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Aspectos Substanciais da Reforma da Lei de Arbitragem

Aspectos Substanciais da Reforma da Lei de Arbitragem

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Analisam-se aspectos de relevo quanto a algumas das disposições constantes do Projeto de Lei 7.108/2014, recentemente aprovado no Congresso e alcunhado como a reforma da Lei 9307/96, a Lei de Arbitragem (“LA”).

1.         Introdução

Foi aprovada recentemente pelo Congresso a Redação Final do Projeto de Lei 7.108/2014, alcunhado como a reforma da Lei 9307/96, a Lei de Arbitragem (“LA”) . O projeto, inicialmente elaborado no Senado e de autoria do Senador Renan Calheiros, posteriormente submetido à revisão da Câmara dos Deputados, foi objeto de proposta de duas emendas (das quais apenas uma relevante, como se verá adiante), sucessivamente vetadas e, agora, aguarda sanção presidencial[1].

O Projeto de Lei 7.108/2014, resultado de um esforço sério e concentrado de Comissão Especial composta por renomados juristas e presidida pelo Min. Luís Felipe Salomão, do STJ, tem por finalidade ampliar o âmbito de aplicação da arbitragem, bem como dispor sobre a escolha dos árbitros quando as partes recorrem a órgão arbitral, a interrupção da prescrição pela instituição da arbitragem, a concessão de tutelas cautelares e de urgência nos casos de arbitragem, a carta arbitral, a sentença arbitral além de revogar alguns dispositivos da Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996.

A propósito, entendemos pertinente o destaque pontual a algumas das principais mudanças promovidas, notadamente quanto à utilização da arbitragem pela Administração Pública, a interrupção da prescrição pelo requerimento de instauração da arbitragem, as medidas cautelares e de urgência em sede arbitral e as cartas arbitrais.

 

2.         Algumas das principais alterações

 

2.1.      O § 1° do artigo 1° da Lei 9.307/96 - Utilização da arbitragem pela Administração Pública

 

Por primeiro, frise-se, quanto ao âmbito de aplicação, a novel disposição expressa de que a Administração Pública, direta ou indireta, poderá utilizar-se da arbitragem para dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis[2], o que certamente encerrará discussão doutrinária e jurisprudencial sobre o tema, não obstante o entendimento do Judiciário já caminhasse nesse sentido, tendo o próprio STJ consignado oportunamente que “tanto a doutrina como a jurisprudência já sinalizaram no sentido de que não existe óbice legal na estipulação da arbitragem pelo poder público”[3].

A propósito, o cerne da celeuma cingia-se à circunstância de que, pela disposição constante da LA, deve-se restringir o âmbito de aplicação da arbitragem aos direitos patrimoniais disponíveis, conforme dita o seu artigo 1°. Entretanto, dispensada a devida vênia aos que advogam no sentido da impossibilidade de utilização da arbitragem pela Administração Pública sob alegação de indisponibilidade dos seus direitos, talvez olvidem que a atuação do Poder Público não se limita à prática de atos de império, mas compreende também os atos de gestão, em que atua como se particular fosse e, por essa razão, dúvida não há de que alguns dos direitos que titulariza são também dotados de disponibilidade[4]. Logo, revestidos de arbitrabilidade.

Nesse sentido e a título de exemplo, esclareça-se que, consoante o art. 23-A da Lei 8.987/95, que dispõe sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos previsto no art. 175 da Constituição Federal, “o contrato de concessão poderá prever o emprego de mecanismos privados para resolução de disputas decorrentes ou relacionadas ao contrato, inclusive a arbitragem”.

A reforçar a validade da disposição legal acima transcrita, o STJ, debruçando-se sobre o tema, muito bem assentou que “são válidos e eficazes os contratos firmados pelas sociedades de economia mista exploradoras de atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços (CF, art.173, §1°) que estipulem cláusula compromissória submetendo à arbitragem eventuais litígios decorrentes do ajuste”.[5]

Entre outros exemplos[6], a Lei de PPP’s (Lei 11.079/2004) também consigna em seu artigo 11 que:

 

“O instrumento convocatório conterá minuta do contrato, indicará expressamente a submissão da licitação às normas desta Lei e observará, no que couber, os §§ 3o e 4o do art. 15, os arts. 18, 19 e 21 da Lei no 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, podendo ainda prever:

 

(...)

III – o emprego dos mecanismos privados de resolução de disputas, inclusive a arbitragem, a ser realizada no Brasil e em língua portuguesa, nos termos da Lei no 9.307, de 23 de setembro de 1996, para dirimir conflitos decorrentes ou relacionados ao contrato.”

 

Como se vê, são diversas as possibilidades de utilização da arbitragem pela Administração Pública, inclusive havendo disposições legais (ainda que esparsas) sobre a matéria, não obstante a incompreensível obstinação de alguns em repeli-las.

Por essa razão, percebe-se que com a aprovação da reforma proposta, consignar-se-á, de uma vez por todas e expressamente, que os conflitos emergentes no decurso da execução de contratos de grande interesse público, seja em razão do valor ou da especificidade, não necessariamente serão submetidos à apreciação do juiz togado, no mais das vezes leigo em matérias de grande particularidade. Mais que isso, far-se-á com respeito à estrita legalidade e à publicidade que devem nortear os atos da Administração Pública.

Desta forma, fica agora (seguramente) facultado à Administração Pública, com chancela legal, eleger especialistas para dirimir conflitos que demandem excepcional circunspecção, mediante convenção arbitral. Como bem assenta Arnoldo Wald, “é uma confirmação da jurisprudência, com esclarecimentos pertinentes a fim de evitar decisões que ocorram sem a devida transparência.”[7]

Ademais, não se pode olvidar que a Administração Pública é o maior “cliente” do Poder Judiciário. Pesquisas do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) sobre os 100 maiores litigantes no Judiciário brasileiro divulgadas em 2011 e 2012, chegaram à constatação que o setor público federal e os bancos representam cerca de 76% do total de processos dos 100 maiores litigantes nacionais[8].

Nesse sentido, a chancela da utilização da arbitragem pela Administração Pública promovida pela reforma da LA tem implicação direta na atenuação da litigiosidade do Estado. Seria, portanto, contrassenso o hercúleo esforço empreendido por instituições públicas e privadas para promover meios alternativos de solução de controvérsias, como conciliação, mediação e arbitragem, se o Estado, litigante por excelência, não pudesse deles dispor.[9]

Com isso, promove-se, por evidente, maiores chances de se obter um provimento final exitoso, célere e consentâneo com o interesse público, além de inegável contribuição para o desafogamento do Poder Judiciário.

 

2.1.1.   Das emendas proposta pela Câmara dos Deputados

 

Em sede de revisão do texto inicial na Câmara dos Deputados, foram apresentadas duas propostas de emendas ao Projeto. A primeira, inócua, tratava-se de mera formalidade que promove alteração textual na ementa.

A segunda, por sua vez, dizia respeito à utilização da arbitragem pela Administração Pública e foi digna de suscitar controvérsias. De fato, não obstante o panorama delineado no tópico acima, pretendeu a Câmara dos Deputados, mediante proposta de uma das precitadas emendas, restringir o uso da arbitragem pela Administração Pública às ocasiões em que prevista nos respectivos editais, e de acordo com regulamento a ser editado a posteriori.

Com efeito, ao dispositivo proposto introduzido pela reforma da LA a título de § 1º para o art. 1° do referido diploma legal, segundo o qual “A Administração Pública direta e indireta poderá utilizar-se da arbitragem para dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis”, acresceu-se a seguinte ressalva: “desde que previsto no edital ou nos contratos da administração, nos termos do regulamento.”

Ora, com isso, criaria-se verdadeiro “cheque em branco”, afigurando-se contrassenso a alteração proposta, na medida em que ficaria a utilização da arbitragem pela Administração Pública condicionada aos termos de regulamento que sequer existe, em patente implicação de insegurança jurídica a quem dela vier a se utilizar, seja particular ou Administração Pública.  É essa, a propósito, a opinião quase unânime dos arbitralistas.

Há que se lembrar, nesta senda, que o simples fato de o edital não prever que as controvérsias serão resolvidas em juízo arbitral não significa que as partes, posteriormente, não possam celebrar convenção de arbitragem.[10] A propósito o STJ já firmou entendimento.

Com efeito, no julgamento do REsp n° 904.813/PR, a Relatora, Min. Nancy Andrighi, muito bem consignou que:

 

“De fato, tanto a doutrina como a jurisprudência já sinalizaram no sentido de que não existe óbice legal na estipulação da arbitragem pelo poder público, notadamente pelas sociedades de economia mista, admitindo como válidas as cláusulas compromissórias previstas em editais convocatórios de licitação e contratos.

 

Aliás, pelo contrário, exulta-se a utilização da arbitragem, diante da sua maior celeridade e especialidade em comparação com Poder Judiciário. “[11]

 

Como se vê, pois, é consagrado o juízo de que o fato de não haver previsão da arbitragem no edital de licitação ou no contrato celebrado entre as partes, não invalida o compromisso arbitral firmado posteriormente.[12] Por essa razão, andou bem o Senado a repelir as emendas propostas pela Câmara dos Deputados em sede de revisão, porquanto a sua acolhida representaria incompatibilidade com o entendimento erigido ao longo dessas quase duas décadas de vigência da LA e, portanto, retrocesso ao instituto.

 

2.2.      A introdução do § 2° ao artigo 19 da Lei 9.307/96 – Interrupção da prescrição pelo requerimento de instauração de arbitragem

 

Merece destaque, também, o novel dispositivo que preconiza a interrupção da prescrição com a instituição da arbitragem. Dispõe o §2° do art. 19 trazido pelo PL 7.108/2014 que “a instituição da arbitragem interrompe a prescrição, retroagindo à data do requerimento de instauração da arbitragem, ainda que extinta a arbitragem por ausência de jurisdição.”

Nesse sentido, de início cumpre esclarecer que o fato de a lide tramitar sob jurisdição do juízo arbitral não faz com que mereça tratamento diferenciado no que concerne à prescrição. Deve ser apreciada, assim, da mesma maneira em que o é sob a jurisdição estatal.[13]

Ultrapassada essa elementar consideração, cumpre cotejar o que dispõem os dispositivos legais pertinentes ao tema. A respeito, assim prescreve o artigo 202, do Código Civil:

 

“Art. 202. A interrupção da prescrição, que somente poderá ocorrer uma vez, dar-se-á:

(...)

I - por despacho do juiz, mesmo incompetente, que ordenar a citação, se o interessado a promover no prazo e na forma da lei processual;”

 

Como se vê, segundo o dispositivo legal acima transcrito, a interrupção da prescrição operar-se-á  mediante despacho realizador de juízo de admissibilidade positivo da demanda, admitindo a formação da relação jurídica processual e determinando a citação do réu[14]. Com a promulgação da Código Civil de 2002, assim, foram modificadas as regras dos arts. 219 e 617 do Código de Processo Civil, segundo as quais a interrupção da prescrição operava-se com a citação válida do réu.

Acreditamos, contudo, haver sido mantido o § 1° do art. 219 do CPC, segundo o qual “a interrupção da prescrição retroagirá à data da propositura da ação”, posto não lhe serem contrárias as disposições do Código Civil posteriormente promulgado.[15] Nada mais coerente, uma vez que a propositura da ação representa a efetivação do direito de ação e, via de consequência, o prazo prescricional perde sentido[16] com o exercício do direito titularizado ou da pretensão de vê-lo reconhecido.

Diante do exposto, percebe-se que há dois marcos temporais que se nos afiguram relevantes no presente caso: o primeiro, consistente no momento em que a interrupção da prescrição opera-se, e o segundo quanto à abrangência dos efeitos da interrupção.

No que concerne ao primeiro, como aduzido alhures, revela-se no momento em que o despacho citatório inicial consuma-se. Entretanto, há que se lembrar que no processo arbitral não há citação e, quanto ao eventual despacho do árbitro, tem-se que pode demorar, uma vez que se faz necessária a aceitação, pelo árbitro, e a constituição do tribunal arbitral.[17]

A título de solução, Leonardo de Faria Beraldo propõe quatro hipóteses distintas:

 

“Na primeira situação, ambas as partes comparecem, espontaneamente, à câmara de arbitragem e instauram um procedimento arbitral. Na segunda situação, apenas uma das partes comparece ao centro de arbitragem e requer seja iniciada uma arbitragem. A notificação feita à parte contrária, por parte da instituição arbitral, informando-a da lide que está sendo proposta, é o ato processual que interrompe a prescrição. Na terceira situação, como uma das partes está procrastinando a instalação do processo arbitral, haja vista se tratar de cláusula compromissória vazia, a parte contrária será forçada a ajuizar a ação prevista no art. 7° da LA, ou seja, terá de ir ao Judiciário e requerer ao juiz que determine onde será a arbitragem, entre outros detalhes. O primeiro despacho desse juiz, que poderá até mesmo ser o de citação do réu, interromperá a prescrição. Na quarta opção, e ela será a mais segura e adequada se o prazo prescricional estiver prestes a escoar, pode o credor valer-se do protesto judicial ou, até mesmo, da notificação extrajudicial, uma vez que ambos têm o poder de interromper a prescrição.[18]”

 

Diante das soluções propostas por Beraldo e acima transcritas, percebe-se que há diversas maneiras de suprir a aparente lacuna existente na transposição das regras prescricionais do procedimento judicial ao arbitral.

No que concerne ao segundo marco temporal, relativo à abrangência dos efeitos da interrupção da prescrição após deflagrada, retroage, como dito, ao momento da propositura da ação, em razão do § 2°do art. 219 do CPC, posto entendermos não haver sido revogado e por representar o exercício do direito de ação.  Por essa razão, mutatis mutandis, efeito análogo consumar-se-á com o ato do requerimento de instauração da arbitragem, sendo este, no procedimento arbitral, o momento em que se consuma o exercício o direito de ação e, portanto, ao qual deverá retroagir a suspensão da prescrição, uma vez deflagrada.

Ante o exposto, a introduçãoo do § 2° ao artigo 19 da Lei 9.307/96 afigura-se positiva, na medida em que reconhece o exercício do direito (ou da pretensão de vê-lo reconhecido) mediante a provocação da jurisdição arbitral de forma expressa e consentânea com o ordenamento jurídico pátrio.

 

2.3.      O acréscimo dos arts. 22-A e 22-B à Lei 9.307/96 – Regulamentação das tutelas de urgência

 

Igualmente importantes afiguram-se as disposições constantes dos arts. 22-A e 22-B que serão introduzidas à LA em razão da aprovação do PL, na medida em que dispõem sobre as tutelas cautelares e de urgência. Com efeito, com as alterações aduzidas restarão mais claramente definidos os procedimentos a serem observados no âmbito das tutelas cautelares e de urgência, na medida em que se consigna de forma expressa que:

 

“22-A.  antes de instituída a arbitragem, as partes podem pleitear medidas cautelares e de urgência perante o judiciário;

22- B. Instituída a arbitragem, caberá aos árbitros manter, modificar ou revogar a medida cautelar ou de urgência concedida pelo Poder Judiciário.

Parágrafo único. Estando já instituída a arbitragem, as medidas cautelares ou de urgência serão requeridas diretamente aos árbitros..”

 

 

Os dispositivo legais em comento tratam da competência para apreciação e decisão do pedido de tutela de urgência pelo juiz estatal a título de medida excepcional, a despeito da existência de cláusula compromissória, bem como da legitimidade arbitral como juiz de fato e de direito em decorrência da eficácia da cláusula compromissória.

Como se sabe, é prevalente o entendimento de que quando o tribunal arbitral não se encontra ainda formado, poderá a parte recorrer ao Judiciário para obter o provimento cautelar almejado, em razão da excepcionalidade circunstancial que decorre da aplicação do princípio de que quando est periculum in mora, incompetentia non attenditur.

Trata-se, pois, de hipótese excepcional em que o juiz togado será detentor de competência circunstancial, não só para o deferimento da medida, mas também para sua execução[19], o que decorre, sobretudo, do poder-dever geral de cautela do magistrado.

Nesse sentido, inclusive, já se posicionou o STJ. Vejamos:

 

Na pendência da constituição do Tribunal Arbitral, admite-se que a parte se socorra do Poder Judiciário, por intermédio de medida de natureza cautelar, para assegurar o resultado útil da arbitragem. Superadas as circunstâncias temporárias que justificavam a intervenção contigencial do Poder Judiciário e considerando que a celebração do compromisso arbitral implica, como regra, a derrogação da jurisdição estatal, os autos devem ser prontamente encaminhados ao juízo arbitral, para que este assuma o processamento da ação e, se for o caso, reaprecie a tutela conferida, mantendo, alterando ou revogando a respectiva decisão[20]

 

Forte nessas razões, os dispositivos em comento só fazem reforçar o entendimento já firmado, com vistas à pacificação do que se afigura o procedimento mais adequado na praxe. Sem embargo, uma vez instaurado o tribunal arbitral, “a jurisdição sobre o conflito passa a ser do árbitro, e, assim, a ele deve ser encaminhada, também, a questão cautelar envolvendo o litígio. O juiz estatal perde, neste instante, a jurisdição, e as decisões a respeito passam a ser de exclusiva responsabilidade do árbitro”.[21]

Procede-se, pois, ao outro dispositivo sob exame, o art. 22 –A, in verbis:

 

22 – A. (...)

Parágrafo único. Cessa a eficácia da medida cautelar ou de urgência se a parte interessada não requerer a instituição da arbitragem no prazo de 30 (trinta) dias, contado da data da efetivação da respectiva decisão.”

 

A exemplo do que ocorre nos processos judiciais com a observância do trintídio legal para propositura da ação principal após a efetivação de procedimento cautelar preparatório,  consoante a disposição acima haverá cessação da medida caso a parte interessada não requeira a instituição da arbitragem no prazo de 30 (trinta) dias após sua efetivação.

A disposição legal concernente trata-se do art. 806, do Código de Processo Civil, segundo o qual “cabe à parte propor a ação, no prazo de 30 (trinta) dias, contados da data da efetivação da medida cautelar, quando esta for concedida em procedimento preparatório”.

Essa disposição tem sua razão na inafastável necessidade de citação do réu para efetiva formação da relação processual e garantia do contraditório e da ampla defesa. Como se trata do rompimento inaugural da inércia da jurisdição, a citação é fundamental para a concretização do “modelo constitucional” do processo, dando ao réu ciência do pedido de tutela jurisdicional que é formulado em seu desfavor, e lhe oportunizando ampla defesa.[22]

Tratando-se de procedimento arbitral, as medidas não poderiam ser diversas.  Com efeito, a despeito da possibilidade de flexibilização do procedimento mediante convenção das partes, cuida-se aqui de direito fundamental expressamente previsto na Constituição Federal (art. 5°, LV) e, logo, não sujeito a livre convenção pelas partes.

Assim, dúvida não subsiste de que a aplicação do art. 806 do CPC  faz-se necessária, também, no que concerne aos procedimentos arbitrais. Note-se, a propósito, que não raras vezes a propositura da instituição do procedimento arbitral dentro do trintídio legal será obstada pela composição do tribunal arbitral ou, ainda, por resistência da parte adversa à instauração do procedimento.

Nesses casos, basta que a parte a quem incumbe o ônus do cumprimento da determinação legal demonstre que tomou todas as providências necessárias à finalidade de instituir a arbitragem, no prazo de 30 dias[23], seja mediante o simples requerimento, obstado ou não, ou mediante a ação de instituição de arbitragem sobre a qual versa o art. 7° da LA.

 

2.5.      O acréscimo do art. 22-C à Lei 9.307/96 – As Cartas Arbitrais

 

O PL 7.108/2014, aprovado no Congresso, dispõe também sobre as chamadas “cartas arbitrais”, que regulamentam os requerimentos, pelo árbitro, ao órgão jurisdicional competente para o exercício do ato coercitivo eventualmente necessário[24]. Mais que isso, confere-lhe confidencialidade nos casos em que haja necessidade[25], pondo termo à paradoxal situação de se conferir publicidade aos atos jurisdicionais necessários à concretização de medidas cautelares e de urgência requeridas em sede de convenção arbitral.

Sobre a primeira disposição, embora louvável, afigurava-se desnecessária no presente contexto. Isso porque com a promulgação da Lei 13.105/2015, o Novo Código de Processo Civil, consagra-se expressamente a possibilidade de pedido de cooperação entre árbitro e juiz. Esse pedido, com efeito, será feito por meio da Carta Arbitral a que alude o Projeto de Lei 7.108/2014. Eis o que dispõe o art. 237, IV, do NCPC:

 

“Art. 237. Será expedida carta:

(...)

IV – arbitral, para que órgão do Poder Judiciário pratique ou determine o cumprimento, na área da sua competência territorial, de ato objeto de pedido de cooperação judiciária formulado por juízo arbitral, inclusive os que importem efetivação de tutela antecipada.”

 

Note-se, a propósito, que como sabido o árbitro é juiz de fato e de direito, sendo certo que, posto competente para apreciação meritória das demandas a ele submetidas, é  vedado ao juiz togado rever o mérito da decisão arbitral para cuja efetivação se busca a sua cooperação.[26] Sem embargo, deverá a  carta arbitral preencher os requisitos previstos no § 3º do art. 260 do NCPC:

 

“§ 3º A carta arbitral atenderá, no que couber, aos requisitos a que se refere o caput e será instruída com a convenção de arbitragem e com as provas da nomeação do árbitro e da sua aceitação da função”.

 

A carta arbitral é, assim, o instrumento do pedido de cooperação formal entre o juízo arbitral e o Poder Judiciário.[27] Assim, muito embora seja louvável a iniciativa trazida pelo PL 7.108/2014 para institui-la, fazia-se prescindível neste ponto,  uma vez que o Novo Código de Processo Civil já dispõe muito propriamente a respeito. No que concerne ao sigilo concedido à Carta Arbitral, é digno de cumprimentos, na medida em que privilegia um dos principais aspectos positivos ínsitos à arbitragem.

 

3.         Conclusão

 

É certo que a praxe já albergava em grande parte os procedimentos e institutos trazidos pelo PL 7.108/2014 nos casos concretos. Contudo, a regulamentação, de forma expressa, confere segurança jurídica a quem se utiliza dos procedimentos arbitrais, limitando a margem de discricionariedade do intérprete, privilegiando-se o instituto de forma consentânea com a sua concepção primeva.

Há que se observar, contudo, que o sentimento auspicioso quanto às mudanças propostas não é unânime. Há quem as criticou e defendesse a manutenção da legislação arbitral, sob o argumento análogo à velha assertiva de que “em time vencedor não se mexe”, e não totalmente sem razão. De fato, percebe-se que a LA, que este ano completa seus 19 anos de vigência, está compassada com os mais avançados marcos legais mundo afora, tendo sido um dos principais fatores responsáveis, na última década, pelo vertiginoso crescimento do instituto no país.

A nosso ver, entretanto, nada é tão bom que não possa melhorar. A aprovação doPL 7.108/2014 foi exitosa e, assim, muito embora disponha sobre alguns pontos que demandam certa reserva, reforça a jurisprudência pátria e sedimenta pontos mais ou menos controversos que, possivelmente, serão de grande contribuição para a continuidade do desenvolvimento próspero do instituto da arbitragem no país.

 

4.         Referências Bibliográficas

 

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BERALDO, Leonardo de Faria. Ob. cit. p. 406.

BUENO, Cássio Scarpinella.“Curso Sistematizado de Direito Processual Civil”, vol. 4, ed. Saraiva: 2009.

CAHALI, Francisco José. “Curso de arbitragem”. São Paulo: RT, 2011.

CARRETEIRO, Mateus Aimoré. “Tutelas de urgência e processo arbitral”. Dissertação para obtenção do título de Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da USP. São Paulo, 2013.

DIDIER JÚNIOR, Fredie in “A arbitragem no novo código de processo civil (versão da câmara dos deputados – dep. Paulo Teixeira”. Disponível em: < http://aplicacao.tst.jus.br/dspace/bitstream/handle/1939/55987/004_didierjunior.pdf?sequence=1> acesso em 30/04/2015 às 15:24 hs.

FARIAS, Cristiano Chaves de e ROSENVALD, Nelson in Curso de Direito Civil, vol. 1., ed. Jus Podivm: 2014.

FICHTNER, José Antonio; MANNHEIMER, Sergio Nelson; MONTEIRO, André Luís. “Cinco pontos sobre a arbitragem no projeto do novo Código de Processo Civil”. Revista de Processo, São Paulo, RT, 2012, n. 205.

Parecer da Comissão Especial Destinada a Proferir Parecer sobre o PL 7.108 de 2014. Câmara dos Deputados. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1260569&filename=PRL+1+PL710814+%3D%3E+PL+7108/2014>. Acesso em 30/04/2015, 12:42 hs.

REsp n° 904.813/PR, Rel. Min. Nancy Andrighi, STJ, j. 20/10/2011, DJe 28/02/2012.

STJ, 2ª T., REsp n° 606.345/RS, Rel. Min. João Otávio de Noronha, j. 17/05/2007, DJ 08/06/2007)

STJ, 3ª T. AgRg na MC n. 19.226/MS, Rel. Min. Massami Uyeda, Rel. p/ o acórdão Min. Nancy Andrighi, j. 21/06/2012, DJe 29/06/2012.

STJ, REsp n° 904.813/PR, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 20/10/2011, DJe 28/02/2012.

WALD, Arnoldo. “Reforma da Lei de Arbitragem acaba com incertezas”, Consultor Jurídico, 14/10/2013, disponível em:< http://www.conjur.com.br/2013-out-14/arnoldo-wald-reforma-lei-arbitragem-acaba-incertezas>. Acesso em 30/04/2015, às 11:56h.


[1] Disponível em http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=606030> acesso em 29/04/2015, às 17:06.

[2] Art. 1º As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis.

(...)

§ 1º A Administração Pública direta e indireta poderá utilizar-se da arbitragem para dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis.

[3] REsp n° 904.813/PR, Rel. Min. Nancy Andrighi, STJ, j. 20/10/2011, DJe 28/02/2012.

[4] BERALDO, Leonardo de Faria in “Curso de Arbitragem”, São Paulo: ed. Atlas, 2015, p.106

[5] STJ, 2ª T., REsp n° 606.345/RS, Rel. Min. João Otávio de Noronha, j. 17/05/2007, DJ 08/06/2007)

[6] Constituem outros exemplos de aplicação da arbitragem na Administração Pública: Lei Geral de Telecomunicações (Lei 9.472/97) (art. 93, XV), Lei de Petróleo e Gás (Lei 9.478/97) (arts. 43, X e 93), Lei de Transportes Aquaviários e Terrestres (Lei 10.233/01) (art. 35, XVI), Lei de Energia Elétrica (10.438/02) Lei que disciplina a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica – CCEE (Lei 10.848/04) (art. 4°, §§5° e 6°, Lei de Franquias Postais (Lei 11.668/08) etc.

[7] WALD, Arnoldo in “Reforma da Lei de Arbitragem acaba com incertezas”, Consultor Jurídico, 14/10/2013, disponível em:< http://www.conjur.com.br/2013-out-14/arnoldo-wald-reforma-lei-arbitragem-acaba-incertezas>. Acesso em 30/04/2015, às 11:56h.

[8] Parecer da Comissão Especial Destinada a Proferir Parecer sobre o PL 7.108 de 2014. Câmara dos Deputados. p. 9. Disponível em:

<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1260569&filename=PRL+1+PL710814+%3D%3E+PL+7108/2014>. Acesso em 30/04/2015, 12:42 hs.

[9] Ibid.

[10] BERALDO, Leonardo de Faria. Ob. cit. p. 108.

[11] Nesse sentido, ver também: MS 199800200366-9, Conselho Especial, TJDF, J. 18.05.1999, DJ 18.08.1999, MS 11.308-DF, DJ 19.05.2008, (REsp 612439/RS, Rel. Min. João Otávio de Noronha, 2ª Turma, DJ 14/09/2006)

[12] STJ, REsp n° 904.813/PR, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 20/10/2011, DJe 28/02/2012.

[13] BERALDO, Leonardo de Faria. Ob. cit. p. 406.

[14] FARIAS, Cristiano Chaves de e ROSENVALD, Nelson in Curso de Direito Civil, vol. 1., ed. Jus Podivm: 2014, p. 671

[15] Ibid.

[16] BERALDO, Leonardo de Faria. Ob. cit. p. 406.

[17] Ibid.

[18] Ibid.

[19] BERALDO, Leonardo de Faria. Ob. cit. p.360

[20] STJ, 3ª T. AgRg na MC n. 19.226/MS, Rel. Min. Massami Uyeda, Rel. p/ o acórdão Min. Nancy Andrighi, j. 21/06/2012, DJe 29/06/2012.

[21] CAHALI, Francisco José in “Curso de arbitragem”. São Paulo: RT, 2011, pp. 231-232

[22] BUENO, Cássio Scarpinella in “Curso Sistematizado de Direito Processual Civil”, vol. 4, ed. Saraiva: 2009, p. 212.

[23] CARRETEIRO, Mateus Aimoré in “Tutelas de urgência e processo arbitral”. Dissertação para obtenção do título de Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da USP. São Paulo, 2013, p. 184.

[24] Art. 22-C. O árbitro ou o tribunal arbitral poderá expedir carta arbitral, para que o órgão jurisdicional nacional pratique ou determine o cumprimento, na área de sua competência territorial, de ato solicitado pelo árbitro.

[25] Parágrafo único. No cumprimento da carta arbitral será observado o segredo de justiça, desde que comprovada a confidencialidade estipulada na arbitragem

[26] FICHTNER, José Antonio; MANNHEIMER, Sergio Nelson; MONTEIRO, André Luís. Cinco pontos sobre a arbitragem no projeto do novo Código de Processo Civil. Revista de Processo, São Paulo, RT, 2012, n. 205, p. 319.

[27] DIDIER JÚNIOR, Fredie in “A arbitragem no novo código de processo civil (versão da câmara dos deputados – dep. Paulo Teixeira”. p. 74. Disponível em: < http://aplicacao.tst.jus.br/dspace/bitstream/handle/1939/55987/004_didierjunior.pdf?sequence=1> acesso em 30/04/2015 às 15:24 hs.


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