusivo do administrador fundamentar a oportunidade e conveniência de agir (que formam o mérito do ato discricionário). Há mais de uma opção válida e legal para realizar o ato, opção essa que a norma confia ao juízo do administrador.

Todavia, na produção deste o ato o administrador jamais poderá se afastar dos elementos competência (i.e., a atribuição do dever-poder para realizar o ato) e finalidade (ou seja, o bem jurídico que a lei visa proteger através da realização do ato)[42]. Portanto, ainda que discricionário, o administrador está sempre vinculado à competência e à finalidade, sendo-lhe interdito elaborar juízo de conveniência e oportunidade acerca desses elementos[43].

Mérito do ato administrativo é o campo de liberdade previsto na lei, para que o administrador, segundo critérios de conveniência e oportunidade, decida-se entre duas ou mais soluções admissíveis perante a situação concreta, tendo em vista o exato atendimento da finalidade legal, ante a impossibilidade de ser objetivamente identificada na lei qual delas seria a melhor. A doutrina é uníssona em afirmar que só existe mérito nos atos discricionários. Isto porque nos atos vinculados não há juízo de oportunidade e conveniência, haja vista que todos os seus elementos estão contidos na lei.

O ato discricionário pode padecer de dois vícios: (i) ilegalidade, que pode decorrer de desvio de finalidade ou do descumprimento dos limites impostos para a realização do ato[44]; e (ii) perda de mérito (i.e., perda da oportunidade e da conveniência à Administração) em decorrência de fato superveniente e imprevisível[45].

Não obstante os vícios apontados, é possível ao Poder Judiciário, em situações excepcionais, realizar o controle judicial sobre o mérito do ato administrativo discricionário. O núcleo da motivação do mérito do ato discricionário, quando decorrente de elemento normativo indefinido (i.e., de conceito jurídico indeterminado, como, por exemplo, emergência ou calamidade pública para fins de dispensa de licitação, ou ainda as situações concretas que configuram urgência, ordem pública, justo preço, etc.) não é uma carta em branco para o administrador[46]. Para motivá-lo, o administrador deverá fundamentar a oportunidade e conveniência de forma razoável e proporcional. O juízo de razoabilidade encerra o exame concreto da adequação entre os meios utilizados e os fins buscados; e o juízo de proporcionalidade, o exame abstrato desta adequação comparativamente a outro bem jurídico de idêntica dimensão[47].  O Poder Judiciário poderá anular (e nunca revogar) o ato discricionário quando lhe faltar razoabilidade e proporcionalidade na motivação do mérito.

Em tema de regulação, a lei costuma valer-se de conceitos jurídicos abertos, relegando às agências a tarefa de preencher seu significado de conteúdo técnico específico. Por isso se torna admissível o controle do núcleo do mérito do ato administrativo de regulação, ainda que envolva juízo de valor técnico. É que discricionariedade exclusivamente técnica não existe porque se as escolhas postas à disposição do administrador fossem objetivamente apuráveis segundo critérios técnicos, o ato seria vinculado (às opções técnicas), e não discricionário. Assim, ao produzir o ato regulatório discricionário, o administrador orienta-se por razões técnicas e razões não técnicas, mas sempre dentro do campo de escolha que a lei lhe confere[48].

O controle judicial deve guiar-se, além dos critérios razoabilidade-proporcionalidade, também pelo critério da menor intervenção, de modo a preservar tanto quanto possível o ato regulatório discricionário. Esta ponderação encontra justificativa na própria essência da atuação dos Órgãos envolvidos no embate: Executivo e Judiciário. Vejamos.

A atuação das agências é dirigida a incontável número de cidadãos que interagem com o mercado, sejam consumidores, sejam operadores econômicos. As ações regulatórias são prospectivas, ou seja, voltadas para o futuro, estabelecendo regras e mecanismos para o adequado funcionamento do mercado no momento atual e no vindouro. Tais ações são pautadas em estudos e pesquisas técnicas e científicas que conferem maior precisão e certeza às medidas adotadas. Estas ações são encadeadas por outras realizadas em diversos entes da Administração Pública, todos envolvidos no desempenho da política traçada pelo Chefe do Executivo, o qual desenha seus planos com vistas a atender as necessidades de toda a população, e não só daquela parcela que vem a público vindicar seus direitos.

O Judiciário, na essência inerte porque somente age por provocação, atende aos reclamos de quem bate às suas portas, desconsiderando a parcela da população que não decide litigar. Tem foco principal nas ações passadas, reparando os equívocos e debelando sua reiteração. Suas decisões são fundadas no princípio da pessoalidade, distribuindo seus serviços no varejo e apenas aos que litigam. O Judiciário foi erigido e está aparelhado para ditar a norma individual e concreta, encontrando grandes dificuldades para trabalhar com demandas coletivas. Pauta suas ações no binômio legalidade-ilegalidade, sendo desimportante, neste plano, a consideração dos reflexos externos de suas decisões. Ou seja, a norma individual e concreta não tem compromisso com os efeitos sistêmicos no mercado regulado (se vai melindrar o operador econômico, de modo a, no médio prazo, desestimular o fornecimento da utilidade, afastando concorrentes e, por fim, prejudicando o consumidor) e nas políticas públicas de antemão traçadas.

A decisão regulatória tende a ser altamente complexa, mas nem por isso está imunizada do controle judicial. Este, em relação ao mérito da decisão regulatória deve, a nosso sentir, guiar-se pela menor intervenção possível, atuando apenas quando imprescindível e segundo os objetivos da moderna regulação econômica: na defesa do mercado e pautado pela ponderação dos interesses envolvidos, quais sejam, consumidores, prestadores-fornecedores, e Estado. Em sendo razoável, a decisão posta a exame deve ser mantida, sob pena de substituir-se a discricionariedade administrativa pela discricionariedade judicial, implicando ofensa ao princípio da separação de poderes[49].


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Notas

[1] Para ARAGÃO (2002, p.300-304) a falta de definitividade, no âmbito administrativo, das decisões da CVM (uma vez que sujeitas a recurso para o Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional, nos termos do artigo 11, § 3.o, da Lei n.o 6.385/76) retira-lhe a independência necessária a classificação como agência. De outro lado, JUSTEN FILHO (2002, p. 336-337) e CUÉLLAR (2008, p.76-77) entendem tratar-se de espécie de órgão regulador independente.

[2] JUSTEN FILHO (2002, p.335-336) ressalta a existência de controvérsia quanto à classificação do CADE como agência reguladora. O fundamento da cizânia repousa em dois pontos: na ausência de poder normativo (para além do plano interna corporis); e no fato desta entidade não disciplinar um setor específico, muitas vezes sobrepondo sua atuação às áreas de outros órgãos reguladores (situação evidenciada no artigo 9.o, inciso X combinado com o § 3.o, da Lei n.o 12.529/2011, que derrogou a Lei n.o 8.884/94 e estruturou o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, razão pela qual é alcunhada de “Lei do Super CADE”). De fato, o CADE tem como missão examinar os atos de concentração de mercado, e não todas as fusões e aquisições celebradas entre pessoas jurídicas. Portanto, não fiscaliza todo o mercado, mas apenas uma fração dele. Justamente por isso, ao vedar ou condicionar atos de concentração, edita normas de natureza específica, e não de natureza geral e abstrata. Assim, a ausência de ordenação setorial específica e de poder normativo geral e abstrato obstam sua classificação como agência reguladora. Procede em parte somente o primeiro dos argumentos. É que, a nosso ver, a concorrência só por si já é um setor específico. O exame dos atos de concentração demanda conhecimento técnico aprofundado para concluir-se acerca da potencialidade lesiva à livre iniciativa e aos consumidores. Tanto é verdade que a Lei do Super CADE atribuiu a este órgão competência decisória em tema de atos de concentração, espancando de vez a dúvida sobre tal competência incidir ou não sobre a agência reguladora setorial específica. Assim, apenas quando se tem imprescindível o poder normativo geral e abstrato à configuração do órgão de regulação independente é que não se poderá como tal qualificar o CADE.

[3] Entidades há que, mesmo atendendo pelo nome de agência, não exercem função regulatória. É o caso da Agência Espacial Brasileira (AEB, autarquia criada pela Lei n.o 8.854/94, cuja finalidade é promover o desenvolvimento das atividades espaciais de interesse nacional), da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN, órgão despersonalizado, vinculado ao Gabinete Institucional de Segurança da Presidência da República, criado pela Lei n.o 9.983/99, com a missão de executar a política nacional de inteligência e a integração dos órgãos nacionais de inteligência), das Agências de Desenvolvimento do Nordeste e da Amazônia (ADENE e ADA, sucessoras da SUDAM e da SUDENE, autarquias criadas pela Medida Provisória n.o 2.146-1/01, cuja missão é implantar políticas de desenvolvimento regional).

[4] Artigo 84, inciso XIV, combinado com o artigo 52, inciso III, alínea ‘d’.

[5] Neste sentido, CUÉLLAR (2008, p.77) e JUSTEN FILHO (2002, p. 333-335).

[6] Ressalva deve ser feita ao CADE, cujas multas têm destino certo, qual seja, o Fundo de Defesa de Direitos Difusos de que tratam a Lei de Ação Civil Pública e o Código de Defesa do Consumidor (art.28, § 3.o, da Lei 12.529/11).

[7] Em lúcido estudo sobre a autonomia das agências reguladoras, TAVARES assinala que atualmente no plano federal as taxas e multas arrecadadas vão para a conta única do Tesouro, gerida pelo Ministério do Planejamento, Gestão e Orçamento. Em consequência, as agências se tornam reféns do orçamento, que tanto no anterior como no atual Governo pautam-se pelo contingenciamento, estrangulando o exercício de suas atividades. Conclui, assim, pela inexistência de autonomia das agências em relação aos demais órgãos da Administração porquanto sua gestão orçamentária não se distingue daquela afeta aos demais órgãos públicos federais (Novos desafios das agências reguladoras: a manutenção de sua autonomia. In: GUEDES, Jefferson Carús. NEIVA, Juliana Sahione Mayrink (Coords.). Publicações da Escola da AGU: pós-graduação em direito público – UNB: coletânea de artigos. Brasília: Advocacia-Geral da União, 2010, p.112-145).

[8] Este é o entendimento de SOUTO (Direito administrativo regulatório. 2.a ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p.259-260) e ARAGÃO (2002, p.332).

[9] MARQUES NETO, 2005, p.76.

[10] É o caso da aplicação de percentual mínimo das receitas decorrentes de impostos nas ações e serviços de saúde de que trata o artigo 77 do Ato de Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT).

[11] Neste sentido é o pensamento de ARAÚJO (A aparente autonomia das agências reguladoras. In: MORAES, Alexandre (org.). Agências reguladoras, São Paulo: Atlas, 2002b).

[12] 2002, p. 475-476.

[13] Artigo 4.o.

[14] Com base no permissivo constitucional do artigo 52, inciso III, alínea ‘f’. Todavia, a escolha do presidente, ou diretor presidente, do colegiado é atribuição privativa do Presidente da República (Lei n.o 9.986/00, art.5.o, parágrafo único).

[15] A vinculação que existe com o Poder Executivo é no plano da supervisão ministerial conforme previsto no artigo 20, parágrafo único, do Decreto-lei n.o 200/67, que se restringe à orientação, coordenação e controle externo das atividades dos órgãos subordinados ou vinculados. Especificamente no caso das agências reguladoras, a vinculação relaciona-se com a implementação de políticas públicas traçadas pelo Governo, que, inobstante a independência do órgão, devem ser respeitadas e seguidas.

[16] Lei n.o 9.986/00, artigo 5.o, caput.

[17] Tais requisitos são objetivamente aferíveis e não podem ser desconsiderados pelo Senado. E justamente por sua objetividade, a doutrina assinala que comportam controle jurisdicional.

[18] 2002, p.438.

[19] Ibid., p.439.

[20] JUSTEN FILHO (2002, p.439-440) entende que o elevado conhecimento na área de atuação assemelha-se à notória especialização de que trata a Lei 8.666/93 (art.25 § 1.o). Segundo o autor “o que se exige é que o sujeito domine com maestria os problemas e soluções no setor de atuação da agência. Mas esse juízo não pode ser examinado em face da comunidade em geral e, sim, no tocante aos segmentos especializados. O sujeito deve não apenas ser conhecido e reconhecido como titular de conhecimentos numa área mas, além disso, será imperioso que mereça o aplauso e a admiração dos especialistas em virtude de seu trajeto pessoal. O elevado conceito é o resultado de contribuições pessoais significativas, da dedicação ao estudo ou à formulação de soluções, ao domínio de problemas característicos de um setor. O elevado conceito corresponde ao reconhecimento de que o sujeito é uma autoridade num setor específico, o que significa que lhe é prestado respeito e que o entendimento manifestado acerca das questões específicas recebe dos especialistas uma presunção de correção técnico-científica. Mais ainda, deve haver dados objetivos justificadores do juízo. Não se preenche o requisito legal quando não há qualquer material que justifique o surgimento de juízos de aprovação, aplauso e admiração. Assim, por exemplo, suponha-se um servidor público que ocupou diversos cargos em comissão ao longo de sua carreira, sempre com eficiência  mas sem nunca haver exercitado qualquer habilidade especial num campo especializado de conhecimento. Não se pode atribuir-lhe o preenchimento do requisito do elevado conceito. O que se pretende é selecionar profissionais de grande capacitação, acima da média disponível no mercado, para conduzir as políticas públicas em setores de grande complexidade e relevância. Não se pretende premiar a fidelidade política, a amizade, ou mesmo, a dedicação de um servidor à causa pública ou a certo político.            Nesse ponto, merece destaque outro ângulo da questão. É que a ampliação do conceito pessoal do sujeito corresponde a uma elevação do raciocínio crítico e de sua autonomia pessoal em face de pressões externas. Quanto maior o conceito de que um certo sujeito goza, tanto menos suscetível será seu comportamento à influência de autoridades públicas ou grupos privados. O conceito elevado propicia autoridade pessoal, reduzindo o risco de frustração das finalidades que conduzem à adoção do modelo de agências”.

[21] Improbidade administrativa – instrumentos para o controle preventivo, Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 12, n. 139, set.2012, p.52.

[22] Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), criada pela Lei n.o 9.427/96, em seu art.9.o, prevê a quarentena de 12 meses; Agência Nacional do Petróleo (ANP), criada pela Lei n.o 9.478/97, em seu art.14, prevê a quarentena de 12 meses; Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL), criada pela Lei n.o 9.472/97, em seu art.30, prevê a quarentena de um ano; Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), criada pela Lei n.o 9.782/99, em seu artigo 14, prevê a quarentena de um ano; Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), criada pela Lei n.o 9.961/00, em seu artigo 9.o, prevê a quarentena de 12 meses; Agência Nacional de Águas (ANA), criada pela Lei n.o 9.984/00, não define prazo de quarentena porque o dispositivo que a continha (art.15) foi vetado, respeitando, assim, o prazo de quatro meses fixado no caput do artigo 8.o da Lei n.o 9.986/00; Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ) e Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), criadas pela Lei n.o 10.233/01, em seu artigo 59, prevê a quarentena de um ano; Agência Nacional do Cinema (ANCINE), criada pela Medida Provisória n.o 2.228-1/2001, não estabelece prazo de incompatibilidade, mas seu Regimento Interno (aprovado pelo Decreto n.o 4.121/2002) faz expressão menção ao artigo 8.o da Lei 9.986/00, que fixa a quarentena em quatro meses; Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC), criada pela Lei n.o 11.182/05, no artigo 19 de seu Regulamento, aprovado pelo Decreto n.o 5.731/06, prevê a quarentena de quatro meses.

[23] No sentido de moralizar o serviço público federal, foi editada a Lei n.o 12.813, de 16/05/2013, que define o que vem a ser conflito de interesses e informação privilegiada, bem como estabelece procedimentos e sanções voltadas ao controle desses desvios de conduta. De acordo com a lei em comento (artigo 3.o), conflito de interesses é  “a situação gerada pelo confronto entre interesses públicos e privados, que possa comprometer o interesse coletivo ou influenciar, de maneira imprópria, o desempenho da função pública”; e informação privilegiada consiste naquela “que diz respeito a assuntos sigilosos ou aquela relevante ao processo de decisão no âmbito do Poder Executivo federal que tenha repercussão econômica ou financeira e que não seja de amplo conhecimento público”. A prática dessas condutas durante o exercício da função pública enseja a pena de demissão e configura ato de improbidade administrativa. Após o exercício da função pública, a divulgação ou uso de informação privilegiada, a qualquer tempo, implica ato de improbidade, o que só se aperfeiçoa, em relação ao conflito de interesses, nos seis meses seguintes à saída do cargo ou emprego público. Todavia, a Comissão de Ética Pública ou a Controladoria-Geral da União poderá autorizar que mesmo no período de seis meses, o agente público desempenhe certas atividades que guardem relação com a função pública anteriormente exercida (artigos 5.o, 6.o e 12). A norma deve ser examinada em cotejo com o caput do artigo 8.o da Lei n.o 9.986/00, o que permite a seguinte interpretação: nos quatro primeiros meses do afastamento do cargo, é absolutamente proibido ao ex-dirigente da agência a prestação de qualquer espécie de serviço para entidades do setor regulado (motivo pelo qual permanece auferindo remuneração daquele órgão); nos dois meses seguintes, desde que exista autorização da Comissão de Ética Pública ou da Controladoria-Geral da União, poderá prestar serviços ao setor regulado, hipótese em que, evidentemente, não deverá se valer das informações privilegiadas obtidas no exercício do cargo.

[24] Lei n.o 9.986/00, artigo 8.o, § 2.o.

[25] Como exemplo podemos citar a punição demasiado grave ou onerosa aos operadores econômicos por eventuais faltas cometidas, a fim de satisfazer a opinião pública; e a imposição de metas de ocasião destinadas a beneficiar o consumidor no curto prazo, desconsiderando os reflexos de médio e longo prazo no mercado.

[26] Constituem atitudes dessa natureza a redução imotivada de tarifas, tornando o negócio desestimulante à iniciativa privada; e a outorga a empresas desqualificadas e incapazes de atender a metas quantitativa e qualitativamente definidas.

[27] A Lei n.o 9.986/00 prevê a perda do mandato em função de renúncia, de condenação judicial transitada em julgado ou de processo administrativo disciplinar (art. 9.o). Assim, embora a investidura decorra de ato complexo, a demissão decorre de ato singular (observado o devido processo legal). Isto porque é a Constituição que determina em que casos a investidura – e também a demissão – decorrerá de ato complexo. Em outras palavras, somente nas hipóteses expressamente indicadas na Carta é que a demissão exigirá ato complexo (p.ex., demissão do Procurador Geral da República, tal como disposto no inciso XI do artigo 52). Portanto, o fato da investidura contar com a aquiescência do Senado não obriga que a demissão fique vinculada a vênia desse Órgão.

[28] O citado autor (2005, p.67-72) sumaria as características dessa independência: (i) o órgão regulador deve ser independente diante do operador econômico, o que não significa que deve agir contra ele. A existência do agente regulado é fundamental para a economia, permitindo a pluralidade de prestadores e a competição. Portanto, a atuação do órgão regulador deve manter a equidistância para, quando necessário, i.e., quando a conciliação não for possível, impor sua vontade ao agente regulado; (ii) a agência reguladora não se presta apenas à defesa dos interesses dos consumidores. A bem desses, deve atender aos legítimos reclamos do mercado regulado, mantendo-o atrativo à iniciativa privada. A incondicional defesa do consumidor, benéfica num primeiro momento, pode mostrar-se danosa no médio e longo prazo porque pode tornar desinteresse o investimento privado no setor regulado. Nesse quadro (a) ficam prejudicadas as metas de universalização ante a carência de recursos; e (b) o ambiente fica propício ao surgimento de oligopólios, i.e., ausência de competidores no mercado regulado; (iii) o órgão regulador tem compromisso com a execução da política pública traçada pelo governo, mas não tem compromisso com atitudes eleitoreiras ou danosas ao setor regulado, contra as quais deve se opor.

[29] DI PIETRO, 2004, p.86.

[30] Como poderia a Administração Pública interditar um estabelecimento comercial que não atende aos mínimos requisitos de higiene senão pelo exercício do poder de polícia?

[31] No âmbito da Administração é necessário uniformização de atos e procedimentos, seja para evitar nulidades, seja para assegurar a eficiência dos serviços prestados. Esta uniformidade é alcançada pela edição de normas. O não exercício do poder normativo obrigaria cada agente público a praticar atos conforme seu talante. Nesta hipótese muitos atos, se não a maioria, seriam atingidos por nulidades relacionadas à competência, à forma, à finalidade, ao motivo ou até mesmo ao objeto.

[32] O exercício do poder sancionatório não se limita à imposição de sanção, compreendendo a adoção dos meios (administrativos e judiciais) necessários a vê-la cumprida. A cominação que olvida a utilização desses meios implica na negação deste mesmo poder. Em outras palavras, a sanção aplicada mas não cumprida, além de ineficaz, não atinge a finalidade de coibir a reiteração da conduta.

[33] FURTADO (2007, p.648) defende a possibilidade do contrato de concessão de serviços públicos conferir às agências reguladoras poderes não previstos em lei.

[34] Lei n.o 9.074/95, artigo. 10. Cabe à Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL, declarar a utilidade pública, para fins de desapropriação ou instituição de servidão administrativa, das áreas necessárias à implantação de instalações de concessionários, permissionários e autorizados de energia elétrica.

[35] O poder de editar diretamente atos de outorga é conferido a ANATEL (Lei n.o 9.472/97, art.19, V e IX), ANP (Lei n.o 9.478/97, art.23 § 2.o), ANA (Lei n.o 9.984/00, art. 4.o, IV, e art. 6.o), ANTT e ANTAQ (Lei n.o 10.233/01, art. 24, V, e art. 27, V) e ANAC (Lei n.o 11.182/05, art.3.o, III). Por outro lado, à ANEEL é conferido apenas o poder de licitar a outorga (Lei n.o 9.427/86, art.3.o, II).

[36] Como observa CUÉLLAR (2008, p.53-54), a regulação independente é “neutra e imparcial, apolítica e técnica. As agências reguladoras não defendem os interesses do governo, nem os das empresas reguladas, tampouco os dos consumidores. A regulação é objetiva e deve preocupar-se com o mais eficiente desenvolvimento da atividade econômica a ela submetida como forma de implementar a política pública definida pelos órgãos administrativos e legislativos competentes. Devem as agências concretizar essa função objetiva de regulação técnica com vistas à concretização das finalidades públicas ínsitas ao papel que determinado setor econômico desempenha no desenvolvimento nacional. Importa dizer que, para que essa regulação se concretize, os entes reguladores devem possuir poderes-deveres que viabilizem o desenvolvimento de funções inerentes à regulação (elaboração de normas, a sua implementação e a aplicação de sanções pelo descumprimento de tais normas)”.

[37] Uma dessas questões consiste na independência administrativa dos órgãos reguladores. Ao decidir a medida cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade n.o 1.949, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a constitucionalidade da norma que proíbe a demissão imotivada de seus dirigentes, o que vem ratificar a constitucionalidade da outorga de mandato fixo. Na Ação Direta de Inconstitucionalidade n.o 2.310, a Corte entendeu que o exercício das atividades finalísticas das agências deve ser exercido por servidores titulares de cargo efetivo, e não titulares de emprego público (o que motivou a Lei n.o 10.871/04, que criou as carreiras de cargos efetivos nas agências reguladoras).

[38] Esta a tese adotada pelo Superior Tribunal de Justiça ao decidir o Recurso Especial n.o 1.162.281 (julgado aos 19/02/2013), em franca mudança de seu anterior entendimento. Na ementa foi averbado que “6. Por outro lado, os atos do INPI relacionados com o registro do alto renome de uma marca, por derivarem do exercício de uma discricionariedade técnica e vinculada, encontram-se sujeitos a controle pelo Poder Judiciário, sem que isso implique violação do princípio da separação dos poderes”. Inobstante a confusão terminológica, é possível observar que “discricionariedade técnica e vinculada” não é discricionariedade, mas ato vinculado às opções técnicas.

[39] DI PIETRO, 2012, p.119-124.

[40] É o entendimento de DI PIETRO (2007, p.13-14); de GUERRA (2005, p.191-201), para quem o termo discricionariedade técnica tem como objetivo furtar os atos regulatórios do controle jurisdicional; de SOUTO (2005, p.368-369), segundo o qual se a escolha é técnica, então será baseada em critérios científicos, de apreciação certa e objetiva, o que retira do administrador a possibilidade de escolha subjetiva; e de JUSTEN FILHO (2002, p.525-528). Este último aduz que a denominada discricionariedade exclusivamente baseada em critérios técnicos não existe. O que o dirigente da agência exercita é a discricionariedade administrativa comum, ainda que para tanto se valha de seu conhecimento técnico. Entende que se a opção fosse meramente técnica, seria vinculada, e não discricionária. Diante da situação concreta, o administrador opta por uma ou outra corrente ou teoria, e assim o faz arribado em elementos outros que refogem ao mero aspecto técnico. Cita como exemplo a opção, pelos dirigentes do BACEN, acerca de majorar, manter ou reduzir a taxa de juros, de vez que cada escolha reflete na economia até de modo inimaginável; e a opção entre sacrificar o gado como prevenção à difusão da febre aftosa, ou aguardar que ele manifeste os primeiros sintomas da doença (o que implica, de um lado, o prejuízo a um restrito número de produtores, e, de outro, a desconfiança dos compradores internacionais do gado brasileiro).

[41] JUSTEN FILHO, 2002, p.589-590.

[42] Não é despiciendo lembrar que ao lado da competência e da finalidade, também a forma, o objeto ou conteúdo e o motivo são elementos que integram o ato administrativo.

[43] Também a forma, quando definida em lei e essencial à sacramentalização do ato administrativo, será elemento vinculado (CARVALHO FILHO, 2005, p.31 e 89; DI PIETRO, 2004, p.231-232).

[44] Não é demais lembrar que o ato discricionário ilegal pode ser anulado pelo Poder Judiciário e pela própria Administração, gerando efeitos ex tunc (STF, súmula 473).

[45] Neste caso, o ato será revogado pela Administração com efeitos ex nunc (preservando as relações jurídicas anteriores à revogação).

[46] Como assinala DI PIETRO (2012, p.41) “o emprego, nas normas legais, de termos de sentido indeterminado [...], que inicialmente era entendido como outorga de discricionariedade à Administração Pública, passou a ser visto de outra forma: tratando-se de conceitos jurídicos (já que empregados pelo legislador), eles são passíveis de interpretação e, portanto, abertos à apreciação pelo Poder Judiciário, como intérprete da lei em última instância. Daí a conhecida frase: a discricionariedade administrativa começa quando termina o trabalho de interpretação. Por outras palavras, a utilização de conceitos jurídicos indeterminados não pode, por si, servir de limite à apreciação pelo Poder Judiciário: a este cabe, primeiro, interpretar o conceito contido na norma, diante dos fatos concretos a ele submetidos. Se, pelo trabalho da interpretação, puder chegar a uma solução única que possa ser considerada válida, o juiz poderá invalidar a decisão administrativa que a contrarie”.

[47] Conforme GUERRA (2005, p.301-321). O autor, contudo, assevera que o Judiciário e a maioria da doutrina nacional não veem diferença entre os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, assinalando apenas que aquele decorre de construção americana, e este, alemã.

[48] JUSTEN FILHO, 2002, p.528.

[49] Neste sentido, BARROSO defende que “o Judiciário deve ser conservador em relação às decisões das agências, especialmente em relação às escolhas informadas por critérios técnicos, sob pena de cair no domínio da incerteza e do subjetivismo” (Apontamentos sobre as agências reguladoras. In: MORAES, Alexandre. Agências Reguladoras. São Paulo: Atlas, 2002, p.127). ARAGÃO (2002, p.350-351), de seu turno, averba que “em razão da ampla discricionariedade conferida pela lei e ao caráter técnico-especializado do seu exercício, prevalece, na dúvida e desde que seja razoável, a decisão do órgão ou entidade reguladora, até porque, pela natureza da matéria, ela acabaria deixando de ser decidida pela agência para, na prática, passar a ser decidida pelo perito técnico do Judiciário”. Nas lúcidas palavras de DI PIETRO (2012, p.145) “quando o Judiciário analisa políticas públicas fixadas e implementadas pelos demais Poderes, ele caminha em areias movediças. Todos os fundamentos em que se baseiam os defensores do controle judicial decorrem de conceitos jurídicos indeterminados, como dignidade da pessoa humana, núcleo essencial dos direitos fundamentais, mínimo existencial, razoabilidade, proporcionalidade. Não há critérios objetivos que permitam definir, com precisão, o que é essencial para que se garanta a dignidade da pessoa humana, ou em que consiste o núcleo essencial dos direitos fundamentais ou o mínimo existencial. E mesmo esse mínimo pode estar fora do alcance do poder público, pela limitação dos recursos financeiros. Não é por outra razão que não se pode fugir inteiramente ao caráter programático das normas constitucionais inseridas no capítulo da ordem social e econômica”.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Marcelo Rodrigues da. Agências reguladoras e controle judicial de suas decisões. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3993, 7 jun. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29188. Acesso em: 23 abr. 2024.