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Relativismo, universalismo e direito fundamental à vida

Breves considerações sobre o infanticídio indígena no Brasil

Relativismo, universalismo e direito fundamental à vida: Breves considerações sobre o infanticídio indígena no Brasil

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O presente trabalho busca realizar uma sintética análise da questão do infanticídio indígena no Brasil, ainda praticado por algumas tribos, e as perspectivas de enfrentamento do problema, sob a ótica do ordenamento jurídico atual.

Resumo: O presente trabalho busca realizar uma sintética análise da questão do infanticídio indígena no Brasil, ainda praticado por algumas tribos, e as perspectivas de enfrentamento do problema, sob a ótica do ordenamento jurídico atual. Obviamente não se olvidará que a Constituição Brasileira cerca de proteção jurídica o conjunto de elementos constitutivos da cultura indígena (arts. 215, parágrafo primeiro e 231) e que, por outro lado, também eleva a patamar de direito fundamental o valor da vida humana. Não se pode fugir do nítido conflito de valores que se revela na problemática em exame e, então, notar as implicações práticas que surgem e que envolvem, dentre outras questões, a necessidade de atribuir proteção às vidas das crianças indígenas potencialmente passivas de serem vítimas de infanticídio, ao tempo em que também demanda o respeito à liberdade cultural daqueles povos. Nesse ponto, brota como a perspectiva de amenização da controvérsia a aplicação da técnica de ponderação de valores, a ser utilizada para analisar a efetividade que se pode extrair da atual legislação que incide sobre a matéria e daquela que estar por vir. Como resultado da pesquisa, apenas será posto um ponto de vista sobre a relevância do atual quadro normativo existente - que não deixa de ser insuficiente, mas que dá sinais de uma possível estabilização sobre a hierarquia de valores envolvidos nesse debate.

Palavras-chave: infanticídio; vida; direitos fundamentais; ponderação; e valores.


Introdução

O debate acerca do infanticídio indígena no Brasil ganhou relevo nacional e popular recentemente no Brasil, ante algumas matérias veiculadas a imprensa. A prática indígena, obviamente, remonta séculos, mas o seu conhecimento pela maioria da população não deve ser maior do que o período passado de 10 ou 15 anos.

Vários trabalhos científicos já perfizeram estudos sore a matéria que se propõe, novamente, estudar no presente artigo. Percebe-se, dentre várias problemáticas que irradiam da questão, que a principal controvérsia presente no debate reside no aparente conflito de valores constitucionais subsumidos no multiculturalismo e no direito à vida – no qual se inclui a dúvida sobre como atenuar essa fricção entre direitos.

Assim, a proposta do presente trabalho percorrerá, incialmente, uma análise breve sobre o direito à diversidade cultural; posteriormente, tentar-se-á visualizar os efeitos do embate entre o respeito à diversidade cultural e a proteção à vida, sem olvidar da influência que cada um destes institutos exerce no problemas práticos relativos ao infanticídio indígena; e, por fim, poder-se-á descrever a conclusão sobre as medidas jurídicas possíveis para equação das variantes axiológicas que envolvem o tema.


1. O MULTICULTURALISMO NA SOCIEDADE BRASILEIRA

O pluralismo cultural, sem sombra de dúvida, é uma característica nacional. A formação da sociedade brasileira e de sua identidade é fruto de uma combinação de valores, crenças e costumes variados, que não se resumem à contribuição dos atores que participaram do processo de construção do país no período colonial (europeus, índios e negros africanos), mas que deriva de uma operação envolvendo todas as culturas presentes na história brasileira, com resultado quase exponencial de conscientização da identidade nacional - a qual continua em processo de formação.

Há, na Constituição Federal do Brasil, o reconhecimento desta condição inerente à nossa sociedade, no preâmbulo da Carta:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL[1].

O reconhecimento da diversidade de culturas e o direito ao patrimônio cultural pelos povos indígenas foram estabelecidos, também na CF/88, que prevê, em seus arts. 215 e 233:

Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.

§ 1º - O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.

(...)

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens[2].

Sobre o direito à diversidade cultural, ensina o doutrinador Paulo Bonavides:

O direito à diversidade cultural é uma garantia concedida a determinados grupos culturalmente diferenciados de que suas tradições, crenças, e costumes possam ser preservados e protegidos frente a movimentos de interculturalidade, ou seja, ninguém pode ser obrigado a abster-se de possuir suas próprias tradições, crenças e costumes, ou mesmo de ser obrigado a aderir às tradições, crenças e costumes de outros grupos[3].

Nesse diapasão, em que remontamos brevemente o espectro constitucional de reconhecimento ao direito à diversidade cultural indígena, entra em cena a discussão sobre a prática cultural e milenar de se matar crianças (por motivos diversos).

O infanticídio realizado por algumas etnias indígenas alocadas no território brasileiro pode ser visualizado no depoimento de Kaniru Kanayurá, índia pertencente a uma das tribos do Vale do Xingu:

Até hoje eu só consegui desenterrar um com vida, o Amalé. A mãe dele era solteira, ela chorou muito, mas o pai dela enterrou ele. Ele estava chorando dentro do buraco, aí minhas parentes foram me chamar. Eu entrei na casa, perguntei onde ele estava enterrado e tirei ele do buraco. Saiu sangue da boca e do nariz dele, mas ele viveu. Ele está doente, mas eu decidi criá-lo. Agora ele é meu filho. É um menino bonito, não é cachorro. É errado enterrar. Teve três crianças que eu tentei salvar, mas não deu tempo. Uma nasceu de noite e eu não vi. A minha tia também queria essa criança, gostava dela, mas quando chegou lá a mãe dela já tinha quebrado o pescoço do bebê[4].

Não deixa de ser comovente o depoimento da índia, nem isolado. Em breve pesquisa em sites de instituições especializadas no convívio com os indígenas, percebe-se que existe uma grande angústia por parte das mães, principalmente, que por razões culturais (ou da tradição local) são obrigadas a abrir mão da criação de seus filhos recém-nascidos – e há relatos de matança de crianças maiores, com até 12 anos.

A prática de infanticídio indígena decorre de uma cultura milenar e são muitas razões que levam a este ato. Saulo Feitosa, Carla Rubia e Samuel Carvalho resumem em três hipóteses:

As razões são diversas, mas, para fins práticos, podem ser agrupadas em torno de três critérios gerais: a incapacidade da mãe em dedicar atenção e os cuidados necessários a mais um filho; o fato do recém-nascido estar apto ou não a sobreviver naquele ambiente físico e sóciocultural onde nasceu; e a preferência por um sexo[5].

 O infanticídio, ao contrário do que possa parecer, não é generalizado, e a prática tem sido reconhecida apenas em determinadas etnias, entre elas os uaiuai, bororo, mehinaco, tapirapé, ticuna, amondaua, uru-eu-uau-uau, suruwaha, deni, jarawara, jaminawa, waurá, kuikuro, kamayurá, parintintin, yanomami, paracanã e kajabi[6].

Por outro lado, é inegável que a tradição indígena em debate tem sido contestada por parte dos próprios integrantes daquela sociedade. Em vários depoimentos colhidos de pessoas pertencentes àquelas comunidades índigenas, especialmente das mães, pode-se vislumbrar o sofrimento que decorre da manutenção dessa tradição – como já visto alhures.

Da questão posta em debate, portanto, pode-se visualizar um nítido conflito entre valores constitucionais: de um lado o direito à dignidade humana – que em maior ou menor medida reflete, ou mesmo engloba, o direito à vida -; e, por outro lado, o direito ao reconhecimento das tradições indígenas.

Aqui vale ressaltar que o contexto que envolve essa prática indígena é completamente diverso da cultura em que a sociedade brasileira urbana – não indígena – está ambientada, e tal aspecto, de certa forma, legitima o reconhecimento dessa prática e a tendência de uma intervenção menos agressiva por parte do Estado.

Sobre o assunto, cita-se a antropóloga Marianna Assunção Figueiredo Holanda, autora da dissertação “Quem são os humanos dos Direitos: sobre a criminalização do infanticídio indígena”:

Esse é um dos pontos centrais do estudo: o que nós, brancos, entendemos como sendo vida e humano diferente da percepção dos índios. Um bebê indígena, quando nasce, não é considerado uma pessoa – ele vai adquirindo pessoalidade ao longo da vida e das relações sociais que estabelece[7]

A despeito disso, não há como negar que, ao respeitar integralmente a prática indígena e coibir qualquer ação que tente, de maneira mais contundente e radical, impedir a morte de crianças indígenas, o Estado Brasileiro poderia estar, sob determinado ponto de vista, atuando de maneira a consentir com a violação de direitos fundamentais reconhecidos por Ele próprio.

Isso porque há clara disposição, no âmbito internacional, de intenção protetiva à vida, na forma de normas que conferem valor, de caráter praticamente indisponível, à dignidade da pessoa humana, tida esta como premissa básica para o desenvolvimento da sociedade[8].

Considera-se, portanto, que devem ser inseridos no contexto da presente questão os pontos a favor da proteção jurídica relativa ao reconhecimento cultural em contraponto aos argumentos relativos ao direito fundamental à vida. Na tentativa de solucionar a presente problemática, surge o seguinte questionamento: a política e ou aplicação da tese jurídica que legitima o reconhecimento cultural de um povo minoritário teria autoridade para permitir uma prática claramente contrária ao direito fundamental à vida?


2. RELATIVISMO E UNIVERSALIMSMO E A TEORIA CRÍTICA

No centro do presente debate, paralelamente ao nítido conflito de princípios constitucionais já mencionados, evidencia-se também o inevitável cotejo de duas correntes teóricas: a do universalismo abrangente e a do relativismo cultural.

Depreende-se que as duas correntes citadas surgem concomitantemente às novas teorias jurídicas pós-Segunda Guerra Mundial, momento no qual a humanidade, como um todo, e a comunidade jurídica especialmente, buscava enfrentar os perigos potencialmente advindos de uma possível legitimação normativa a governos totalitários, além de estabelecer um marco ideológico de intenção de respeito universal aos direitos básicos do homem.

No processo de universalização de direitos proposto pela comunidade internacional, entretanto, delineou-se um confronto entre a opinião universalista de direitos humanos e diversas questões ligadas às diferenças culturais, religiosas e éticas existentes no mundo. Nesse contexto é que surge a teoria do relativismo cultural.

Nas palavras de Ronaldo Lidório:

O relativismo cultural, inicialmente desenvolvido por Franz Boas e com base no historicismo de Herder, defende que bem e mal são elementos definidos em cada cultura. E que não há verdades culturais visto que não há padrões para se pesar o comportamento humano e compará-lo a outro. Cada cultura pesa a si mesma e julga a si mesma[9].

De outro lado, fruto exatamente da intenção de se estabelecer direitos universais intangíveis, que independentemente de raça, sexo, etnia ou religião, os homens e mulheres possuem simplesmente por serem humanos, desenvolve-se a teoria da universalidade abrangente.

Segundo Natália de França Santos:

A tese da universalidade dos direitos humanos foi adotada pela ONU através da Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948, sendo posteriormente reafirmada através da Declaração de Viena, de 1993[10].

Com efeito, tal informação, de fato, pode ser facilmente extraída dos textos da ONU, mencionados pela Autora. Senão vejamos:

A presente Declaração Universal dos Diretos Humanos como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, com o objetivo de que cada indivíduo e cada órgão da sociedade, tendo sempre em mente esta Declaração, se esforce, através do ensino e da educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades, e, pela adoção de medidas progressivas de caráter nacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento e a sua observância universais e efetivos, tanto entre os povos dos próprios Estados-Membros, quanto entre os povos dos territórios sob sua jurisdição[11].   

Todos os Direitos do homem são universais, indivisíveis, interdependentes e interrelacionados. A comunidade internacional tem de considerar globalmente os Direitos do homem, de forma justa e equitativa e com igual ênfase. Embora se devam ter sempre presente o significado das especificidades nacionais e regionais e os antecedentes históricos, culturais e religiosos, compete aos Estados, independentemente dos seus sistemas político, económico e cultural, promover e proteger todos os Direitos do homem e liberdades fundamentais[12]

Nesse ponto da pesquisa, releva ser extremamente pertinente trazer a perspectiva teórica disseminada pela Teoria Crítica do Direito. Mais recentemente, a partir do pensamento do professor e doutrinador Axel Honneth, foi introduzido no seio da citada teoria um viés sociológico, necessário à reflexão de uma saída para a emancipação do ser humano segundo o pressuposto da dinâmica social efetiva, ou seja, “segundo as experiências de injustiça e os conflitos que se seguem a cada experiência” [13].

No livro Luta por Reconhecimento, Honneth discute os padrões de reconhecimento nas suas três dimensões e as respectivas formas de desrespeito: amor (violação), do direito (privação de direitos) e da solidariedade (degradação). No que concerne à dimensão atinente ao direito, Honneth ensina:

“... só podemos chegar a uma compreensão de nós mesmos como portadores de direitos quando possuímos, inversamente, um saber sobre quais obrigações temos de observar em face do respectivo outro: apenas da perspectiva normativa de um ‘outro generalizado’, que já nos ensina a reconhecer os outros membros da coletividade como portadores de direitos, nós podemos nos entender também como pessoa de direito, no sentido de que podemos estar seguros do cumprimento social de algumas de nossas pretensões” [14].

É nesse contexto de diretriz doutrinária voltada à obtenção de um significado humano, sob a ótica do direito, a partir do reconhecimento da dignidade do outro ser humano, podemos também abstrair a premissa segunda a qual “a existência do indivíduo está associada à vida do conjunto ao qual ele pertence”, forjada por Rolf Wiggershaus[15].

Sob a ótica dessas correntes teóricas, poderemos analisar a atual situação normativa e, com aplicação do princípio da proporcionalidade (ou ponderação de valores), verificar que diretriz poderia, em tese, ser tomada pelo Estado Brasileira na solução do conflito.


3. ATUAL SITUAÇÃO NORMATIVA DA QUESTÃO ORA DEBATIDA

O infanticídio é um tipo legal discriminado no art. 123 do Código Penal Brasileiro. Preceitua o dispositivo: “Matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após: Pena - detenção, de dois a seis anos” [16].

Contudo, utiliza-se aqui esta expressão (infanticídio) apenas pela praticidade do ato e por falta de outra expressão que qualifique com melhor nitidez a situação debatida na pesquisa[17].

Há de ressaltar que a lei prevê a capacidade relativa do índio, na esfera civil (lei 6001/73). Diferentemente do que entende a maioria da população – e isso retrata uma visão discriminatória da capacidade mental do índio -, é possível a imputabilidade penal do ameríndio, segundo o entendimento que se extrai da Súmula 147/STJ. Essa imputabilidade, contudo, consoante os direitos previstos no art. 231 da CF, deve ser verificada caso a caso. Sobre o infanticídio indígena, decorrendo a prática de costume cultural, em princípio é assegurada a inimputabilidade do ameríndio.

Em que pese a inimputabilidade nesse caso específico e o fato de a prática milenar de matar bebês pôr em cheque o direito fundamental à vida e à dignidade humana das crianças mortas – ao menos a partir da Declaração Universal dos Direitos do Homem, em 1948 -, apenas no ano de 2007 o debate sobre o tema ganhou contornos legais específicos, com a proposição do PL 1.057/2007, na Câmara dos deputados, de autoria do deputado Henrique Afonso.

Várias críticas foram disseminadas sobre a ausência de técnica legislativa da proposta (pode-se citar, por exemplo: a eleição de uma legislação autônoma em contraponto à inserção no contexto do Estatuto do Índio; proposta original que não inseriu no debate uma perspectiva mais ampla das questões sociológicas envolvidas; ausência de previsão de intervenção Estatal menos agressiva possível para a busca de solução do problema[18]), mas fato é que a discussão, de fato, só começou a tomar relevo em âmbito do Poder Legislativo com a proposta original deste PL.

Originalmente, o PL discutia “o combate a práticas tradicionais nocivas e à proteção dos direitos fundamentais de crianças indígenas, bem como pertencentes a outras sociedades ditas não tradicionais”. Percebe-se, da leitura atenta do projeto original, que a forma de abordagem do tema não envolvia qualquer medida de contenção paulatina das práticas indígenas consideradas repulsivas, mas criminalizava o ato daqueles não índios que, conhecendo das práticas descritas no artigo terceiro do PL, omitissem-se na notificação das autoridades competentes ali mencionadas.

Contudo, a análise da matéria em oito artigos do PL original englobava também a previsão de uma atuação efetiva e direta do Estado em prol da proteção da vida da criança, assim como no diálogo com a comunidade no sentido de levar o conhecimento do teor, da visão e da perspectiva dos direitos humanos. Nesse sentido, poder-se-ia vislumbrar uma finalidade de proteção urgente à vida, concomitantemente ao respeito da cultura indígena estabelecida.

Cito os artigos 6 e 7 do PL original, para ilustrar o conteúdo teleológico do projeto:

Art. 6º. Constatada a disposição dos genitores ou do grupo em persistirem na prática tradicional nociva, é dever das autoridades judiciais competentes promover a retirada provisória da criança e/ou dos seus genitores do convívio do respectivo grupo e determinar a sua colocação em abrigos mantidos por entidades governamentais e não governamentais, devidamente registradas nos Conselhos Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente. É, outrossim, dever das mesmas autoridades gestionar, no sentido de demovê-los, sempre por meio do diálogo, da persistência nas citadas práticas, até o esgotamento de todas as possibilidades ao seu alcance.

 Parágrafo único. Frustradas as gestões acima, deverá a criança ser encaminhada às autoridades judiciárias competentes para fins de inclusão no programa de adoção, como medida de preservar seu direito fundamental à vida e à integridade físico-psíquica.

Art. 7º. Serão adotadas medidas para a erradicação das práticas tradicionais nocivas, sempre por meio da educação e do diálogo em direitos humanos, tanto em meio às sociedades em que existem tais práticas, como entre os agentes públicos e profissionais que atuam nestas sociedades. Os órgãos governamentais competentes poderão contar com o apoio da sociedade civil neste intuito[19].

O PL recebeu um substituto, elaborado pela Deputada Janete Rocha Pietá, que atualmente encontra-se pronto para pauta na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, com parecer aprovado por unanimidade. Ele acrescenta o art. 54-A à Lei nº 6.001, de 19 de dezembro de 1973 (Estatuto do Índio), conforme seu caput, para:

“Reafirmar o respeito e o fomento às práticas tradicionais  indígenas, sempre que as mesmas estejam em conformidade com os direitos fundamentais estabelecidos na Constituição Federal e com os tratados e convenções sobre direitos humanos de que a República Federativa do Brasil seja parte.

Parágrafo único. Cabe aos órgãos responsáveis pela política indigenista oferecerem oportunidades adequadas aos povos indígenas de adquirir conhecimentos sobre a sociedade em seu conjunto quando forem verificadas, mediante estudos antropológicos, as seguintes práticas: I – infanticídio; II - atentado violento ao pudor ou estupro; III - maus tratos; IV - agressões à integridade física e psíquica de crianças e seus genitores” [20].

Com efeito, vislumbra-se no novo projeto legislativo uma redução drástica da regulamentação do conflito; conquanto tenha sido proposta uma solução apaziguadora da tensão cultural existente entre polos distintos da sociedade brasileira – louvável no sentido de evitar um estigma negativista dos indígenas – e, ainda, de melhor técnica legislativa – por incluir dispositivos no âmbito da legislação específica já existente -, o debate, de fato, foi reduzido a princípios diretivos sem, aparentemente, propor qualquer medida efetiva e direta.


4. APLICAÇÃO DA PONDERAÇÃO DE VALORES

A par da celeuma que se instaura em torno do problema ora debatido, faz-se necessário lançar mão de uma técnica de ponderação de valores, tendo como pano de fundo o princípio da dignidade da pessoa humana (que é o principio informador na interpretação de todo e qualquer direito fundamental) e o do direito à diversidade cultural dos povos indígenas. Nesse diapasão, poderíamos investigar se o atual projeto legislativo, em substituição ao original PL 1057/2007, atende ao resultado obtido dessa ponderação de valores.

A premissa que se faz latente, para nós, demonstra a preponderância  do direito à vida em detrimento do direito à liberdade cultural no conflito entre direitos fundamentais na esfera judicante para o caso em estudo.

Porém, na tentativa de para a erradicação da prática de infanticídio por algumas etnias indígenas brasileiras, a ser proposta por qualquer operador do direito, deve ser considerado que a solução não pode se afastar da necessidade de, no momento da efetivação do projeto solucionador, não impor, arbitrariamente, a ideia dominante de uma cultura completamente diferente da dos ameríndios.

Nesse contexto, a solução do problema envolvendo a efetividade do quadro normativo brasileiro deverá ser alcançada a partir da consideração dessas premissas básicas: direito inalienável à vida; e direito à diversidade cultural.

Porém, não há como deixar de tomar partido por uma das correntes utilizadas como ponto de partida para análise do infanticídio, alhures citadas. Tomamos como fundamento, nessa situação específica, a perspectiva do universalismo como mais bem apropriada para a construção de uma solução, mas sem deixar de considerar os pontos pertinentes que envolvem o direito à proteção da identidade cultural dos povos indígenas – aspecto de certa forma tangenciado pelo relativismo e suas vertentes teóricas.

Isso porque o direito, e a própria história humana universal, devem ter em si, como elemento constitutivo e finalístico, um propósito a eles inerente, não explícito nem claro, mas que deve ser objeto de indagação de todo indivíduo que não se considera como mero fruto do acaso e por ele direcionado.

Norberto Bobbio, em sua obra “A Era dos Direitos”, acredita que existe um objetivo na história da humanidade, sob a ótica dos direitos do homem. E, para ele, esse objetivo, essa finalidade é o progresso moral da sociedade, que pode ser inferido, como um exemplo, das Declarações de Direitos que surgiram após as duas grandes guerras. Tais eventos históricos, e outros que evidenciaram a tentativa do homem em estabelecer direitos e garantias, podem ser considerados “indícios reveladores de um processo, não necessariamente intencional, no sentido de uma direção pre-estabelecida” [21]. Não obstante Bobbio não consiga definir com precisão científica sua tese[22], o Autor demonstra esperança e suplica, ao relacionar o atraso na colocação prática do progresso moral, para que “busquemos não aumentar esse atraso com nossa incredulidade, com nossa indolência, com nosso ceticismo. Não temos muito tempo a perder” [23].

A partir dessa perspectiva de progresso que, idealmente, deveria fazer parte da história humana e do direito, podemos também vislumbrar que a atual proteção à vida e à dignidade humana encontram patamar consideravelmente elevado. Nesse contexto, o direito à diversidade cultural, apesar de ser também um reflexo do progresso moral da sociedade sobre o mundo jurídico - Bobbio destaca que nos processos de conversão do direito positivo ativou-se, nos últimos anos, a tendência de especificação, pela qual categorias especiais de grupos tiveram o reconhecimento de direitos[24] –, não pode ser transposto ao mesmo nível do direito à vida, de forma a mitigar, no caso dos infanticídios, a sua natureza de indisponibilidade.

No caso em análise, a proposta de solução legislativa, notadamente aquela consubstanciado no substituto do PL original, poderia positivar uma ação estatal mais contundente no enfrentamento do problema, de forma a tutelar o direito à vida das crianças potencialmente vítimas. No atual estágio moral em que se encontra a humanidade – e, especificamente a sociedade brasileira -, não se pode admitir que a matança de crianças, ainda que no ambiente cultural diverso e propício, seja aceita com certa naturalidade.


5. CONCLUSÃO

Pelo conteúdo do substitutivo do PL 1057/2007, apresentado pela Deputada Janete, pode-se visualizar uma tendência de ação paulatina do Estado Brasileiro na solução do problema do infanticídio indígena.

Contudo, entendemos que a atual perspectiva que se pode retirar daquele parecer tem grandes chances de se mostrar insuficiente para proteger a vida das crianças potencialmente vítimas de morte.

A questão, analisada sob a ótica do relativismo, tende a ser solucionada da forma cogitada nessa nova diretriz sinalizada pelo Congresso Nacional; por outro lado, se analisarmos sob o foco do universalismo, toda medida mais contundente e efetiva em prol da proteção do direito fundamental à vida será bem vinda, não havendo que se criticar a imposição de sanções legais àqueles, não indígenas, que se omitam em impedir o extermínio de crianças.

Comungamos, em parte, com a posição defendida pelo Doutor Guilherme Scotti, no sentido de que a via criminalizadora proposta pelo PL original tenderia a dificultar o trabalho daqueles que atuam junto aos povos indígenas, além de poder causar o sentimento de marginalização das sociedades indígenas, negando-lhes o pleno direito à auto estima[25].

Porém, a via de solução definida no Parecer de Substitutivo ao PL original não trouxe qualquer orientação de ação efetiva e rápida estatal no sentido de, através do diálogo intercultural, levar esclarecimentos à comunidade indígena, sobre a atual visão da sociedade mundial (em sua maior parte) acerca do valor da vida, explicação e conscientização do conceito deste elemento, alternativas de enfrentamento dos conflitos internos dessas comunidades, etc.

Entendemos que, nesse aspecto, o PL original atuava com mais incisão e praticidade, pois, não apenas sugeria, mas induzia o Poder Estatal na adoção de medidas para a erradicação das práticas tradicionais nocivas, através da educação e do diálogo em direitos humanos entre às sociedades em que existem tais práticas e com os agentes públicos e profissionais que atuam nestas sociedades. Outra iniciativa que consideramos marcante, e que entendemos mereça ser repensada, é a previsão de apoio da sociedade civil no intuito daquele esclarecimento sobre o valor da vida humana, pois, como se sabe, existem diversas organizações, com caráter religioso ou não, que já atuam nas comunidades indígenas sem o apoio devido e, provavelmente, sem o esclarecimento e direcionamento necessário no sentido de uma atuação mais profissional em respeito à identidade cultural dos silvícolas.

Enfim, não perdemos a chance de tentar solucionar a questão da maneira mais efetiva possível, na medida em que o PL ainda não é Lei e que, ainda que aprovado nos termos atuais, não impede a atuação dos grupos sociais interessados na proteção das potenciais vítimas. Com efeito, admitir a prática do infanticídio, sem qualquer medida eficaz de erradicação rápida desta prática pelas etnias indígenas já citadas, seria complacência com práticas de desvalorização do ser humano – o qual, seja qual sociedade que pertença, merece, hoje mais do que nunca, respeito e valorização de sua condição humana.


Notas

[1]BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado,1998.

[2]BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Senado,1998.

[3]Bonavides, Paulo. Curso de Direito Constitucional.  - 24. e.d – São Paulo: Malheiros, 1999. p. 488.

[4]Infanticídio nas comunidades indígenas no Brasil, Disponível em http://www.hakani.org/pt/palavra_pais.asp. Acesso em 21/05/2013 .

[5]FEITOSA, Saulo Ferreira; TARDIVO, Carla Rúbia Florêncio; CARVALHO, Samuel José de. Bioética, cultura e infanticídio em comunidades indígenas brasileiras: o caso Suruahá [monografia]. CORNELLI, Gabriele e GARRAFA, Volnei (orientadores). UNB. Brasília, 2006.

[6]Infanticídio nas comunidades indígenas no Brasil, Disponível em http://www.hakani.org/pt/palavra_pais.asp. Acesso em 21/05/2013 .

[7]“Estu do contesta criminalização do infanticídio indígena”, disponível em: http://www.direitos.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=5232&Itemid=2, acessado em 21 de maio de 2013.

[8]É o que se extrai do preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Consulta Disponível em:  http://www.onu-brasil.org.br/documentos_direitoshumanos.php Acesso em 25/05/2013.

[9]LIDÓRIO, Ronaldo. Não há morte sem dor: uma visão antropológica sobre o infanticídio indígena no Brasil. Disponível em Disponível em:<http://www.ronaldo.lidorio.combr/index.php?option=com_content&task=view&id=81&Itemid=31>. Acesso em 25 de maio de 2013

[10]SANTOS, Natália de França. O infanticídio indígena no Brasil: O universalismo dos direitos humanos em face do Relativismo cultural. Disponível em: <http://www.derechoycambiosocial.com/revista025/infanticidio_y_derechos_humanos.pdf>. Acesso em 25 de maio de 2013

[11]ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: < http://www.onu-brasil.org.br/documentos_direitoshumanos.php>. Acesso em 25/05/2013.

[12]Declaração Universal dos Direitos Humanos. Consulta Disponível em:< http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/viena/viena.html>. Acesso em 25/05/2013.

[13]REPA, Luiz. Reconhecimento e Justiça na Teoria Crítica da Sociedade em Axel Honneth. In: Nobre, Marcos (org.). Curso Livre de Teoria Crítica. Campinas: Papirus, 2008, p. 184.

[14]HONNETH, Axel. Luta por Reconhecimento – A gramática Moral dos Conflitos Sociais. São Paulo: Editora 34, 2003. P. 179.

[15]WIGGERSHAUS, Rolf. A escola de Frankfurt – História, desenvolvimento teórico, significação política. 2 ed. Trad. De Wolfgang Leo Maar. Rio de janeiro: Difel, 2006, p.70.

[16]BRASIL. Código Penal. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940.

[17]Com efeito, tendo em vista que o ato praticado pelos indígenas está sendo, neste momento, analisado sob uma perspectiva diversa daquela em que se insere o próprio ato, além de o tipo penal conter outros elementos não necessariamente presentes nas práticas ora analisadas, não seria a melhor expressão a ser utilizada.

[18]SCOTTI, Gulherme; DUARTE, Evandro Piza. Infanticídio indígena no Brasil: desafio multicultural. (Artigo).

[19]PL 1057/2007. Consulta Disponível em:< http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=459157&filename=PL+1057/2007>. Acesso em 25/05/2013.

[20]Parecer substitutivo do PL 1057/2007. Consulta Disponível em:< http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=872647&filename=Tramitacao-PL+1057/2007>. Acesso em 25/05/2013.

[21]BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro. Campus. Pg. 47.

[22]Em determinado trecho da obra, Bobbio destaca que “enquanto parece indubitável que o progresso técnico e científico é efetivo, tendo mostrado até agora as duas características da continuidade e irreversibilidade, bem mais difícil – se não mais arriscado – é enfrentar o problema da efetividade do progresso moral...”.

[23]BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro. Campus. Pg. 61.

[24]BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro. Campus. Pg. 58-59.

[25]SCOTTI, Gulherme; DUARTE, Evandro Piza. Infanticídio indígena no Brasil: desafio multicultural. (Artigo).



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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Lucas de Souza. Relativismo, universalismo e direito fundamental à vida: Breves considerações sobre o infanticídio indígena no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4179, 10 dez. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/31048. Acesso em: 18 abr. 2024.