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A teoria discursiva do Direito e da democracia de Jürgen Habermas

A teoria discursiva do Direito e da democracia de Jürgen Habermas

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A pesquisa pretender reconstruir as bases da Teoria Discursiva do Direito e da Democracia de Habermas, partindo, para tanto, de sua proposta inovadora de uma racionalidade comunicativa e da necessidade de reconstruir o conceito de legitimidade atual.

1. UM NOVO OLHAR SOBRE A QUESTÃO DA RACIONALIDADE: A PROPOSTA DE UMA RACIONALIDADE COMUNICATIVA

Como elemento de discussão preliminar, coloca-se em discussão a necessidade de pensar a racionalidade humana para além da filosofia da consciência; para tanto, os estudos sobre a linguagem conduziram a um movimento que ficou conhecido na História da Filosofia como o giro linguístico; que teve como principais responsáveis os pensamentos de Wittgenstein (giro pragmático) e Gadamer (giro hermenêutico). Todavia, o movimento do giro não se esgota na figura desses autores, vindo a ser continuado, até os dias atuais, por uma infinidade de novos personagens. Dentre eles, pode-se mencionar o filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas,[2]que ganhou renome mundial ao apresentar uma nova proposta de compreensão da racionalidade, fornecendo um novo impulso e direção ao movimento.

Levando a sério a linguagem, esse pensador colocará em cheque a racionalidade instrumental destacada, principalmente, nos estudos de Max Weber, para contrapô-la a uma nova compreensão: a racionalidade não apenas está dirigida a execução de tarefas – isto é, a busca dos meios para se alcançar um fim pré-determinado – mas envolve também a busca por um entendimento mútuo entre indivíduos. Essa busca por entendimento, contudo, não representa um aspecto isolado do fenômeno linguístico, mas situa a linguagem no centro do problema da integração social.

Para explicar melhor esse ponto, deve-se lembrar que há dois tipos de experiência: a sensorial e a comunicativa. No primeiro caso, tem-se a figura do observador, que sozinho examina a rede categorial na qual experiências são organizadas com objetividade; por sua vez, o sujeito também se faz presente como participante de uma comunicação na base de uma relação intersubjetiva (envolvendo outros indivíduos) através do compartilhamento de símbolos (HABERMAS, 1994b:307). Para tanto, regras implícitas ao alcance de qualquer falante competente transpõem um know how para um know that, permitindo uma nova forma de compreender a relação entre falar/agir. É, então, possível falar em ações através de um prisma mais amplo, que englobaria uma ação em sentido estrito e os proferimentos linguísticos. Através de uma ação em sentido estrito, pode um indivíduo realizar uma atividade não linguística – como correr ou colocar um prego em uma parede, por exemplo – utilizando, para tanto, sua racionalidade direcionada à seleção dos melhores meios para a persecução de um fim determinado. Proferimentos linguísticos, por outro lado, são atos que exigem que o falante chegue a um entendimento com outro falante a respeito de algo no mundo (HABERMAS, 1990:65). Dessa forma, emergiria uma diferença também no papel que um indivíduo deve assumir. Um exemplo pode ser bem ilustrativo:

Quando eu observo que um amigo passa correndo no outro lado da rua, eu posso identificar certamente a sua corrida como sendo uma ação. E a proposição “ele corre na rua” pode servir em muitos contextos como descrição de uma ação; através dela podemos atribuir ao ator a intenção de atingir o mais rapidamente possível um lugar situado no ponto em direção ao qual ele está correndo. No entanto, não podemos inferir essa intenção da simples observação; nós supomos, ao invés disso, um contexto geral que justifica a suposição de uma tal intenção. Não obstante, a ação carece ainda de uma ulterior interpretação, o que não deixa de ser curioso. O amigo pode estar correndo porque não quer perder o trem, porque não deseja chegar tarde à aula, ou porque não quer chegar atrasado a um encontro marcado; mas pode ser também que ele está fugindo porque se sente perseguido, que ele escapou de um atentado, ou que ele, por outros motivos, entrou em pânico e simplesmente corra para cá e para lá, etc. (HABERMAS, 1990:66, grifo no original).

Um observador pode ser capaz de constatar a existência da ação, mas não poderá descrever, com segurança, a execução do plano específico em andamento; somente ao entrar em interação com o ator, é que se torna possível identificar sua intenção, o que o leva a assumir a perspectiva de participante.[3]

Através de uma apropriação da teoria dos atos de fala, originalmente desenvolvida por Austin (1971) e Searle,[4] é possível compreender uma função fundamental existente na linguagem: a comunicação. Todavia, além dos proferimento constatativos – isto é, que constatam algo, caracterizando-se por serem verdadeiros ou falsos – existem os proferimentos performativos, com os quais se realiza uma ação pelo simples fato de serem proferidos (GALUPPO, 2002:111). Em verdade, eles agem de maneira dúplice: primeiro, comunicam uma ideia e, em seguida, realizam uma ação diferente da ação de comunicar.[5]

Pelos aspectos seguintes, os atos de fala distinguem-se das interações não linguísticas: (1) através da feição reflexiva da auto interpretação – isto é, são compreendidos pelos falantes, quando esses tomam consciência do contexto em que a interação linguística se desenvolve; e (2) pelo tipo de fins que podem ser visados, isto é, fins ilocucionários – voltados para o mútuo entendimento e que, para serem atingidos, dependem do assentimento racionalmente motivado do ouvinte,[6]ou seja, do reconhecimento por parte do outro falante de que o proferimento pode ser tido como válido (isto é verdadeiro, correto ou sincero, dependendo da situação).[7]O entendimento, então, pode ser compreendido como uma busca cooperada, haja vista não poder ser atingido de maneira individual. E mais, para que se possa chegar ao significado de um ato de fala, faz-se necessário avaliá-lo à luz da pretensão de validade correspondente que ele levanta.

Habermas irá diferenciar o uso da linguagem: como meio de transmissão de informação[8]ou como forma de buscar-se o entendimento – no primeiro caso, tem-se o que o autor denomina de ação estratégica; no outro, a ação comunicativa. O agir comunicativo compreende a ação de uma pessoa para convencer outra da validade de suas pretensões. É uma ação que somente pode dar-se por um único meio: a fala, e pressupõe a produção de um entendimento (HABERMAS,1987:1:367). Seu fim é, portanto, a produção do efeito ilocucionário, ou seja, um consenso intersubjetivamente reconhecido acerca da validade de uma pretensão criticável (ARAGÃO, 2002:115). 

Como todo o agir, também o agir comunicativo é uma atividade que visa a um fim. Porém, aqui se interrompe a teleologia dos planos individuais de ação e das operações realizadoras, através do mecanismo de entendimento, que é o coordenador da ação. O “engate” comunicativo através de atos ilocucionários realizados sem nenhuma reserva, submete as orientações e o desenrolar das ações – talhadas inicialmente de modo egocêntrico, conforme o respectivo ator – às limitações estruturais de uma linguagem compartilhada intersubjetivamente. O telos que habita nas estruturas lingüísticas força aquele que age comunicativamente a uma mudança de perspectiva; esta se manifesta na necessidade de passar do enfoque objetivador daquele que age orientado pelo sucesso, isto é, daquele que quer conseguir algo no mundo, para o enfoque performativo de um falante que deseja entender-se com uma segunda pessoa sobre algo (HABERMAS, 1990:130, grifos no original). 

Na ação estratégica (HABERMAS,1987:1:367), tem-se uma forma de ação linguística – porém, semelhante à ação instrumental – na qual o falante faz uso de outro indivíduo como meio (instrumento) para a realização de um fim (seu sucesso pessoal). Tem-se aqui uma busca pelo sucesso perlocucionário, isto é, influenciar o ouvinte (que se transforma em mero objeto) para que este realize (ou deixe de realizar) o objetivo principal do falante (WHITE, 1995:52). Dessa forma, o falante age na condição de observador, ou seja, ele não se coloca na condição de participante da interação, nem busca saber sobre o reconhecimento da pretensão levantada por parte do ouvinte; o que está em jogo é apenas a concretização de seu próprio sucesso pessoal. A ação estratégica, portanto, vive de maneira parasitária, pois depende, para seu sucesso, de que, pelo menos uma das partes, tome como ponto de partida o fato de que a linguagem está sendo usada como forma de busca do entendimento (HABERMAS, 1990:73).

A partir desse prisma, pode-se entender uma nova proposta de compreensão da racionalidade: enquanto para Weber, toda ação humana seria racional apenas se pudesse ser justificada à luz da seleção dos melhores meios para a realização de um fim (HABERMAS, 1987:1:361); para Habermas, além dessa dimensão instrumental da racionalidade, há um nível comunicativo voltado para o entendimento entre os atores sociais.[9]Como toda ação social, que requer uma forma de interação linguística, a racionalidade comunicativa estaria na base da sociedade, permitindo a interação entre os atores e, consequentemente, sua integração.

Uma compreensão adequada da racionalidade comunicativa fornece uma outra consequência importante: a suplantação da racionalidade prática típica da filosofia da consciência. Mais do que uma simples troca de etiquetas, a proposta habermasiana propõe que: a razão comunicativa distingue-se da razão prática, porque não está restrita a um ator particular – ou mesmo a um macro sujeito (Estado ou Sociedade). Ela é possibilitada pelo medium da linguagem, que concatena interações e estrutura as formas de vida, de modo que, ao buscar um entendimento, os usuários da linguagem ordinária devem pressupor, entre outras coisas, que os participantes buscam seus fins ilocucionários sem reservas, que eles vinculam seu acordo ao reconhecimento intersubjetivo de pretensões de validade criticáveis e que eles estão prontos a assumir as obrigações resultantes de um consenso, relevantes para as interações seguintes. O que, dessa forma, infiltra-se na base de validade do discurso também se comunica às formas de vida reproduzidas através da ação comunicativa. A racionalidade comunicativa, portanto, expressa-se em um complexo descentralizado de condições transcendentalmente configurativas, mas ela não é uma faculdade subjetiva que diz aos atores o que devem fazer (HABERMAS, 1998:65-66); os indivíduos que atuam comunicativamente comprometem-se com pressupostos pragmáticos, assumindo certas idealizações,[10]de modo que serão os próprios atores sociais que, por meio da busca pelo entendimento comum, chegarão a um consenso sobre as normas de ação válidas.

A assunção dessas idealizações como pressupostos contra fáticos revela que a separação rígida – de referência platônica – entre o que seja “real” e o que seja “idealidade” é posta em cheque. Cattoni de Oliveira (2002:37) esclarece que Habermas refere-se, em substituição, a uma tensão entre realidade e idealidade: “[...] a realidade já é plena de idealidade, em razão dos próprios pressupostos linguísticos contra factuais presentes em toda interação comunicativa” (2002:37).[11]

Logo, é através da reconstrução da noção de racionalidade que se encontra o fio condutor para pensar o problema da integração da sociedade. Mas uma advertência deve ser feita: pensar a sociedade atual é pensar o problema da diferença, é pensar o pluralismo; dessa forma, a ação social voltada para o entendimento adquire relevância, buscando coordenar diversos planos de ação individuais. Por isso, o modelo de que Habermas se serve não é o da comunicação entre uma comunidade de cientistas e especialistas, como fizera Pierce, mas o da própria comunicação existente no interior da sociedade. Logo, sempre que falantes dispostos ao entendimento engajam-se numa interação, eles encontram duas possibilidades: (1) concordarem mutuamente sobre as pretensões de validade de seus atos de fala; ou (2) levantarem pontos em que haja discordância, problematizando-os.

Novamente, retorna-se à tensão entre realidade e idealidade: como já afirmado, para que se atinja o sucesso na busca por entendimento, uma série de idealizações deverão ser feitas. Essas idealizações tomam lugar no que Habermas denomina de mundo da vida (Lebenswelt) – conceito chave no pensamento desse autor – que representa

[...] uma espécie de pano de fundo compartilhado intersubjetivamente, que está sempre presente para todos os atores lingüisticamente competentes, e que se estrutura através de tradições, instituições e identidades criadas a partir dos processos de socialização (FERREIRA, 2000:95).

Uma vez que a maior parte das proposições não são – nem poderiam ser – problematizadas na prática comunicativa, acabam por fugir da experiência crítica, condensando-se nas certezas existentes no mundo da vida. Esse pano de fundo de silêncio implícito no discurso é capaz de estabilizar a pressão problematizadora das experiências comunicativas (HABERMAS, 1990:91), de modo que o risco de dissenso[12] possa ser, pelo menos em parte, contornado, fornecendo: (1) certeza imediata; (2) força totalizadora, por possuir um ponto central, mas limites indeterminados; (3) natureza holística, pois trata-se de um saber intransparente, no qual seus conteúdos encontram-se liquefeitos.[13] 

Como um todo, o mundo da vida só atinge o campo da visão no momento em que nos colocamos às costas do ator e entendemos o agir comunicativo como elemento de um processo circular no qual o agente não mais aparece mais ? como indicador, mas como produto de tradições nas quais ele está inserido, de grupos solidários aos quais ele pertence e de processo de socialização e de aprendizagem, aos quais ele está submetido (HABERMAS, 1990:83). 

É por isso que o mundo da vida tem como estruturas: (1) a cultura, entendida como “o armazém de saber do qual os participantes da comunicação extraem interpretações no momento em que se entendem mutuamente sobre algo” (HABERMAS, 1990:83), logo é responsável por fornecer substratos simbólicos diferentes aos falantes; (2) a sociedade, composta por ordens legítimas nas quais participantes regulam sua pertença a grupos sociais e garantem solidariedade, tais ordens mostram-se como institucionais por fornecerem as normas do Direito ou práticas e costumes; e (3) as estruturas de personalidade, que representam o substrato dos organismos humanos. Destarte, a sociedade forma-se e reproduz-se por meio do agir comunicativo que tem como pressuposto um mundo da vida simbolicamente compartilhado.

Mas deve ser lembrado que as sociedades modernas apresentam uma pluralização das formas de vida, além de uma individualização das biografias, fenômeno esse que faz com que se diminuam as zonas de convergência do mundo da vida (BAHIA, 2003:227). Após o rompimento das amarras tradicionais (ligadas à religião e à obediência consuetudinária), tudo pode ser alvo de questionamento.  Mas isso não pode ser compreendido apenas por um prisma negativo: “[...]só se produz consenso a partir do dissenso, ao mesmo tempo em que todo consenso é apenas o primeiro passo para um dissenso futuro” (BAHIA, 2003:228). Duas são as saídas apontadas por Habermas: (1) uma limitação do campo de problematização dado aos participantes; ou (2) reconhecer que, em sociedades complexas, a ação comunicativa pode – e deve – desempenhar um importante papel de integração social, para tanto, ela tem de se valer de seus próprios recursos para “domesticar” o risco de dissenso. Logo, o mundo da vida e a ação comunicativa representam duas noções fundamentais. 

O conceito “mundo da vida”, explicitando desta maneira, não fornece apenas uma resposta à questão clássica: como é possível a ordem social? Através da idéia do entrecruzamento dos componentes do mundo da vida, é possível responder também a uma outra questão da teoria clássica da sociedade, ou seja, ao problema da relação entre indivíduo e sociedade. O mundo da vida não forma um ambiente cujas influências contingentes o indivíduo teria que combater a fim de auto-afirmar-se. O indivíduo e a sociedade não formam sistemas que se encontram em seu ambiente e que se referem um ao outro de modo externo, como se fossem observadores. De outro lado, porém, o mundo da vida não constitui uma espécie de recipiente no qual os indivíduos estariam incluídos como partes de um todo. A figura de pensamento utilizada pela filosofia do sujeito fracassa do mesmo modo que a teoria do sistema (HABERMAS, 1990, p. 99). 

A partir dessa nova perspectiva, torna-se possível compreender por que tanto as explicações providas pela filosofia do sujeito – por centraram sua leitura na figura dos indivíduos isolados da sociedade – quanto as da teoria dos sistemas – que buscando fugir da primeira, anula a figura do indivíduo, compreendendo a sociedade a partir de subsistemas sociais que operacionam funções próprias, mas não interconectadas – acabam por fracassar na explicação da ordem social. Todavia, Habermas não nega a importância dos estudos sobre os sistemas sociais; na realidade, ele discorda dessas abordagens por considerá-las apenas  capazes de enxergar um lado da questão: ao assumirem o papel de observador, apenas são capazes de descrever os processos funcionais que acontecem na sociedade, sem se dar conta da relação existente entre esses sistemas e o mundo da vida; uma vez que a abordagem sistêmica lança mão apenas da racionalidade instrumental, própria dos sistemas que simplesmente funcionam, sem se preocupar com questões referentes à validade. Além do mais, a racionalidade sistêmico-instrumental tende a se expandir, causando uma patologia que Habermas denominará de colonização do mundo da vida.[14]Assim, as dúvidas sobre a possibilidade de manutenção da ordem social apenas vão se acumulando: por um lado, devido à constante ameaça de destruição do mundo da vida por parte dos imperativos funcionais dos sistemas sociais; por outro, em razão do constante risco de dissenso causado pelo enfraquecimento do mundo da vida devido à crescente pluralização das formas de vida e pela possibilidade de se lançar mão de ações estratégicas (HABERMAS, 1998:87).

É diante desse quadro que Habermas compreenderá a crescente importância atribuída ao Direito: de maneira dúplice, o Direito moderno é capaz de limitar o campo de ações estratégicas por meio da imposição de sanções – de modo que essas adaptem-se ao padrão de comportamento socialmente aceito, revelando a tensão entre coerção factual e validade legitimadora – e de organizar o sistema econômico e o sistema administrativo, equilibrando-os com a racionalidade comunicativa (HABERMAS, 1998:102) de forma a conferir legitimidade aos seus imperativos funcionais e a integrá-los nos processos de manutenção da ordem social. Mas, para que o Direito cumpra essa função, primeiro ele deve passar por um complexo processo de reconstrução.


2. O DIREITO COMO UM DOS MECANISMOS DE GARANTIA DA INTEGRAÇÃO SOCIAL: A MEDIAÇÃO DA TENSÃO ENTRE FACTICIDADE E VALIDADE

A obra de 1994, Faktizität und Geltung – ou, como se tornou conhecida pelos pesquisadores brasileiros, Facticidade e Validade – representa um marco no pensamento habermasiano no que se refere à compreensão do Direito. Aqui o autor apresenta uma revisão completa das ideias apresentadas na sua Teoria da Ação Comunicativa (1987) – TAC – abrindo-se para uma nova perspectiva, o que veio causar estranhamento em diversos leitores,[15]que passaram a adotar três atitudes divergentes: (1) procuraram assimilar a nova posição; (2) ignoraram essa posição, mantendo seu posicionamento a partir das bases fixadas na TAC, como se as obras posteriores não tivessem a mesma relevância; ou (3) criticaram pesadamente o autor, alegando que o mesmo estaria promovendo um abandono – ou até mesmo uma diluição – da tradição filosófica para o pensamento jurídico.[16]A mudança de curso, para alguns, chega a ser tão radical, que passa-se a identificar a existência de dois ou mais Habermas – ordenando-os cronologicamente, tal qual aconteceu com Wittgenstein (NIQUET, 2002:67; 2002:95). Todavia, uma outra interpretação pode ser assumida: o que alegam ser um giro para o Direito, na realidade, não destoa tanto do projeto habermasiano; tratar-se-ia de um desenvolvimento da ideia inicial, presente já nos primeiros escritos sobre a linguagem, que, entretanto, para se firmar com coerência, certamente levou o autor a perceber a necessidade de correção e reestruturação da compreensão de Direito – lançada em escritos posteriores ao Facticidade e Validade –  principalmente no que toca a relação entre esse e a Moral e ao seu entendimento como categoria da integração social.

De maneira sintética – uma vez que uma abordagem mais detalhada foge do escopo da presente pesquisa – a TAC apresenta o Direito a partir de dois prismas: (1) atrelado aos sistemas sociais, funcionando como meio de organização desses. Aqui o Direito apareceria como um meio,[17]isto é, instrumentalizado para a organização dos sistemas sociais que operam através de uma linguagem própria – poder e dinheiro. Como consequência, o Direito ficaria aliviado da problemática acerca de sua fundamentação material, bastando que suas normas tivessem observado o processo correto de produção. Seria o caso das normas de direito civil, direito empresarial, direito econômico, etc. (HABERMAS, 1987:2:516; CHAMON JUNIOR, 190). E (2) ligado ao mundo da vida, como uma instituição. Toda questão referente aos “fundamentos” do Direito bem como os princípios estariam ligados a uma estrutura mais complexa que combina procedimento formal e legitimidade material para a formação das normas jurídicas – é o que Habermas chama de institucionalização do Direito. Isso porque tais princípios materiais refletiriam uma determinada “moralização” da parte do Direito – como o direito constitucional, direito penal, etc. – de forma a encontrar, no campo da Moral, uma fundamentação legitimadora (HABERMAS:1987:2:516; CHAMON JUNIOR, 2005:191). O Direito, então, estaria de alguma forma subordinado à Moral. 

Enquanto o Direito como meio teria o papel de organizar e constituir controladamente o Estado e a Economia, o Direito como via institucionalizadora de questões de conteúdo moral não teria qualquer papel constitutivo, mas antes tão-somente regulativo. Isso porque as instituições jurídicas, na medida em que se apresentam conectadas ao mundo da vida, encontram-se num âmbito político-cultural e social, guardando, assim, uma relação de continuidade das normas éticas pelo fato de que são institucionalizadas através da sanção estatal aquilo que anteriormente já se encontrava informalmente constituído (CHAMON JUNIOR, 2005:191, grifos no original). 

A consequência dessa separação seria a constatação de uma colonização do mundo da vida pelo Direito: o Direito tomado como meio servia aos sistemas sociais, permitindo o desalojamento da ação orientada pelo entendimento, substituindo pretensões compartilhadas e presentes no mundo da vida por uma racionalidade instrumental unicamente limitada pela correção do procedimento de produção normativo.[18]A solução, então, decorreria da criação de espaços de discussão, nos quais o controle institucional não estivesse presente, possibilitando a racionalidade comunicativa alcançar seu curso, sem o uso de respostas jurídicas prontas e acabadas (HABERMAS, 1987:2:527; CHAMON JUNIOR, 2005:193).

[Todavia, a] falha de Habermas foi ter excluído, de antemão, a questionabilidade de uma “legitimidade material” do Direito como meio, seja pelo fato de a legitimidade ser “transferida” pelas normas constitucionais ligadas ao mundo da vida, seja pelo fato de determinadas questões serem “alheias” ao mundo da vida. Preferiu uma legitimidade pelo mero procedimento que, por sua vez, obscurecia e, como dito, às vezes excluía uma possível argumentação de justificação fundada em princípios morais (CHAMON JUNIOR, 2005:201).

Essa posição será revista na obra Facticidade e Validade, abolindo a distinção de Direito meio/Direito instituição, uma vez que reconhecerá a capacidade de o Direito, tomado como um todo, ser justificado perante o mundo da vida, mas sem subordiná-lo à Moral; isto é, reconhecendo que o Direito não representaria um caso especial da argumentação moral, tese defendida por Alexy (HABERMAS, 1987:1:60; CHAMON JUNIOR, 2005:203)[19]e que será tão duramente criticada pelo próprio autor. Todavia, esse é um estágio final de seu pensamento, que contou ainda com uma fase preliminar de maturação, como se verá a seguir; pois, em sua Tanner Lectures, em 1986, Habermas retoma a questão. Inicia-a pela reconstrução dos estudos de Weber sobre o conceito positivista de Direito: Direito é o que o Legislador político estabeleceu conforme um procedimento juridicamente institucionalizado (HABERMAS, 1998:535). A racionalidade jurídica, então, estaria referida à sua forma jurídica em si, de modo que sua legitimidade decorreria das formalidades necessárias para sua positivação, sem que fossem necessárias quaisquer outras razões, inclusive referentes às questões morais (CHAMON JUNIOR, 2005:205). No entanto, tal tese será criticada: a legitimidade do Direito também, dirá Habermas (1998:544-545), está atrelada a uma relação interna entre Direito e Moral.[20]

É importante esclarecer que essa relação interna entre Direito e Moral não representa a assunção de uma concepção metafísica ou tradicional; a legitimidade do Direito é compreendida a partir de uma perspectiva procedimental, de modo que deriva de um conteúdo moral implícito que norteia o processo de produção de normas sob à luz de uma racionalidade prático-moral.[21]  Por isso mesmo, ganha relevo a questão da imparcialidade – seja nos processos de legislação, seja nos processos de aplicação do Direito. Imparcialidade, para Habermas, deve ser compreendida em termos morais e conforme as teorias da justiça que propõem uma solução que antecede a institucionalição do Direito, centrando-se no moral point of view (HABERMAS, 1998:555; CHAMON JUNIOR, 2005:213). 

A argumentação moral surgiria como processo racional de formação da vontade em que os participantes deste discurso assumem que todos aqueles que serão afetados poderiam também participar na formação dessa “vontade” de maneira livre e igual, entendendo como coerção aquela verificada em face dos melhores argumentos (CHAMON JUNIOR, 2005:213). 

Nessa perspectiva, tanto o Direito quanto a Moral compartilhariam de uma racionalidade procedimental, de modo que um não se confunde com a outra, como queriam os jusnaturalistas, mas há um compartilhamento: 

Agora, enquanto os discursos institucionalizados permitem uma aproximação a uma racionalidade procedimental “perfeita” – porque um não implicado poderia questioná-la a partir do próprio Direito –, o procedimento moral já se apresentaria como “imperfeito”, pois somente os envolvidos poderiam realizar um juízo acerca da validade em razão da falta de critérios externos ou prévios (CHAMON JUNIOR, 2005:214). 

Direito e Moral, então, estariam em uma relação de complementaridade – não mais de subordinação. Mas, mesmo assim, trata-se de uma complementação da Moral pelo Direito que se dá moralmente.[22]O Direito, nessa visão, surge como “compensação de uma Moral autônoma e que apresenta déficits na medida em que se verifica em um momento pós-tradicional” (CHAMON JUNIOR, 2005:215, grifo no original).  Além disso, o Direito acaba exonerando os indivíduos de uma fundamentação moral para suas ações, bastando apenas uma referencia ao Direito (HABERMAS, 1998:558-559).

Em síntese: a Moral encontrar-se-ia no interior do Direito; sem, contudo, esgotá-lo. Essa moralidade não se refere ao conteúdo jurídico – como queriam os jusnaturalistas – mas direciona-se aos procedimentos de justificação e aplicação das normas jurídicas. No primeiro caso, a legitimidade jurídica deriva do princípio moral que levanta uma exigência de assentimento geral para que se alcance a imparcialidade – princípio de universalização. Ao passo que, nos processos de aplicação do Direito, a idéia de imparcialidade decorre da compreensão adequada de todos os aspectos relevantes da situação concreta – senso de adequabilidade.[23]

Como já adiantado, na obra Facticidade e Validade, Habermas apresentará uma reformulação das propostas anteriores. Aqui a análise passa para a discussão acerca das condições, possibilidade e legitimidade do Direito nas sociedades contemporâneas pós-tradicionais, nas quais o Direito se tornou positivo – isto é, tem-se um Direito escrito, histórico, contingente, modificável e coercitivo, mas que também é garantidor de liberdade (CATTONI DE OLIVEIRA, 2004:174). O Direito positivo, então, apresentaria duas propriedades importantes: ele atua como fator de limitação, uma vez que estabiliza expectativas de comportamento generalizáveis, podendo, para isso, fazer uso de sanções; e como fator de deslimitação, já que abre a possibilidade de que todas as normas sejam criticáveis – seja no processo legislativo, seja nos processos de aplicação de normas (BAHIA, 2003:230).[24]

Assim o Direito moderno consegue artificialmente garantir a integração social, sem necessidade de apoiar-se em algum vínculo ético. A solidariedade social está baseada, em um nível pós-tradicional, numa fundamentação procedimental: na afirmação de que o destinatário da norma é também seu criador (HABERMAS, 1998:96). Além do mais, o Direito adquiriu a capacidade de funcionar como dobradiça entre sistemas sociais e o mundo da vida (HABERMAS, 1998:120; BAHIA, 2003:232)[25]. Uma vez que os sistemas sociais desenvolveram linguagens próprias e especializadas, carecem de meios para receber os influxos comunicativos provindo do mundo da vida; todavia este por ater-se a uma linguagem ordinária e reflexiva, continua capaz de compreender aqueles, mas o inverso não ocorre. O Direito, então, fornece essa ligação através de seu próprio código (HABERMAS, 1998:120; BAHIA, 2003:232).[26]

O Direito, portanto, é capaz de substituir o lugar das garantias metassociais que – em sociedades tradicionais de tipo medieval – eram derivadas de uma amálgama que estabilizava a tensão entre facticidade e validade das pretensões, “na medida em que o ‘sagrado’ não só significava uma autoridade, como também limitava o campo de problematização” (CHAMON JUNIOR, 2005:227). As práticas passadas ao longo de cada geração seriam dotadas de uma natureza sagrada, imutável, o que as imunizaria de críticas, de modo que sua observância seria garantida pelo medo da sanção; isso acabaria por fundir facticidade (coerção/ameaça) e validade (força vinculante).[27]

Todavia, uma saída que encontre forças de coesão social em um elemento considerado sagrado ou em qualquer outra forma de justificação metassocial, não está disponível para uma sociedade pós-tradicional e pluralista, como é a sociedade contemporânea. As antigas instituições fortes não mais conseguem dar cabo da tarefa de compensação ou atenuação dos déficits de estabilidade social; as certezas, que antes eram postas como inquestionáveis pela tradição, não são mais suficientes, a questão da integração social desloca-se, agora, para os processos de entendimento mútuo, regidos pela ação comunicativa (HABERMAS, 1998:87; CHAMON JUNIOR, 2005:230). 

Percebe-se, então, que em uma sociedade tão diferenciada não há mais que se pretender vislumbrar uma neutralização entre faticidade e validade, enquanto integração garantida pelas certezas tradicionais homogêneas do mundo da vida ou da redução sacro-autoritária (de autoridade) da validade à faticidade: a estabilidade moderna só pode ser alcançada, na instabilidade, de maneira comunicativa – o que não impede os indivíduos de buscarem seus próprios interesses (CHAMON JUNIOR, 2005:230-231, grifos no original).

Dessa forma, o Direito também ganha importância ímpar: já que é aberta a possibilidade de os indivíduos buscarem seus próprios interesses, lançando mão, inclusive, da ação estratégica – em vez da ação comunicativa. O Direito é capaz de apresentar um freio normativo, regulando e limitando a ação estratégica; são os próprios atores sociais que – por meio de um acordo ou entendimento a partir de pretensões de validade intersubjetivamente reconhecidas – fixam os espaços e condições nos quais essa racionalidade estratégica seria aceitável (HABERMAS, 1998:88-89). E isso acontece com o Direito como um todo, o que joga por terra a antiga diferenciação de Direito como meio/Direito como instituição: o fato de o Direito ser meio de organização do Estado e da Economia não retira do mesmo a necessidade de voltar-se para questões de legitimidade. 

O Direito surge em Faktizität und Geltung como meio de organização, mas também como instituição, simultaneamente e contraditoriamente na medida em que a validade, agora vislumbrada na faticidade da coerção normativamente delineada, pode ser sustentada comunicativamente perante todos na exata medida em que é justificável em um sistema de direitos que abre a todos a possibilidade participativa [...] (CHAMON JUNIOR, 2005:234, grifos no original).

O Direito moderno ainda acaba por aliviar os sujeitos do fardo da integração social: os conflitos que trazem um alto grau de dissenso – principalmente porque os envolvidos deixam de estar submetidos à busca por um entendimento mútuo – podem ser resolvidos a partir da própria tensão entre facticidade (coerção) e validade (aceitabilidade), garantindo uma resposta adequada e legítima; o mesmo, todavia, não pode ser constatado na posição decisionista assumida pela tradição positivista, que vira as costas para as pretensões de legitimidade jurídica (HABERMAS, 1998:101). Resumindo a questão, tem-se que: 

O papel principal do Direito no que se refere à integração social se deve ao fato de que o risco do dissenso resta neutralizado agora não mais por uma autoridade sacra ou por instituições fortes que mantinham fora do criticável determinados conteúdos axiológicos e deontológicos. O posto de centralidade do Direito se deve a uma limitação na medida em que a validade das normas não pode ser questionada quando de uma pretensão individual orientada ao êxito. O Direito legítimo é coercitivo e esta coercibilidade possível reflete a aceitabilidade racional e não-questionabilidade da validade desse fato – cisão entre facticidade e validade. Do contrário, o risco de dissenso estaria absurdamente largado, o que colocaria em risco a própria solidariedade social garantida, em última instância, pela ação comunicativa que, assim, fica aliviada de buscar soluções orientadas ao entendimento (CHAMON JUNIOR, 2005:236).


3. A FORMAÇÃO DO SISTEMA DE DIREITOS A PARTIR DE UMA COMPREENSÃO DE EQUIPRIMORDIALIDADE ENTRE AUTONOMIA PÚBLICA E AUTONOMIA PRIVADA E A RECONSTRUÇÃO DOS PRINCÍPIOS INFORMADORES DO ESTADO DE DIREITO

Uma vez que foi possível compreender o papel que é posto ao Direito positivo moderno no processo de integração social – bem como a mudança de posição assumida por Habermas em seus últimos trabalhos publicados – deve-se passar a um olhar mais aprofundado sobre a construção do sistema de direitos à luz de uma compreensão equiprimordial entre autonomia pública e autonomia privada.

Com o processo de desencantamento, o Direito moderno se configura como parte de um sistema de normas positivas e obrigatórias; todavia essa positividade vem associada a uma pretensão de legitimidade, de modo que normas expressam uma expectativa no sentido de preservar equitativamente a autonomia de todos os sujeitos de direito (HABERMAS, 2002b:286; CATTONI DE OLIVEIRA, 2004:174). Segundo Habermas (2002b:286), o processo legislativo deve ser suficiente para atender a essa exigência. Há uma relação entre o caráter coercitivo e a modificabilidade do Direito positivo, por um lado, e o processo de positivação ou de estabelecimento desse Direito capaz de gerar legitimidade, por outro – isto é, uma relação entre Estado de Direito e democracia; contudo essa relação não é meramente fruto de uma histórica causal, mas uma relação conceitual que está alicerçada nas pressuposições da práxis jurídica cotidiana. 

Isso porque na própria validade jurídica a facticidade da imposição do Direito por via estatal entrelaça-se com a força legitimadora de um processo legislativo que pretende ser racional, justamente, por fundamentar a liberdade. Em outros termos, isso se revela no modo ambíguo com que o próprio Direito se endereça aos seus destinatários e deles espera obediência: eles podem agir estrategicamente em face das conseqüências previsíveis de uma possível violação das normas ou podem cumprir as normas por respeito aos resultados da formulação comum da vontade que exige legitimidade para si. O conceito kantiano de legalidade já expressava, segundo Habermas, esse duplo sentido da validade jurídica: As normas jurídicas são a um só tempo “leis coercitivas” e “leis de liberdade” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2004:175).

A validade de uma norma jurídica pode ser considerada, portanto, como equivalente da explicação para o fato de o Estado garantir simultaneamente a efetiva imposição jurídica e a institucionalização legítima do Direito.[28]Daí decorre a pergunta: como se deve fundamentar a legitimidade de normas que podem, a qualquer momento, ser alteradas pelo legislador?[29]Enquanto era possível recorrer a um Direito Natural – quer de cunho religioso, quer metafísico – podia-se tentar conter o “turbilhão da temporalidade” que o Direito positivo atraía para si; mas, aliado à crescente dessacralização das imagens de mundo e à desintegração de eticidades ou formas de vida tradicionais com o processo de modernização social e cultural, o Direito moderno, dotado de um caráter formal, exime-se da ingerência direta advinda de uma “consciência moral remanescente” (HABERMAS, 2002b:288; CATTONI DE OLIVEIRA, 2004:176).

O conceito de direitos subjetivos, então, apresenta um papel importante na compreensão moderna do Direito: desligados dos mandamentos morais de origem religiosa ou do Direito Natural (MATTOS, 2002:90), eles estão ligados ao conceito de liberdade subjetiva de ação (HABERMAS, 1998:147), uma vez que fixam os limites dentro dos quais um sujeito está legitimado para afirmar livremente sua vontade. Esses direitos fixam iguais liberdades subjetivas para todos os indivíduos, que passam a se considerar sujeitos de direito,[30]ou seja, garantem aos sujeitos um espaço de ação de acordo com sua própria preferência (HABERMAS, 2002:288; 1999:330), bem como de acordo com a máxima de que “tudo o que não está proibido está permitido” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2004:176). Na tradição da dogmática do direito civil alemão, que vai de Savigny a Puchta, os direitos subjetivos são direitos negativos, pois protegem os espaços da ação individual, na medida em que fundamentam pretensões, reclamáveis judicialmente, contra intervenções ilícitas na liberdade, na vida e na propriedade (BAXTER, 2002:39). Todavia, o século XIX demonstra que o direito subjetivo, estritamente de ordem privada, depende, para legitimar-se, de uma autonomia privada do sujeito, que estava apoiada em uma autonomia moral da pessoa. Na Introdução à Metafísica dos Costumes, Kant (1980) apresenta uma lei moral de liberdade e dela retira as leis jurídicas. O Direito, portanto, não estaria conectado à vontade livre do indivíduo, mas ao seu arbítrio, estendendo-se às relações externas e abrindo espaço para que seja exercitada uma coação no caso de intromissão na esfera alheia. Nessa construção, Habermas (1998:171) identifica uma herança platônica no sentido de compreender a ordem jurídica senão como ligada ao mundo fenomenológico e ao “reino dos fins”.

Ao compreender o Direito não mais a partir de uma racionalidade instrumental, a relação entre Direito e Moral adquire novos contornos.[31]Aqui Habermas inova ao apresentar uma proposta de substituição da teoria da subordinação por uma visão de complementaridade entre Direito e Moral. Empreendendo um olhar sociológico, Direito, Moral e Ética sofrem uma separação simultânea da antiga amálgama que os prendia em uma sociedade pré-moderna.

Tanto o Direito quanto a Moral ainda buscam, sob ângulos diferenciados, respostas para as mesmas questões: (1) como é possível ordenar legitimamente relações interpessoais e coordenar entre si ações servindo-se de normas justificadas?; e (2) como é possível solucionar consensualmente conflitos de ação na base de regras e princípios normativos reconhecidos intersubjetivamente?

Uma primeira diferença fundamental é o fato de que uma Moral pós-tradicional representa apenas uma forma de saber cultural, enquanto o Direito apresenta-se também no nível institucional – isto é, além de um sistema de símbolos, o Direito é também um sistema de ação. Ao passo que na Moral, encontra-se uma simetria entre direitos e deveres; no Direito, as obrigações resultam somente da restrição de liberdades subjetivas. Essa atribuição de privilégio aos direitos em face dos deveres pode ser explicado através dos conceitos de sujeitos de direto e de comunidade jurídica: “uma comunidade jurídica, situada no tempo e no espaço, protege a integridade de seus integrantes exatamente na medida em que esses assumem o status de titulares de direitos subjetivos” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2004:176). Em contrapartida, o universo moral não apresenta limites espaciotemporais, estendendo-se a todas as pessoas em sua complexidade biográfica, plenamente individuadas. Por isso mesmo, as matérias jurídicas são, ao mesmo tempo, mais restritivas do que as questões morais e mais amplas, uma vez que o Direito, como meio de organização, não se refere exclusivamente à regulação de conflitos interpessoais, mas também ao cumprimento de programas políticos e demarcações políticas de objetivos. Logo, as “regulamentações jurídicas tangenciam não apenas questões morais em sentido estrito, mas também questões pragmáticas e éticas, como o estabelecimento de acordos entre interesses conflitantes” (HABERMAS, 2002b:289). Isso faz com que a práxis legislativa dependa não só de discussões morais mas de uma rede ramificada de discursos abertos a razões de outras ordens, bem como a negociações.

Uma vez que o Direito positivamente válido pode tirar das pessoas o ônus causado pelas grandes exigências (cognitivas, motivacionais e organizacionais) impostas por uma Moral ajustada segundo a consciência subjetiva; ele é capaz de compensar as fraquezas de uma moral exigente. Isso não libera os participantes de uma prática legislativa ou jurisdicional da preocupação de que o Direito permaneça em consonância com a Moral (HABERMAS, 2002b:289; CATTONI DE OLIVEIRA, 2004:177); todavia as regulamentações jurídicas são complexas demais para serem legitimadas por princípios morais. Habermas (2002b:189) coloca então uma questão importante: “[...] se o direito positivo não pode obter sua legitimidade de um direito moral superior, de onde ele poderá obtê-la”?

A Moral, tanto quanto o Direito, deve defender a autonomia de todos os envolvidos e atingidos por suas normas; essas devem ser analisadas pelo prisma do princípio do discurso (D) – “são válidas as normas de ação às quais todos os possíveis atingidos poderiam dar o seu assentimento, na qualidade de participantes de discursos racionais”[32] – que é neutro em relação ao Direito e à Moral, uma vez que sua referência se assenta em toda e qualquer  norma de ação, sem qualquer especificação (LEITE ARAÚJO, 2003:167).

Cabe considerar que validade, aqui, é tomada como um termo indeterminado, que não se refere em específico à validade moral ou à legitimidade jurídica; assim, refere-se à possibilidade de satisfação das pretensões de validade (verdade, correção normativa ou veracidade), remetendo-se à noção de prescrição indireta da ação comunicativa – em contraposição à razão prática kantiana, apoiada em uma moral diretamente prescritiva de normas de ação.

Outro ponto de destaque fica a cargo da questão da aceitabilidade racional; isso que dizer que o consenso acerca de pretensões de validade é obtido através do uso de razões.[33]Essa afirmação, no campo dos discursos práticos sobre normas, atesta que o importante é o reconhecimento de que a argumentação ser racionalmente motivada: 

A proposta de Habermas, ao formular o princípio D, é que só se pode distinguir o ‘bom’ motivo, ou o melhor motivo, para validade uma norma, ao se apresentarem razões, em favor da aceitação das mesmas. Assim, uma norma de ação torna-se válida se as pretensões de validade por ela levantadas podem ser reconhecidas pelos possíveis atingidos (intersubjetivamente) na medida em que esses levantam razões; ou seja, pelo reconhecimento motivado racionalmente e que a todo momento pode ser problematizado (SALCEDO REPOLÊS, 2003:98).

Todavia, a questão da neutralidade do princípio do discurso ainda parece levantar diversas críticas, originadas até mesmo de radicais defensores do pluralismo democrático (LEITE ARAÚJO, 2003:157). Por isso, é crucial um olhar mais detalhado: a neutralidade a que se faz referência diz respeito às normas de ação em geral; além disso, o seu caráter abstrato deve ser entendido no sentido de que apenas torna explícito o ponto a partir do qual é possível fundamentar normas de ações imparcialmente. Isso o leva a não assumir conteúdo algum, já que os argumentos que poderão ser utilizados para justificação de normas de ação não podem ser determinados a priori, mas apenas dentro da própria discussão.[34]

Logo, seu caráter procedimental sinaliza uma exigência no sentido de que toda forma de vida comunicativamente estruturada pode ter condições de participação, de reconhecimento mútuo e de inclusão nesses discursos (SALCEDO REPOLÊS, 2003:98). Por essas características, o princípio do discurso consegue evitar tanto uma interpretação moralizante do Direito quanto o seu confinamento em afirmações comunitárias de valores compartilhados. 

Enquanto princípio de justificação imparcial das normas de ação em geral, o princípio do discurso (D) está igualmente na base da moralidade e do direto. E é graças à mencionada diferenciação de usos da razão prática [questões éticas, de um lado, e questões morais, de outro] que Habermas insiste no delineamento sutil entre tal princípio, que explica o sentido da imparcialidade de juízos práticos, e sua especificação como princípio moral (U) – segundo o qual “toda norma válida deve satisfazer a condição de que as conseqüências e efeitos colaterais, que (previsivelmente) resultem para a satisfação dos interesses de cada um dos indivíduos do fato de ser ela universalmente seguida, possam ser aceitos por todos os concernidos” [HABERMAS, 1989:86] – ou como princípio da democracia (De) – de acordo com o qual “somente podem pretender validade legítima as leis jurídicas capazes de encontrar o assentimento de todos os parceiros do direito, num processo jurídico de normatização discursiva” [HABERMAS, 1998:175] (LEITE ARAÚJO, 2003b:231, grifos no original).

O princípio discursivo moral (U) refere-se a normas de ação que exigem, para ser justificadas, a consideração simétrica de todos os interesses;[35]é, portanto, regulador dos argumentos – uma regra de argumentação (SALCEDO REPOLÊS, 2003:99) – que pergunta sobre a possibilidade de universalização de um determinado interesse, de modo que sua pretensão possa ser passível de aceitação e reconhecimento pelos seus afetados em qualquer tempo e contexto espacial.[36]

Diferentemente, o princípio discursivo democrático (De) visa a explicar o sentido performativo da prática da autodeterminação dos membros de uma comunidade jurídica – estabelecida livremente – que reconhece seus membros como parceiros livres e iguais (HABERMAS, 1998:175). Seu objetivo, então, é a “institucionalização de um procedimento legislativo legítimo, produzido discursivamente com a potencial participação de todos [os afetados]” (BAHIA, 2003:235). Por isso mesmo, 

O sentido performativo pressuposto no princípio da democracia está nessa mudança de perspectiva para o ponto de vista dos participantes que, como sujeitos de direito, se autodeterminam, e constroem uma ‘associação’. Nesse sentido, o princípio da democracia coloca uma regra de constituição do jogo argumentativo e de instrumentação de espaços que tornam possível as diversas formas de argumentação (SALCEDO REPOLÊS, 2003:101).

Deve ser destacado que o princípio democrático não busca um conteúdo a priori às questões quando as mesmas são propostas, “mas apenas diz como podem a formação da opinião e da vontade serem institucionalizados por um sistema de direitos que assegura participação no processo legislativo em condições de igualdade” (BAHIA, 2003:236). Assim, aceita o risco de que qualquer tema ou contribuição, informação ou razão, sejam ventilados no espaço público (HABERMAS, 1998:646).[37]Essa formação da vontade é dependente de pressupostos comunicativos que asseguram aos melhores argumentos a prevalência.

Quando vistos em paralelo, fica possível compreender que o princípio democrático está situado em um plano diferente do princípio moral: 

U refere-se ao plano interno do jogo argumentativo, examinando se os argumentos utilizados para justificação de uma norma passam pelo crivo da universalização. Já o princípio da democracia opera no plano de institucionalização externa da participação simétrica nos processos de formação da opinião e da vontade. Ou seja, ele permite que tais processos sejam eficazes ao institucionalizar as condições de participação. Para tal, ele lança mão da forma do Direito, visto pelo papel que esse desempenha em sociedades complexas, é possível garantir juridicamente as formas de comunicação, por meio de um sistema de direitos, em que a participação nos processos de formação das normas jurídicas se dê em condições de igualdade. Essas condições, já estão, por sua vez, garantidas nos pressupostos da comunicação, enunciados no princípio do Discurso (SALCEDO REPOLÊS, 2003:101-102, grifos nosso).  

Assim, enquanto o princípio moral está correlacionado ao procedimento de validação de normas e discursos morais, o princípio democrático mostra-se mais amplo, aberto a outros tipos de razões. Com o processo de modernização, emerge a questão do pluralismo ideológico na sociedade; a religião e o ethos nela enraizado se decompõem como fundamento público de validade de uma moral que pode ser compartilhada por todos. As regras morais passam a designar o que é obrigatório para todos e, por conseguinte, universalizável; ao passo que os pontos de vista éticos estão ligados a orientação axiológicas (de valor) pertencentes a pessoas ou grupos. Questões éticas estão relacionadas ao ponto de vista da primeira pessoa do plural (nós), de modo que vinculam-se ao que os membros de uma determinada comunidade entendem como critérios (ou valores) que devem orientar suas vidas, isto é, o que pode ser considerado como o melhor para nós (HABERMAS, 2002b:38) – questões acerca das concepções de vida boa ou, pelo menos, de uma vida que não seja mal sucedida. Nesse sentido, as questões éticas não demandam um descentramento do sujeito, que permanece ligado ao telos de uma vida comum da sociedade (HABERMAS, 2000b:106). Por isso mesmo, questões que demandam uma busca sobre o que seja do interesse de todos apontam para mais além do que seja melhor para nós (Ética). Aqui, Habermas lembra as afirmações de Rawls e de Dworkin acerca da diferença entre o justo (moral) e o bom (ético) e da supremacia do primeiro sobre o segundo (HABERMAS, 2002b:41). O bom é aquilo almejado por um grupo de pessoas, a partir de um valor compartilhado; a noção de justo, bem como a de direitos, por outro lado, traz uma compreensão normativa da questão.

Normas e valores, então, apresentam diferenças: [38](1) normas obrigam seus destinatários por igual e não apresentam exceções, enquanto valores exprimem concepções que são tidas como almejáveis e, por essa razão, podem ser compreendidas à luz de uma ordem de preferência; (2) normas, portanto, somente podem ser obedecidas – cumprindo sua função de estabilizar expectativas de comportamentos generalizados – a partir de uma aplicação universalmente integral e binária, isto é, algo é válido ou não é válido, sem uma terceira opção; ao passo que valores, representando uma ação direcionada, podem ser realizados de maneira gradual, a partir do quadro de preferências daquela comunidade. Dito de outra forma, normas, segundo Habermas (1998:328, 2004:291), são justificadas a partir de uma pretensão de correção (referência ao justo), devendo poder contar com a aceitação racional daqueles que serão seus afetados (1998:172). Dessa forma, diante de uma pretensão normativa, os atores sociais podem tomar dois caminhos diversos: concordarem mutuamente sobre as pretensões de validade de seus atos de linguagem, ou levantarem pontos em que haja discordância, problematizando-os; instala-se, assim, a possibilidade de avaliação através de uma ação comunicativa. De maneira diferente, os valores apontam para uma concepção ética – ligada ao que seja o bem – que não apresenta esse potencial de universalização, contido nos discursos sobre a correção das normas, uma vez que se encontra enraizada sob valores pré-reflexivos, isto é, concepções culturais partilhadas intersubjetivamente por uma determinada forma de vida concreta. Portanto, a noção de bem liga-se à idéia de um nós, uma comunidade determinada assentada sob uma mesma concepção de vida boa. Desse modo, as referências para as ações oriundas dessa comunidade apenas podem ser compreendidas como respostas a fins específicos (caráter instrumental) julgados a partir das preferências comuns de seus membros, perdendo-se de vista a ação comunicativa em favor de uma ação instrumental; e (3) diferentes normas pretendem manter sua validade para o mesmo conjunto de destinatários, não podendo contradizer-se mutuamente, sob pena de deixarem de representar referenciais para a ação humana; logo devem constituir um sistema. A questão sobre qual norma é adequadamente aplicável a um determinado caso, todavia, constitui uma pergunta diferente da indagação sobre sua validade, devido a isso, como será visto no próximo tópico, discursos de justificação diferem-se da lógica dos discursos de aplicação. Contrariamente, os valores naturalmente concorrem entre si pela primazia, por isso são passiveis de flexibilizações a partir de critérios utilitários.

Além de razões morais e razões éticas, o princípio da democracia também recebe argumentos de ordem pragmática, ligados à definição de meios necessários/adequados à realização de preferências ou objetivos da comunidade (SOUZA CRUZ, 2004:219). Nesse caso, a avaliação se dá não apenas com relação aos meios, mas também com relação aos fins. Trata-se de um elemento eminentemente instrumental, finalístico, trazendo ao discurso “comparações e ponderações diante de alternativas para as técnicas/estratégias de ação” (SOUZA CRUZ, 2003:220).

As normas jurídicas são dotadas de um caráter artificial – no sentido de que “elas são produzidas intencionalmente e de modo reflexivo, aplicando-se a si mesmas” (SALCEDO REPOLÊS, 2003:102). Como consequência, não basta ao princípio democrático a tarefa de fixação dos procedimentos de normatização legítima do Direito, deve ainda pressupor a criação de um comunidade jurídica que institucionalize os direitos de participação de todos os seus membros no processo de instauração dessas normas.

Logo, segundo Habermas (1998:177), a distinção entre o princípio moral e o princípio democrático acaba apontando as duas tarefas que deverão ser enfrentadas pelo sistema de direitos: (1) institucionalizar uma formação racional da vontade política; e (2) garantir o próprio medium no qual essa vontade pode ser expressa – como vontade comum dos membros de uma comunidade jurídica capaz de se autocompreender como uma associação livre. Dessa forma, mesmo que o processo de legislação democrática seja poroso a uma série de argumentos – como visto, argumentos de ordem moral, ético-políticos e pragmáticos – a fim de que o Direito não ceda lugar à política, é preciso que as normas jurídicas sejam formuladas a partir da linguagem jurídica – utilizando-se, para tanto, do código do Direito – e do princípio da soberania popular (SOUZA CRUZ, 2004:220).

 O Direito moderno, não mais subordinado à moral – mas sim funcionando de maneira complementar – passa a se organizar a partir de um código próprio,[39]partindo de dois elementos restantes da dissolução da amálgama pré-moderna: soberania popular – relacionada com a noção de autonomia pública – e direitos humanos – ligados à noção de autonomia privada. Desse modo, tanto um quanto outro representam uma mediação pelo Direito no tocante à autodeterminação moral (direitos humanos) e autodeterminação ética (soberania popular), de modo a falar-se em uma cooriginalidade.[40]Assim, Habermas pretende superar a disputa entre liberais e republicanos acerca de qual das duas deveria ter prevalência.

Segundo Cattoni de Oliveira (2000:54), a tradição republicana remete-se a Aristóteles, desenvolvendo-se pela Filosofia romana republicana e pelo Humanismo Cívico do pensamento político italiano do Renascimento, vindo a ser recepcionada por Harrington – influenciando os debates da Convenção de Filadélfia – e por Rousseau – lançando luzes sobre o movimento da Revolução Francesa (CATTONI DE OLIVEIRA, 2000:54-55; SELLERS, 1997:02). Contemporaneamente, assumem-se como republicanos diversos pensadores, como: Taylor, Walzer, Sandel, McIntyre, Perry e Michelman. Já na tradição liberal, encontram-se pensadores a partir do movimento iluminista, como Locke, Kant, Sièyes, Paine, Constant e Stuart Mill. Contemporaneamente, a tradição é disseminada a partir diferentes leituras feitas pelas obras de Berlin, Rawls, Nozick e Dworkin – sendo Rawls o seu maior expoente. Em comum a ambas, tem-se a defesa da liberdade e da igualdade dos cidadãos, da existência de uma Constituição, de um regime democrático e da constitucionalização dos direitos fundamentais – o que, todavia, não significa que esses pontos recebem a mesma interpretação. Para os republicanos, a Constituição é tomada como uma ordem concreta de valores, que materializa uma identidade ético-cultural de uma sociedade política que tem a pretensão de ser, na medida do possível, homogênea (HABERMAS, 2002b:270); por sua vez, a Democracia é compreendida como forma política de plena realização dessa identidade coletiva, de sua felicidade pública e de seu bem-estar coletivo. A ênfase é dada para as chamadas liberdades positivas,[41]visando a assegurar a participação política autônoma. Para os liberais, o processo democrático tem uma tarefa básica: programar o Estado segundo o interesse da sociedade a partir de um sistema de negociações estruturado ao modo do Mercado – entre pessoas privadas – (HABERMAS, 2002b:270). A Democracia é, então, compreendida de maneira reduzida, como um processo de eleição regido conforme o mecanismo formal da regra da maioria que confere legitimidade às decisões (GALUPPO, 2004:344). Direitos fundamentais, por sua vez, transformam-se em garantias de proteção da esfera privada contra intervenções estatais, de modo a possibilitar que cada indivíduo possa participar no cenário político defendendo seus próprios interesses (HABERMAS, 2005:1; 2002b:271).[42]

Contudo, como já adiantado, a opção habermasiana não é a de endossar uma ou outra tradição, mas a de apresentar uma (re)construção da relação entre soberania popular e direitos humanos, superando as tradições anteriores, uma vez que leva em conta a identificação de uma relação interna entre ambos os conceitos, constitutiva do que chamará de sistema de direitos: o conjunto de direitos (fundamentais) que os membros de uma comunidade atribuem-se reciprocamente quando decidem regular legitimamente sua convivência através do Direito Positivo (HABERMAS, 2003:162; 2002b:229; BAHIA, 2003:238). E, para tanto, a modernidade aponta que a fundação desse sistema deve-se dar através de um importante meio institucional – a Constituição. 

O sistema de direitos, então, é responsável por garantir aos indivíduos determinadas liberdades subjetivas de ação a partir das quais podem agir em conformidade com seus próprios interesses – é o que se chama de autonomia privada[43]– “liberando” esses indivíduos da pressão inerente à ação comunicativa (HABERMAS, 1998:186). Habermas conclui que o Direito não é – nem pode ser – capaz de obrigar os indivíduos a permanecer o tempo todo na esfera pública, devendo abrir a eles a possibilidade de escolha do uso de sua liberdade comunicativa (HABERMAS, 2000d:527).[44]Em contrapartida, o princípio discursivo democrático compreende a autonomia pública a partir da ótica da garantia de legitimidade do procedimento legislativo através de iguais direitos de comunicação e de participação (HABERMAS, 2002b:290); trata-se do fato de que os sujeitos de direito têm de se reconhecer como autores das normas às quais se submetem. 

Explicando melhor essa noção, tem-se que a reconstrução da noção de autonomia leva Habermas a afirmar que os indivíduos, como sujeitos de direito, devem ao mesmo tempo sempre ser autores e destinatários do Direito por eles produzidos. Conferir uma fundamentação estritamente moral aos direitos humanos acabaria por afirmar que o poder constituinte democrático simplesmente encontra esses direitos a priori, ou seja, como fatos morais prévios, para ter sua atividade limitada a uma positivação. Essa noção contraria o princípio democrático. Por outro lado, deve-se reconhecer que os cidadãos, no papel de co-legisladores, não podem mais escolher o medium pelo qual eles tornam efetiva sua autonomia; é apenas na condição de sujeitos de direito que eles podem tomar parte do processo legislativo; por isso uma auto legislação democrática apenas se pode valer do medium do Direito. 

Quando da institucionalização das condições para um processo legislativo democrático, sob a forma de direitos políticos, é necessário que o código do direito já esteja à disposição. Para a criação desse código ou forma jurídica moderna, é necessário criar o status de sujeitos de direito que pertençam, enquanto titulares de direitos subjetivos, a uma comunidade jurídica (CATTONI DE OLIVEIRA, 2004:182).

Logo, para que haja o Direito, deve haver a autonomia privada dos sujeitos de direito; de modo que, sem os direitos fundamentais que assegurem essa autonomia, faltaria o próprio medium para institucionalização jurídica das condições necessárias a que os sujeitos de direito possam fazer uso da autonomia pública ao atuarem no papel de cidadãos do Estado (HABERMAS, 2002b:293; CATTONI DE OLIVEIRA, 2004:182). Como consequência: “a autonomia privada e a pública pressupõem-se mutuamente, sem que os direitos humanos possam reivindicar um primado sobre a soberania popular, nem essa sobre aquele” (HABERMAS, 2002b:293).

É, então, a partir dessa consciência de cooriginalidade entre autonomias público e privada que os cidadãos, ao constituírem seu sistema de direitos, devem criar uma “ordem” que preveja a qualquer membro (seja atual, seja futuro) dessa comunidade uma série de direitos subjetivos, iniciando por três categorias: 

(i) Direitos fundamentais (de conteúdo concreto variável), que resultam da configuração autônoma do direito, que prevê a maior medida possível de liberdades subjetivas de ação para cada um. (ii) Direitos fundamentais (de conteúdo concreto variável), que resultam da configuração autônoma do status de membro de uma associação livre de parceiros do direito. (iii) Direitos fundamentais (de conteúdo concreto variável), que resultam da configuração autônoma do igual direito de proteção individual, portanto da reclamabilidade de direitos subjetivos (HABERMAS, 2003:169, grifo no original). 

Essas três categorias decorrem de um resultado direto da aplicação do princípio do discurso ao meio do Direito; estão associadas às condições de “socialização horizontal” produzidas pelo Direito. Assim, não podem ser compreendidas como os clássicos direitos liberais de defesa, uma vez que regulam apenas relações entre concidadãos livremente associados, anteriormente a qualquer organização estatal. A função básica, então, desses direitos é a garantia da autonomia privada dos sujeitos de direito, mas apenas à medida que se reconhecem mutuamente como destinatários das leis, levantando um status que lhes possibilita a pretensão de obter direitos e de fazê-los valer reciprocamente (HABERMAS, 1998:188). Somente no passo seguinte, é que esses sujeitos de direito assumem o papel de autores de sua ordem jurídica. 

Uma vez que pretendem fundar uma associação de cidadãos que se dão a si mesmos suas leis, eles tomam consciência de que necessitam de uma quarta categoria de direitos que lhes permita reconhecerem-se mutuamente, não somente como autores desses diretos, mas também como autores do direito em geral. Se quiserem continuar mantendo um aspecto importante de sua prática atual, a autonomia, eles têm que se autotransformar, pelo caminho da introdução de direitos fundamentais políticos, em legisladores políticos. Se, as primeiras três categorias de direitos fundamentais, não poderiam existir nada parecido com o direito, porém, sem uma configuração política dessas categorias, o direito não poderia adquirir conteúdos concretos (HABERMAS, 2003:169).

Nessa quarta categoria, encontram-se os “(iv) Direitos fundamentais (de conteúdo concreto variável), que resultam da configuração autônoma do direito para uma participação, em igualdade de condições, na legislação política” (HABERMAS, 2003:169). Assim, para que os membros de uma dada comunidade possam atribuir reciprocamente direitos subjetivos de maneira legítima, necessitam da institucionalização de procedimentos de produção desse Direito, que pressupõe o reconhecimento mútuo como pessoas livres e iguais.

Resta, todavia, mais um categoria de direitos, que são: (v) Direitos fundamentais

[...] ao provimento do bem-estar e da segurança sociais, à proteção contra riscos sociais e tecnológicos, bem como ao provimento de condições ecologicamente não danificadas de vida e, quando necessário, sob as condições prevalecentes, o direito de igual oportunidade de exercício dos outros direitos elencados (CATTONI DE OLIVEIRA, 2002:72).

Esse sistema de direitos ainda necessita de um meio de institucionalização: o Estado de Direito, que possui, desde seu surgimento, o propósito de garantir institucionalmente à cooriginalidade das autonomias pública e privada, buscando para tanto a legitimidade de suas decisões no Direito (HABERMAS, 1998:199),[45]cumpre sua função a partir dos princípios que o informam.

Um desses princípios é a soberania popular, [46]que funcionaria como ponto de unificação entre as noções de Direito e Estado de Direito, já que fundamenta a participação popular em condições de igualdade na formação da vontade estatal. Todavia, a leitura habermasiana é feita a partir de uma concepção procedimental (HABERMAS, 1998:238; 1998:612; 1999:333) – ou seja, ela não se encontra ligada a um ethos ou a um povo determinado, seja ele presente, passado ou futuro, revelando-se uma soberania popular sem sujeito.[47]Lembrando os estudos, já apresentados nessa pesquisa, de Michel Rosenfeld (2003): uma vez que o poder político é derivado do Poder Comunicativo, as questões políticas, para serem tratadas de forma racional, necessitam ser institucionalizadas, passando por uma rede de formas de comunicação que, em tese, destina-se a assegurar que todas as questões, tema e contribuições relevantes sejam ouvidas e elaboradas na forma de discursos e negociações, que, por sua vez, estão pautados na busca pelo melhor argumento (HABERMAS, 1998:238; 1999:333; BAHIA, 2003:241-242). É justamente essa institucionalização jurídica de determinados procedimentos e condições de comunicação que faz possível o uso e o emprego efetivos de iguais liberdades comunicativas, uma vez que obriga, além de estimular: o uso pragmático, ético e moral da razão prática; e a busca por um equilíbrio de interesses através de um resultado equitativo (HABERMAS, 1998:238).

Lembra Bahia (2003:242) que Habermas escapa do extremismo de Rousseau em sua busca por uma democracia direta, não representativa; ele irá apostar na defesa de um modelo democrático deliberativo que combine – mesmo defendendo que decisões políticas sejam tomadas em interações simples – o princípio da soberania popular com o princípio parlamentar, que, em termos de uma Teoria do Discurso, “deve garantir um procedimento que leve em conta as condições comunicativas, de forma que discursos éticos, pragmáticos, morais e negociações fair tenham lugar” (BAHIA, 2003:242, grifo no original).  Uma síntese dessa proposta é apresentada por Cattoni de Oliveira: 

Nesse quadro, o processo legislativo, enquanto processo de justificação democrática do Direito, pode ser caracterizado como uma seqüência de diversos atos jurídicos que, formando uma cadeia procedimental, assumem seu modo específico de interconexão, estruturado em última análise por normas jurídico-constitucionais, e, realizados discursiva ou ao menos em termos negocialmente equânimes ou em contraditório entre agentes legitimados no contexto de uma sociedade aberta de intérpretes da Constituição (2000:109).

Nessa ótica, o Estado de Direito acaba por garantir tanto a institucionalização do uso público das liberdades comunicativas, como por regular a transformação do Poder Comunicativo em Poder Administrativo (HABERMAS, 1988:245).

Não é sem razão que se pode reconhecer que a arena pública atrai e converte-se em um meio de aprendizado democrático, como lembra Bahia (2003:243): aqui, uma comunidade pode colocar

[...] em prática políticas racionalmente acordas, experimentando-as e aprendendo como fracassos e vitórias. Isso porque não é concebível hoje se falar em pressupostos materiais para elevar o cliente a cidadão, para que este então possa tomar das mãos do Estado (inclusive do Judiciário) as rédeas de sua existência política (2003:243, grifo no original).

Assim, é necessário compreender que o paradigma procedimental do Estado Democrático de Direito representa uma ruptura completa quando comparado com o paradigma do Estado de Direito. Logo, é preciso mais que uma mudança de rótulos ou uma troca de etiquetas. Ainda deve ser lembrado que esse último paradigma não se apresenta como um projeto pronto e acabado; ao contrário, ele demanda uma constante revisão a fim de que se possa compreender melhor o sistema de direitos, isto é, através de uma melhor interpretação (cada vez mais adequada) de seu processo de institucionalização (HABERMAS, 1998:466; 2003:165).

Quanto à relação entre Poder Comunicativo e Poder Administrativo, o recurso à circulação oficial do poder acaba por impedir que o segundo adquira autonomia em relação ao primeiro.[48]Para melhor compreensão, deve-se lembrar de um ponto importante:

Desde a Teoria do Discurso, as estruturas de comunicação tomam o Princípio do Discurso em um duplo sentido: cognitivo – para que os resultados da comunicação sejam racionais, o procedimento discursivo filtra as contribuições, razões e temas trazidos à arena pública de discussão; e prático – o princípio dos discursos garante que o entendimento se dê em relações de simétrica paridade e que desencadeie a força produtiva própria da liberdade comunicativa (BAHIA, 2003:243-244, grifo no original).

Portanto, o Poder Comunicativo apenas se forma nos espaços públicos que produzem relações intersubjetivas apoiadas em processos de reconhecimento mútuo e que possibilitem o uso das liberdades comunicativas. Assim, as decisões vinculantes do Estado, regidas por fluxos comunicativos provindos da periferia – passando pelas “eclusas” dos procedimentos democráticos[49]– devem fornecer garantia de que, antes que essas sejam lançadas no sistema político, passem por um rastreamento das questões referentes ao problemas latentes de integração social subjacentes no meio social (HABERMAS, 1998:438; BAHIA, 2003:244). Ou seja, o modelo de “eclusas” permite que espaços não institucionalizados (opinião pública) constituídos na forma de uma rede de comunicações intersubjetivas sejam filtrados visando a influir no centro (Legislativo, Executivo ou Judiciário). Para tanto, são necessários pressupostos próprios a uma cultura política liberal,[50]capaz de permitir uma espontaneidade nos processos de formação da opinião e da vontade pública. 

Por sua autonomia e espontaneidade, a estrutura dos espaços públicos pode até ser estimulada, mas escapa em boa medida à regulação jurídica, à intervenção administrativa ou à regulação política. Partindo de interações simples (face a face), os indivíduos têm a possibilidade de tomar postura frente a uma questão, assumindo como isso obrigações ilocucionárias. Além das interações simples, o espaço público também conta com interações virtuais que se dão pelos meios de comunicação (BAHIA, 2003:245, grifos no original).

Assim, é por meio do Direito – como mediador normativo entre facticidade e validade (CHAMON JUNIOR, 2005:260) – que esse Poder Comunicativo pode se transformar em Poder Administrativo, já que através do Poder Comunicativo é autorizado e outorgado “um determinado poder instrumentalizante no marco de cargos estabelecidos legalmente” (CHAMON JUNIOR, 2005:260).  

Esta ligação entre o poder comunicativo – possível em razão de uma autonomia pública – e o poder administrativo – regido, ou controlado, pelo código poder – confere legitimidade, portanto, ao uso de um poder que, em realizando coerção, não há que reproduzir a si mesmo, mas antes manter-se “regenerado” no marco das transformações levadas adiante pelo poder comunicativo. Mas é claro que esta transformação ou metamorfose do poder comunicativo somente poderá “regenerar” o poder administrativo através do Direito, que em se mantendo como legitimamente produzido, estabelece novas autorizações em um plano legalmente delineado. É, inclusive, esta legitimidade conferida ao uso do poder administrativo que pretende manter as interferências advindas das mostras individuais de poder como ilegítimas (CHAMON JUNIOR, 2005:260-261, grifos no original).[51]

O espaço da opinião pública, contudo, não segue a lógica da especialização como os sistemas, abrindo-se para o livre acesso de todos e assentando-se sobre o pano de fundo de um mundo da vida compartilhado; por isso mesmo, é tão cara, para o estudo do paradigma procedimental do Estado Democrático de Direito, a conclusão a que chega Peter Häberle (1997), vindo a afirmar e reconhecer uma multiplicidade de interpretações da Constituição, surgidas a partir das mais variadas interações existentes no interior da sociedade civil. Como lembra Cattoni de Oliveira (2000:95), o núcleo institucional da sociedade civil é hoje formado por uma diversidade de grupos, movimento, associações e organizações de ordem não estatais e não econômicas – ou seja, desligadas dos sistemas Administrativo e Econômico – capazes de captar os ecos dos problemas sociais oriundos da esfera privada, condensando-os e transmitindo-os para a esfera pública.

Nesse sentido, as controvérsias que forem expostas publicamente, elaboradas a partir de razões – ao invés de imperativos funcionais de poder ou de mercado – podem se transformar de opinião pública para vontade pública – isto é, adquirindo um caráter de decisão vinculante.[52]Todavia, essa mudança dependerá de procedimentos institucionalizados, de tal sorte que a opinião pública poderá influenciar[53]a formação de uma vontade (HABERMAS, 1998:443; 1999:333); a isso, Habermas chama de política deliberativa.

A partir de Cohen e Arato, Habermas (1998:452) afirma uma concepção de sociedade civil distanciada dos pilares republicanos – isto é, como instância de auto realização da sociedade. Para a efetivação de uma “democracia radical”, reconhece a necessidade de limitações: (1) do espaço de atuação de movimentos não institucionalizados, pois pesa o risco de se cair em movimentos populistas apegados cegamente a tradições, pois o espaço público exige um mundo da vida racionalizado;[54](2) o espaço de formação da vontade política não pode ser controlado pelos atores que apenas fazem uso da influência na formação do poder comunicativo – esses exercem influência na produção do Direito com a intenção de conquista sobre o poder administrativo, programando-o e controlando-o; (3) os movimentos sociais devem ter consciência de que, nas sociedades atuais – funcionalmente diferenciais, não existe uma instância reguladora do todo social; ainda que a política possa,  até certa medida, resolver problemas de integração social, esse papel escapa a seus limites de competência, podendo apenas se dar por meios indiretos que não interferem nas lógicas internas a cada sistema social (HABERMAS, 1998:453).

Como consequência, tem-se que o processo legislativo deve ser sensível ao torvelinho das discussões ocorridas nos meios não institucionalizados. Por sua vez, os procedimentos judiciais visam à proteção, decisão e estruturação dos espaços argumentativos (sem, contudo, interferir no fluxo dessas argumentações).  Nesse último caso, lembra Habermas (1998:266) que a tensão entre facticidade e validade se manifesta no fato de que as decisões devem levar em conta, simultaneamente, a tensão entre segurança jurídica (aqui, positividade do Direito) e pretensão de decisões corretas (legitimidade).

Assim, por um lado, o Direito vigente é capaz de garantir a imposição coercitiva de expectativas de comportamento. Por isso mesmo, as decisões judiciais devem estar consistentes com o Direito vigente, formado a partir de uma cadeia de decisões passadas – tanto de processos legislativos quanto judiciais, bem como de tradições articuladas (HABERMAS, 1998:267). Por outro lado, a decisão não pode estar limitada ao passado e ao Direito vigente; uma pretensão de aceitabilidade racional (correção) é esperada.

Por isso mesmo, Bahia faz uma advertência pertinente também à presente pesquisa: 

[...] a discussão em torno da posição dos Tribunais num Estado Democrático de Direito é bem mais complexa do que a de um simples “aplicador do direito”. A circulação oficial do poder mostra a precedência do Legislativo na percepção e na própria discussão pública das várias questões surgidas nos vários espaços públicos. Contudo, transparece também que a função dos Tribunais não pode se resumir à mera “subsunção” dos fatos às leis. Por outro lado, se o Judiciário não deve ser mera bouche de la loi, não deve, outrossim perder de vista que ele não é o repositório das “virtudes” de uma comunidade: assumindo uma posição conservadora – como, e.g., o “Senado Conservador” francês – ou uma atitude “ativista” (2003:250, grifo no original).

O problema, então, gira em torno da possibilidade de conciliar a facticidade do Direito – isto é, estabilização de expectativas de comportamentos, até por uma via coercitiva – com uma validade – ou seja, uma autonomia pública que reclama a legitimidade do processo de formação de normas. Logo, a questão da legitimidade do Direito não se resume ao factum de uma decisão judicial; ainda é necessário que esta seja consistente de dois aspectos: por meio de uma justificação interna – deve encontrar motivações no Direito positivo; e por meio de uma justificação externa – aceitável racionalmente, explicitando uma fundamentação jurídica (HABERMAS, 1998:267; BAHIA, 2003:250).

Contribuições podem ser encontradas no pensamento de Gadamer e Dworkin. Todavia, é nas pesquisas de Klaus Günther – que, ao mesmo tempo em que partem dos estudos habermasianos, trazem contribuições, lançando novas luzes sobre velhas questões – que Habermas (1998:62), reconhecidamente, encontra seu interlocutor jurídico. A separação feita por Günther entre discursos de justificação e discursos de aplicação, seja do Direito, seja da Moral, é decisiva para o desenvolvimento da Teoria do Discurso. Questões de validade de uma norma passam a ser dissociadas de questões referentes à aplicação adequada da mesma.


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Notas

[2]É normal encontrar autores traçando comparações entre o pensamento de Habermas e as teorias de filósofos monumentais, como Kant e Hegel, por exemplo. Entretanto, não se deve tanto ao intuito de constatar um suposto impacto causado pela teoria do primeiro no pensamento dos filósofos de seu tempo, mas talvez – e até de certa maneira jocosa – em razão da dificuldade de se iniciar um estudo sobre seu conteúdo; isso se deve mais pela dificuldade – e, quem sabe, até por uma rejeição – de apreender os pressupostos da teoria do que necessariamente pela impenetrabilidade da mesma. Dessa forma, Freitag (2002) ilustra bem a questão, quando justificando sua opção pelo autor, através do exemplo dos campos da moral e da ética, demonstra que o pensamento habermasiano busca abrir-se para um discurso não restrito aos filósofos (Platão, Aristóteles, Kant, Hegel, etc.), sendo mais abrangente em seu conteúdo, a ponto de adentrar em discussões próprias da Sociologia (Weber, Durkheim, Parsons, Luhmann, etc.), da História (Koselleck, Hobsbawn), da Psicologia (Freud, Piaget, Kohlberg, etc.), do Direito (Rawls, Dworkin, Michelman, etc.), entre outras áreas, de modo que os autores por ele mencionados não são apenas referências bibliográficas, mas antes assumem o papel de verdadeiros interlocutores. Além do mais, sua proposta para a Filosofia não é somente lançar um olhar multidisciplinar, mas reconstruí-la como uma guardadora-de-lugar (Platzhalter, no alemão) do conhecimento: isto é, a intérprete mediadora dos conteúdos científicos, uma vez que a filosofia conserva uma ligação interna com o Direito, com a Sociologia, com a Economia, etc., sendo capaz de “transitar de um discurso para outro e de traduzir de uma linguagem específica para outra” (HABERMAS, 2004:321; BERTEN, 2004:120). A noção de guardador-de-lugar foi primeiramente apresentada na conferência de Stuttgart (1981), também fazendo parte da obra Consciência Moral e Agir Comunicativo (publicada, originalmente, em 1983, com tradução para o português em 1989). De maneira sintética, a proposta é abandonar a compreensão de filosofia como indicadora de lugar das ciências e intérprete máxima da cultura, para que venha assumir um papel mais modesto em tempos de pensamento pós-metafísico: o intérprete mediador capaz de estabelecer discursos com e entre as ciências, sem pretensões fundamentalistas e com consciência falibilista. “Se a filosofia é capaz de conservar essa unidade formal de uma razão pluralizada, isso não se deve a um conceito concreto do ente como um todo ou ao bem universal, mas à sua capacidade hermenêutica de transpor as fronteiras da linguagem e do discurso, enquanto ao mesmo tempo permanece sensível aos contextos de fundo holísticos” (HABERMAS, 2004:321). Para tanto, ela faz uso da linguagem ordinária – existente na prática cotidiana – que serve de base para a manutenção da linguagem específica de cada ciência.

[3] É, por isso, que afirma Habermas (1990:66): “[...] a atividade não linguística não oferece por si mesma essa perspectiva – ela não revela a partir de si mesma o modo como foi planejada. Somente os atos de fala conseguem preencher essa condição”.

[4]Oliveira (2001:172-179) e Bahia (2003:219-220) lembram que Searle difere-se de Austin por procurar analisar a linguagem a partir de um caso neutro, “puro”, o que conduz à afirmação de que seus estudos adquirem um caráter expressamente formal. Sua preocupação é a tematização das “regras de uso” da linguagem, visando à construção de uma linguagem “idealizada”, capaz de servir como ferramenta metodológica a ser aplicada em uma linguagem ordinária.

[5]A locução “cale-se!”, por exemplo, apresenta um mesmo significado nos níveis semântico e sintático; todavia, pragmaticamente, ela pode variar conforme o contexto – como coloca Galuppo (2002:110): se enunciada por um juiz ao réu, durante um julgamento, significará uma ordem; mas se enunciada pelo réu ao juiz, representará um desacato à sua autoridade. Dessa forma “[...] um ouvinte pode deduzir do conteúdo semântico do proferimento o modo como a sentença proferida é utilizada, ou seja, pode saber qual é o tipo de ação realizado através dele. [É desta forma que] As ações linguísticas interpretam-se por si mesmas, uma vez que possuem uma estrutura auto referencial. [...] A idéia de Austin, segundo a qual nós, ao dizermos algo, fazemos algo, implica a recíproca: ao realizarmos uma ação de fala dizemos também o que fazemos. Esse sentido performativo de uma ação de fala só é captado por um ouvinte potencial que assume o enfoque de uma segunda pessoa, abandonando a perspectiva do observador e adotando a do participante (HABERMAS, 1990:67).

[6]Torna-se, então, possível traçar uma distinção entre as ações direcionadas ao entendimento, de um lado, e as ações orientadas à concretização de um fim, de outro – mesmo que, grosso modo, todas as ações sejam orientadas a um fim, ainda que seja o entendimento.

[7]“Em geral, cada ação de fala pode ser criticada reiteradamente como inválida sob três aspectos: como inverídica, em relação a uma asserção feita (ou seja, pressupostos em relação à existência do conteúdo da asserção); como incorreta, em relação a contextos normativos existentes (ou em relação à legitimidade das normas pressupostas); e como não-sincera, em relação à intenção do falante” (HABERMAS, 1990:80). Como esclarece Galuppo (2002:118): a pretensão de verdade corresponde ao mundo objetivo, que é compartilhado por todos os seres, é o mundo da ciência, referindo-se à adequação do enunciado linguístico para a descrição da realidade fática; a pretensão de veracidade corresponde ao mundo subjetivo, absolutamente individual, mundo esse representado pela arte ou pelos sentimentos e emoções, de modo que se refere à adequação entre aquilo que expressamos e aquilo que sentimos; por fim, a pretensão de correção está ligada ao mundo intersubjetivo, que congloba a Moral e o Direito, e refere-se à correspondência entre normas elaboradas para condução da ação humana em sociedade e para a solução dos conflitos práticos existentes.

[8]“[..] no agir estratégico, a linguagem transforma-se num simples meio de informação, pois suspende-se o pressuposto de que a orientação tem como base pretensões de validade, em favor de pretensões de poder ou influência. No agir comunicativo, o ato de fala se justifica normativamente conforme pretensões de validade, pretensões à verdade proposicional, à correção normativa e à veracidade subjetiva” (SALCEDO REPOLÊS, 2003:64).

[9]A ação comunicativa distingue-se da ação instrumental (compreendida como modalidade de ação técnica que busca adequar racionalmente os meios para se alcançar um fim determinado) por ser uma interação linguisticamente mediada voltada para o entendimento. Como bem lembra Freitag (2002:240), a ação comunicativa tem como mérito a superação da filosofia da consciência e, com isso, a transformação da subjetividade em favor de uma intersubjetividade. As interações linguisticamente mediadas devem pressupor a existência de um mundo da vida compartilhado, que atua como um pano de fundo de silêncio não problematizado. Assim, as proposições dele retiradas são irrefletidas e conduzem os falantes a uma concordância à primeira vista. Contudo, pode acontecer que a pretensão de validade de uma dada proposição seja questionada em seu conteúdo de verdade da assertiva, na correção da norma apresentada ou na sinceridade do seu falante. O discurso é, então, a suspensão da pretensão de validade da proposição por meio de um procedimento fundamentado em argumentos racionais até que se chega a um consenso, restabelecendo o curso normal da ação comunicativa.

[10]“Em primeiro lugar, [...] devem pressupor que estão atribuindo idêntico significado aos proferimentos que utilizam, isto é, devem pressupor a generalidade dos conceitos: presume-se que falantes e ouvintes podem entender as expressões gramaticais que utilizam de forma idêntica [...]. Em segundo lugar, eles devem pressupor que os destinatários estão sendo responsáveis, autônomos e sinceros uns com outros. Ou seja, devem pressupor que entre falante e ouvinte se estabelece uma relação de respeito e reconhecimento mútuo, caso contrário se estaria desqualificando o outro como interlocutor [...]. E em terceiro lugar, pressupor que falante e ouvinte vinculam os seus proferimentos a pretensões de validade que ultrapassam o contexto. Essas pretensões de validade são 1) à verdade proposicional [...]; 2) à veracidade subjetiva [...]; 3) à correção normativa [...]” (SALCEDO REPOLÊS, 2003:49-50).

[11]Por isso mesmo, a teoria habermasiana, como registra Cattoni de Oliveira (2002:36-37), não está presa “[...] a um único ponto de vista disciplinar, mas, pelo contrário, permanece aberta a diferentes pontos de vista metodológicos (participante x observador), a diferentes objetivos teóricos (explicação interpretativa e análise conceitual x descrição e explicação empírica), a diferentes papéis sociais (do juiz, dos políticos, dos legisladores, dos clientes e dos cidadãos) e a diferentes atitudes pragmáticas de pesquisa (hermenêuticas, críticas, analíticas, etc.), a fim de que uma abordagem normativa não perca o seu contato com a realidade, nem uma abordagem exclua qualquer aspecto normativo, mas permaneçam em tensão”.

[12]Bahia (2003:226-227) explica que o risco de dissenso é gerado pela tensão decorrente do posicionamento de afirmações e negações frente às pretensões de validade e da própria instabilidade gerada pelo caráter contra fático dos pressupostos da comunicação.

[13] “Durante la acción comunicativa el mundo de la vida nos envuelve en el modo de una certeza inmediata, desde la que vivimos y hablamos sin distancia respecto a ella. Esta presencia penetrante, a la vez que latente y desapercibida, del trasfondo de la acción comunicativa puede describirse como una forma imensificada y, sin embargo, deficiente de «saber» y de poder. Por un lado, hacemos involuntariamente uso de este saber, sin saber reflexivamente que poseemos tal saber. Lo que dota al saber de fondo de tal certeza absoluta y le presta subjetivamente la calidad más elevada y apurada de saber, es, considerado objetivamente, esa propiedad que precisamente le priva de un rasgo constitutivo del saber: hacemos uso de ese tipo de saber sin tener conciencia de que pudiera ser falso. En la medida en que todo saber es falible y en que nos resulta consciente como tal, el saber de fondo no representa saber alguno en sentido estricto. La falta de relación interna con la posibilidad de volverse problemático, porque sólo en el instante en que queda dicho u expresado entre en contacto con pretensiones de validez susceptibles de crítica, pero en ese mismo instante en que es tematizado ya no opera como trasfondo sino que se deshace, se viene abajo en esa su modalidad de saber de fondo. El saber de fondo no puede ser «falsado» como tal; pues se decompone tan pronto como, al volverse temático, cae en el remolino de las posibilidad de problematización. Lo que presta su peculiar estabilidad y lo inmuniza contra la presión de las experiencias generadores de contingencia, es la peculiar neutralización que en ese saber se efectúa de la tensión entre facticidad y validez: en la dimensión misma de la validez queda apagado ese momento contrafáctico de una  idealización que apunta más allá de lo dado en cada caso, el cual momento es el que empieza posibilitando una confrontación con la realidad, en la que ésta pueda defraudar nuestras expectativas; a la vez permanece intacta la dimensión como tal de la que el saber implícito extrae la fuerza que tienen las convicciones” (HABERMAS, 1998:84, grifos no original).

[14]A colonização do mundo da vida é explicada por Freitag (2002:239) como o processo resultante da expansão da racionalidade instrumental utilizada pelos imperativos funcionais do sistema econômico e do sistema político-burocrático, que invadem o mundo da vida desalojando e expulsando a racionalidade comunicativa. Assim, onde antes havia processos de interação sociais regidos por uma racionalidade comunicativa, passa-se a ter uma racionalidade instrumental. Como consequência, aponta-se uma crise de legitimidade das decisões sobre o Direito, o que põe em risco o processo de integração social, uma vez que o Direito não somente mantém contato com o código proveniente na linguagem coloquial ordinária, como por ele ainda transitam mensagens provenientes dos códigos do sistema econômico e do sistema político-burocrático (HABERMAS, 1998:146).

[15]Esse ponto foi objeto de um questionamento explícito em entrevista fornecida a Jiménez Redondo, transcrita na obra Más allá del Estado Nacional (2000:170-171). Aqui, Habermas revisa sua idéia de juridização (Verrechtlichung) apresentada na TAC (1987:2:503), que, em linhas gerais, era concebida como: (1) um aumento do Direito escrito nas sociedades modernas, em razão de uma maior extensão dos assuntos absorvidos pelo Direito e em substituição aos meios informais de resolução; (2) uma densificação do tratamento jurídico, levando a sua subdivisão a fim de acomodar toda a complexidade de questões em uma ótica especializada (CHAMON JUNIOR, 2005:184). Agora, o modelo da juridização representa um modelo atrelado aos paradigmas do Estado Liberal e Estado Social, o qual quer contrapor com sua leitura procedimentalista do Estado Democrático de Direito. Isso não significa que a questão esteja posta de lado, pois ela ainda representa uma preocupação para o autor, principalmente no plano de aplicação do direito constitucional, uma vez que, na sequência do Tribunal Constitucional alemão, os Tribunais Constitucionais (mas também os demais Tribunais Superiores, de um modo geral) acabam convertendo-se em uma espécie de legislador paralelo ou, até mais grave, em um Poder Constituinte permanente, como o caso alemão (HABERMAS, 2000:171), tomando a Constituição como uma “ordem concreta de valores”.

[16]Esse é o caso da posição assumida por Niquet (2002:103): “Os discursos de aplicação da moral passam então a ser discursos de aplicação e de fundamentação do direito, e a teoria do discurso a partir da moral passa a ser uma teoria do discurso do direito”.

[17]“O direito como meio tem um papel puramente funcional, mais precisamente no sentido de que suas normas servem para estabilizar as relações de troca econômica e dizem respeito ao agenciamento administrativo ou mesmo burocrático da sociedade. Sua função é de ordem sistêmica, pois consiste em assegurar a reprodução do sistema econômico e do sistema administrativo tornados amplamente autônomos nas sociedades contemporâneas. O direito como meio serve de instrumento para a coordenação da ação social sem recurso direto às instituições normativas dos atores” (BILLIER e MARTYOLI, 2005:434, grifos no original).

[18]“[...] o Direito acaba regulando situações do mundo da vida que ao invés de se legitimar perante esta mesma esfera – como seria o esperado na lógica do campo denominado ‘Direito como Instituição’ – acabaria sendo legitimado por um mero procedimento formal de produção legislativa” (CHAMON JUNIOR, 2005:193).

[19]“Mas é interessante perceber que nem o próprio Habermas leva a sério esta sua afirmação de que o discurso jurídico seja um caso especial do discurso moral. O princípio da ‘ética’ do discurso não está, sequer, sendo tomado a sério, em termos morais, equivale dizer, perante determinadas situações jurídicas delineadas, que referir-se a um discurso jurídico ‘especial’ de um discurso moral se mostra impreciso como no tocante a questões referentes, por exemplo, ao Direito como meio. Na medida em que Habermas entende o mundo da vida, sendo alheio a questões morais, como tratar uma discussão atinente ao Direito como meio através de um discurso especial da moral? A inadequação aqui se faz em dois níveis: a) entender o princípio do discurso argumentativo do Direito como um caso especial do princípio moral e b) pretender fazer uma separação entre Direito de ‘conteúdo moral’ e Direito ‘sem conteúdo moral’, ou indiferente a este/independente desde” (CHAMON JUNIOR, 2005:204).

[20]Vê-se, então, que Habermas abandona de vez a separação efetuada na TAC (1987), reconhecendo que mesmo normas de Direito Empresarial podem trazer um princípio moral (CHAMON JUNIOR, 2005:211).

[21] “[...] es posible la legitimidad a través de la legalidad en la medida en que los procedimientos establecidos para la producción de normas jurídicas sean también racionales en el sentido de una racionalidad procedimental práctico-moral y se pongan en práctica de forma racional. La legitimidad de la legalidad se debe a un entrelazamiento de procedimientos jurídicos con una argumentación moral que a su vez obedece a su propia racionalidad procedimental” (HABERMAS, 1998:545).

[22]“[...] na medida em que os discursos jurídicos também se baseiam em um ‘princípio moral’ de tratar todos como livres e iguais, temos que a efetividade de tais normas legítimas, embora não possa ser cobrada de um ponto de vista moral, pode ser determinada desde uma ótica jurídica, o que vem, então, justamente, justificá-lo moralmente – na medida da igualdade – tanto do ponto de vista da efetividade quanto da exigibilidade – como complemento da Moral, pois se nesta há necessidade de observância da norma por todos, todos devem individualmente reconhecê-las e motivar-se por elas; no campo jurídico tal déficit é superado funcionalmente ainda que o Direito seja justificado moralmente” (CHAMON JUNIOR, 2005:215).  

[23] “Como ha demostrado Klaus Günther, en los contextos de fundamentación [discursos de justificação] de normas la razón práctica se hace valer examinando si los intereses son susceptibles de universalización, y en los contextos de aplicación de normas [discursos de aplicação] examinando si se han tenido en cuenta de forma adecuada y completa todos los aspectos relevantes a là luz de normas que pueden colisionar entre si” (HABERMAS, 1998:585).

[24] “El mecanismo de coordinación de la acción que representa el lenguaje introduce en la propia empiria social una tensión, que, desde un punto de vista funcional, por ser ella misma una fuente sistemática de dorden, ha de quedar elaborada y estabilizada mediante mecanismos diversos. El derecho positivo moderno es uno de esos mecanismos, tan inverosímil como sorprendente; limita estrictamente la necesidad de acuerdo en la interación corriente sustituyéndola por la posibilidad de apelar en todo momento a normas coercitivas a las que el destinatario queda sujeto sin posibilidad de cambiarlas, a la vez que en el plano de la producción del derecho deslimita por entero la posibilidad de desacuerdo (y, por tanto, de introducir cambios en las normas de primer orden) sometiéndola a la vez a una estricta regulación reflexiva que, por tanto, prevé, (dejándolo libre a la vez que regulándolo) incluso el desacuerdo que verse, no ya sólo sobre las normas de primer orden, sino sobre esa misma regulación reflexiva; también la Constitución puede cambiarse conforme a derecho; ello suscita la cuestión acerca de la natureza de las normas o del sistema de normas con el que todo ello es posible” (JIMÉNEZ REDONDO, 1998:18).

[25]No transcurso da tradição filosófica contratualista que vai de Hobbes a Hegel, o Direito Natural serviu como categoria chave para explicar a mediação de todas as relações sociais; mas, a partir das críticas dos filósofos morais escoceses e, especialmente, a partir de Smith e Ricardo, esse Direito Natural racional perde terreno para uma economia política que interpreta a sociedade civil à luz de uma esfera do comércio e do trabalho, regulada por lei autônomas – uma “mão invisível” ou um “sistema de necessidades”, como queria Hegel – de modo que os indivíduos perdem sua liberdade (HABERMAS, 1998:106-108). Marx, por sua vez, irá criticar essa economia política, compreendendo que a sociedade burguesa transforma-se em um sistema social autônomo, dotado de lógica própria e regido por imperativos econômicos. Assim, o Direito perde sua posição chave e, em especial, seu caráter normativo. A coesão social, então, nessa teoria assentar-se-ia sobre as relações de produção (HABERMAS, 1998:108-109, SALCEDO REPOLÊS, 2003:45). Todavia, as teorias sociológicas de natureza sistêmicas devolvem ao Direito parte de sua autonomia perdida, mas sob a forma de um subsistema social, isolado funcionalmente. A compreensão normativa é substituída por uma leitura funcionalista: o Direito serve para estabilizar expectativas de comportamento e para solução de conflitos apoiado em um código binário: licitude/ilicitude. A leitura habermasiana, contudo, segue por uma outra via: opta por uma leitura “não-derrotista” da racionalidade humana, lançando para o estudo do Direito um questionamento profundo acerca de suas condições de legitimidade, assentadas em pretensões de validade compartilhadas a partir de um mundo da vida. É justamente o empreendimento de um estudo meticuloso dessa última categoria que permitirá a Habermas lançar uma nova proposta para o Direito, uma proposta reconstrutiva.

[26] “Para la traducción a códigos especiales depende del derecho, el cual está en comunicación con los medios del control o regulación que son el dinero y el poder administrativo. El derecho funciona, por así decir, como un transformador, que es el que asegura que la red de comunicación social global socio integradora no se rompa. Sólo en el lenguaje del derecho pueden circular a lo ancho de toda sociedad mensajes de contenido normativo; sin la traducción al complejo código que el derecho representa, abierto por igual a sistema y mundo de la vida, esos mensajes chocarían con oídos sordos en aquellos ámbitos de acción regidos por medios sistémicos de regulación o control” (HABERMAS, 1998:120).

[27] “En las instituciones de las sociedades tribales, protegidas siempre por algún tipo de tabú, expectativas cognitivas y normativas se afianzan indivisas formando un complejo de convicciones asociado con motivos y con orientaciones valorativas” (HABERMAS, 1998:85). 

[28]“[...] ou seja, garantir de um lado a legalidade do procedimento no sentido de uma observância média das normas que em caso de necessidade pode ser até mesmo impingida através de sanções, e, de outro lado, a legitimidade das regras em si, da qual se espera que possibilite a todo momento um cumprimento das normas por respeito à lei” (HABERMAS, 2002b:287).

[29]Habermas (2002b:287) lembra que mesmo as normas constitucionais, as quais deveriam ter uma maior permanência – sendo algumas, em tese, imodificáveis, como o caso das chamadas cláusulas pétreas – estão sujeitas à alteração, até em caso extremo de mudança de regime.

[30]Habermas (1998:147) lembra que o artigo 4º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, afirma que: “La libertad consiste en poder hacer todo lo que no cause perjuicio a otro. Así, el ejercicio de los derechos naturales de un hombre no tiene otros límites que los que aseguran a los demás miembros de la sociedad el disfrute de los mismos derechos. Esos límites sólo pueden establecerse por ley”.

[31]Situando-se em um outro ponto da tradição da Dogmática jurídica alemã, Kelsen promove um desengate do Direito em face da Moral: o direito subjetivo representa um interesse protegido pelo direito objetivo – ou, como afirmou Windcheid, um “poder querer”. A validade jurídica decorre não por via de sua natureza deontológica, mas por uma via empírica na qual o legislador garante a observância de suas decisões através de normas punitivas (HABERMAS, 1998:151). Esse desengate foi principalmente sentido com o regime nazista e, com sua queda, retornaram as tentativas de conexão entre autonomia privada e autonomia moral, que não conseguiram fazer-se convincentes por muito tempo; diante das imposições da ordem liberal, os direitos subjetivos tiveram sua compreensão individualista renovada (HABERMAS, 1998:152).

[32] “En esta formulación se contienen conceptos que necesitan de explicación. El predicado «válido» se refiere a normas de acción y a los correspondientes enunciados normativos generales o universales; expresa un sentido inespecífico de validez normativa, que es todavía indiferente frente a la distinción entre moralidad y legitimidad. Por «normas de acción» entiendo las expectativas de comportamiento generalizadas en la dimensión temporal, en la social y en la de contenido. «Afectado» llamo a cualquiera a quien puedan concernir en sus intereses las consecuencias a que presumiblemente pueda dar lugar una práctica general regulada por normas. Y por «discurso racional» entiendo toda tentativa de entendimiento acerca de pretensiones de validez que se hayan vuelto problemáticas, en la medida en que esa tentativa tenga lugar bajo condiciones de comunicación que dentro de un ámbito público constituido y estructurado por deberes ilocucionários posibiliten el libre procesamiento de temas y contribuciones, de informaciones y razones. Indirectamente esa expresión se refiere también a las «negociaciones», en la medida en que éstas vengan reguladas también por procedimientos discursivamente fundados” (HABERMAS, 1998:172-173, grifo no original).

[33]Pizzi (2005:49) lembra bem que a proposta habermasiana é, ainda, uma aposta na racionalidade humana – todavia, uma racionalidade que tem seu conceito ampliado pela racionalidade comunicativa, desinflacionada e consciente de suas limitações – e em critérios universais, em oposição à “moda” dos estilos relativistas.

[34]A questão da neutralidade leva Habermas a afirmar uma distinção radical entre questões morais e questões éticas, como será oportunamente visto.

[35]Segundo Habermas (1989:147, grifos no original): “Toda norma válida tem que preencher a condição de que as consequências e efeitos colaterais que previsivelmente resultem de sua observância universal, para a satisfação dos interesses de todo indivíduo possam ser aceitas sem coação por todos os concernidos”.

[36]“Isso quer dizer que as únicas regras que decidem em um discurso moral são aquelas que justificam os interesses incorporados nas normas como universalizáveis. Ao regular quais razões podem ser aduzidas para justificar os interesses incorporados nas normas, o princípio U opera no plano da constituição interna do jogo argumentativo. É nesse sentido que se pode afirmar, novamente, que ele é uma regra de argumentação” (SALCEDO REPOLÊS, 2003:99).

[37] “Manifiestamente, la única fuente metafísica de legitimidad la constituye el procedimiento democrático de producción del derecho. Pero, ¿qué es lo que confiere a este procedimiento su fuerza legitimadora? A ello la teoría del discurso da una respuesta bien simple, que a primera vista resulta bien improbable: el procedimiento democrático posibilita el libre florar de temas y contribuciones, de informaciones y razones, asegura a le formación políticos de la voluntad su carácter discursivo fundado con ella la sospecha falibilista de que los resultados obtenidos conforme al procedimiento sean más o menos racionales” (HABERMAS, 1998:646).

[38]“A primeira distinção entre princípios [normas] e valores, propõe Habermas, é o caráter deontológico daqueles e axiológicos, ou teleológicos, destes. As normas válidas correspondem a expectativas generalizadas no seio da sociedade, enquanto os valores expressam tão-somente a preferência por certos bens em determinado grupo ou entre certas experiências de vida compartilhadas e que não poderiam, portanto, ser estendidos aos demais por se tratarem de preferências éticas. Os valores, aqui, são aplicados com vistas a determinados fins, de acordo com os fins desde determinado número de pessoas. A noção de bem é uma visão parcial, constituindo-se, segundo Habermas, em bom para nós, ou para mim, mas não necessariamente válido perante um sistema coerente de normas, como exige um discurso jurídico de aplicação. O bom para determinado grupo se liga a questões que dizem respeito ao uso da razão prática sob o seu ponto de vista ético e referente, portanto, a concepções de vida boa. Se pretendermos os princípios de acordo com uma leitura axiológica ou teleológica, não mais seria possível manter aquela diferença que Dworkin plantará entre diretrizes políticas – argumentos políticos – e argumentos de princípio. Percebe-se, então, que este autor difere, e muito, da noção alexyana, pelo fato de adotar e entender os princípios sob uma ótica deontológica” (CHAMON JUNIOR, 2004:110, grifos no original). Complementa, ainda, o mesmo autor: “outra questão entre valores e princípios diz respeito à já referida diferença entre o código dos valores, que é gradual, e o código do Direito, que é binário. Se há possibilidade de preferir um princípio a outro, é porque ele é mais atrativo que o contrário. Percebe-se, então, uma noção de graduação, e não de ‘sim’ e ‘não’ como acontece no caso de adequabilidade normativa. Numa perspectiva deontológica há uma pretensão binária de validade” (CHAMON JUNIOR, 2004:110, grifos no original).

[39]Chamon Junior (2005:254) destaca que as discussões envolvendo o código do Direito ainda demandam um maior aprofundamento, o que foge ao escopo da presente pesquisa. Mas em síntese vêm representar o seguinte problema: trata-se de uma recepção da Teoria dos Sistemas de Luhmann, após muitos anos de debates? Segundo a posição do tradutor espanhol, Jiménez Redondo, em nota de rodapé (HABERMAS, 1998:175). Em Luhmann, o código do Direito é definido conforme o par Recht/Unrecht, traduzido por Chamon Junior (2005:154) como licitude/ilicitude. Todavia, no capítulo 4 da obra Facticidade e Validade, o original alemão afirma que tribunais decidem “was recht und was unrecht ist”, de modo a ficar visível a utilização de termos diferentes. Mesmo assim, Jiménez Redondo procede à compreensão de que se trataria de um código binário e utiliza em sua tradução a distinção entre “justo” jurídico/“injusto” jurídico, notadamente entre aspas reconhecendo a dificuldade de tradução dos termos. Na versão norte-americana, Rehg compreende a questão à luz do par legal/ilegal. A questão, todavia, que parece ter mera implicação secundária adquire primeira ordem quando se lembra que Habermas supera a compreensão do Direito como um caso especial da Moral (CHAMON JUNIOR, 2005:255): se Direito e Moral são cooriginários e complementares, não pode haver interferência da Moral sobre o Direito, de modo que este deve desenvolver seu código próprio. Assim, a tradução espanhola cai em impropriedade ao se referir a um “justo” jurídico/“injusto” jurídico, pois o argumento sobre a justiça é objeto da argumentação moral, correndo o risco de apagar a diferenciação que tenta afirmar. Todavia, não é possível concluir que versão para o inglês tenha tido maior sorte, pois “se mostra falha ao traduzir por legal/illegal (jurídico/antijurídico), pelo fato de que Recht/Unrecht, como substantivos que são, se referem, definitivamente, como valor positivo e negativo ao código, à licitude/ilicitude” (CHAMON JUNIOR, 2005:256, grifo no original).

[40]“A relação interna entre soberania popular e direitos humanos está no modo como é alcançada a formação da opinião e da vontade pública: nem a autonomia pública deve se subordinar a pretensos direitos racionalmente universais (como em Kant), nem os direitos humanos ficam à mercê de uma ‘vontade geral ética’ (como em Rousseau)” (BAHIA, 2003:238).

[41]“Segundo o modelo republicano, a cidadania não é apenas determinada pelo modelo das liberdades negativas que podem ser reivindicadas pelos cidadãos enquanto sujeitos de direito privado. Os direitos políticos são, antes de tudo, liberdade positivas, pois garantem não a liberdade de coerção externa, mas a possibilidade de participação política comum pela qual os cidadãos, na construção de uma identidade ético-política comum, reconhecem-se como co-associados livres e iguais” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2000:64, grifo no original).

[42]“O status de cidadão, para o liberalismo, é fundamentalmente determinado por direitos negativos perante o Estado e em face dos outros cidadãos. Como titulares desses direitos, eles gozam da proteção estatal à medida que buscam realizar seus interesses privados nos limites estabelecidos pela lei, e isso inclui a proteção contra intervenções estatais. Direitos políticos como o direito ao voto ou à liberdade de expressão, não têm apenas a mesma estrutura, mas também um significado semelhante enquanto direitos civis que fornecem um espaço no qual questões pragmáticas, através de um agir estratégico funcionalmente regulado, tornam-se livres de coerção externa, fundando um processo político moldado no funcionamento do mercado” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2000:63, grifos no original).

[43] “De ahí que la autonomía privada del sujeto jurídico pueda entenderse esencialmente como la libertad negativa de abandonar la zona pública de obligaciones ilocucionarias recíprocas y retraerse a una posición de observación mutua y de mutuo ejercicio de influencias empíricas. La autonomía privada llega hasta allí donde el sujeto jurídico tiene que empezar a dar cuenta y razón, hasta allí donde tiene que dar razones públicamente aceptas de sus planes de acción. Las libertades subjetivas de acción autorizan a apearse de la acción comunicativa y a negarse a contraer obligaciones ilocucionarias. Fundan una privacidad que libera de la carga aneja a una libertad comunicativa recíprocamente reconocida y mutuamente supuesta y exigida” (HABERMAS, 1998:186).

[44]Bahia (2003:239) lembra que, por isso, a liberdade comunicativa deve ser compreendida como a “possibilidade dos indivíduos tomarem posição frente a uma pretensão de validade levantada por outrem, destinada ao entendimento intersubjetivo. Essa liberdade pressupõe uma atitude performativa (obrigação ilocucionária) dos participantes, que querem se entender sobre algo e pressupõem uma tomada de posição do outro”.

[45] “Con el sistema de los derechos nos hemos asegurado de las presuposiciones de las que los miembros de una comunidad jurídica moderna tiene que partir si es que han de poder tener por legítimo su orden jurídico sin que a tal fin puedan buscar arrimo en razones de tipo religioso o metafísico. Pero una cosa es la legitimidad de los derechos y la legitimación de los procesos de producción del derecho, y otra muy distinta la legitimidad de un orden de dominación y la legitimación del ejercicio de la dominación política. Los derechos fundamentales que hemos reconstruido en una especie de experimento mental son constitutivos de toda asociación que pueda entenderse como una comunidad jurídica de miembros libres e iguales; en estos derechos se refleja in statu nascendi, por así decir, la «sociación» horizontal de los ciudadanos. Pero ese acto autorreferencial de institucionalización jurídica de la autonomía ciudadana queda incompleto en aspectos esenciales; no puede estabilizarse a sí mismo. El instante del mutuo reconocimiento de derechos se queda en un suceso metafórico; puede quizá ser recordado y ritualizado, pero no puede ni consolidarse ni perpetuase sin organizar, o sin recurrir funcionalmente a un poder estatal” (HABERMAS, 1998:199).

[46]Outros princípios são derivados do princípio da soberania popular. São eles: (1) princípio da proteção abrangente dos direitos individuais, que se refere ao Judiciário (HABERMAS, 1998:240); (2) princípio da legalidade da Administração Pública (HABERMAS, 1998:241); e (3) princípio da separação entre Estado e Sociedade (HABERMAS, 1998:243).

[47] “La soberanía, enteramente dispersa, ni siquiera se encarna en las cabezas de los miembros asociados, sino – si es que todavía se quiere seguir hablando de encarnaciones – en esas formas de comunicación discursiva de la opinión y la voluntad, que sus resultados falibles tienen a su favor la presunción de razón práctica. Una soberanía popular exenta de sujeto (esto es, no asociada a sujeto alguno), que se ha vuelto anónima, que queda así disuelta en términos intersubjetivistas, se retrae, por así decir, a los procedimientos de la implementación de esos procedimientos democráticos. Es una soberanía que se sublima y reduce entre la formación institucional de la voluntad organizada en términos de Estado de derecho y los espacios públicos políticos culturalmente movilizados. Esta soberanía, comunicativamente fluidificada, se hace valer en el poder que desarrollan los discursos públicos, en el poder que brota de los espacios públicos autónomos, pero ha de tomar forma en las resoluciones de instituciones democráticamente organizadas de formación de la opinión y la voluntad porque la responsabilidad de las decisiones importantes en la práctica, exige que esas decisiones se puedan imputar con claridad a esta o aquella institución. El poder comunicativo es ejercido a modo de un asedio. Influye sobre las premisas de los procesos de deliberación u decisión del sistema político, pero sin intención de asaltarlo, y ello con el fin de hacer valer sus imperativos en el único lenguaje que la fortaleza asediada entiende: el poder comunicativo administra el acervo de razones, a las que, ciertamente, el poder administrativo recurrirá (y tratará) en términos instrumentales, pero sin poder ignorarlas, estando estructurado como está en términos jurídicos” (HABERMAS, 1998:612).

[48]Um esclarecimento faz-se necessário. Habermas toma de Arendt o conceito de Poder Comunicativo. Segundo a autora, o poder comunicativo brota do acordo público entre cidadãos (HABERMAS, 1998:217). Todavia, na leitura habermasiana, algumas críticas serão feitas: do fato de o poder comunicativo poder potencialmente influenciar no Poder Administrativo não decorre que ele assim agirá (1998:608-609), por isso mesmo, a necessidade de colocar o Direito como meio de ligação entre ambos.

[49]Segundo o modelo de eclusas, as decisões vinculantes do Estado devem provir não do centro (Legislativo, Executivo ou Judiciário) mas da periferia, de modo que os cidadãos possam, por meio de influxos comunicativos procedimentalizados, ultrapassar as comportas de discussão, caminhando sempre em direção a esse centro.

[50]Segundo Cattoni de Oliveira (2000:93) e Bahia (2003:245), a noção de cultura liberal está ligada à existência de um reconhecimento recíproco da dignidade de diferentes concepções éticas, ou seja, a uma cultura que leva em conta o pluralismo.

[51] “La idea de Estado de derecho puede interpretarse entonces en general como la exigencia de ligar el poder administrativo, regido por el código «poder», al poder comunicativo creador de derecho, y mantenerlo libre de las interferencias del poder social, es decir, de la fáctica capacidad de imponerse que tienen los intereses privilegiados. El poder administrativo no tiene que reproducirse a sí mismo, sino sólo regenerarse a partir de la metamorfosis de poder comunicativo. En última instancia es esta transferencia la que el Estado de derecho ha de regular, dejando, sin embargo, intacto el código mismo que el poder representa, es decir, sin intervenir en la lógica de la autorregulación del poder administrativo. Desde un punto de vista sociológico, la idea de Estado de derecho no hace sino iluminar el aspecto político del establecimiento de un equilibrio entre los tres poderes de la integración social: el dinero, el poder administrativo y la solidaridad” (HABERMAS, 1998:218, grifo no original).

[52]“A ponte entre a esfera pública e os sistemas sociais institucionalizados é feita pela sociedade civil que representa os movimentos, as associações e as organizações sociais. Habermas defende que a sociedade civil, em certas circunstâncias, pode ter opiniões próprias, capazes de influenciar o complexo parlamentar, obrigando o sistema político a modificar o rumo do poder oficial. Para que a esfera pública consiga cumprir sua finalidade, é imprescindível a existência de um mundo racionalizado, capaz de questionar os valores tradicionais e de uma cultura política livre. Quando o Sistema político não está ligado à sociedade civil e à esfera pública temos a possibilidade de manipulação das massas para fins plebiscitários” (MATTOS, 2002:100).

[53] “La «influencia» la introdujo Parsons como una forma simbólicamente generalizada de comunicación, que gobierna las interacciones en virtud de la convicción razonada o de la pura sugestión retórica. Por ejemplo, las personas o instituciones pueden disponer de un prestigio que les permite ejercer con sus manifestaciones influencia sobre las convicciones de otros, sin necesidad de demostrar en detalle sus competencias o sin necesidad de dar explicaciones. La «influencia» se nutre del recursos que es el entendimiento, pero se basa en una especie de anticipo, es decir, en la confianza que se pone en posibilidades de convicción actualmente no comprobadas.  En este sentido las opiniones públicas representan un potencial político de influencia que puede utilizarse para ejercer influencia sobre el comportamiento electoral de los ciudadanos o sobre la formación de la voluntad y los organismos parlamentarios, en los gobiernos y en los tribunales. Ahora bien, el influjo político de tipo publicístico, es decir, apoyado por convicciones de tipo público, sólo se transforma en poder político, es decir, en un potencial para tomar decisiones vinculantes, cuando opera obre las convicciones de los miembros autorizados del sistema político y determina el comportamiento de electores, parlamentarios, funcionarios, etc. El influjo publicístico político, al igual que el poder social, sólo puede transformarse en poder político a través de procedimientos institucionalizados” (HABERMAS, 1998:443).

[54]“Quando escreveu Mudança estrutural da esfera pública [1961], Habermas identificou a destruição da esfera pública burguesa do século X, a qual havia feito uma revolução política e moral da sociedade. A troca de informações e o debate criado pela esfera pública burguesa propiciava a reflexão, a crítica e a autonomia dos indivíduos acerca das questões que eram postas em discussão. O princípio para o debate público era a discussão baseada em argumentos. A necessidade de argumentação era inovadora, pois desconsiderava qualquer espécie de apelo externo à comunicação como, por exemplo, o econômico, criticando inclusive a tradição que não permitia a justificação de ações políticas” (MATTOS, 2002:101).


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEDRON, Flávio Quinaud. A teoria discursiva do Direito e da democracia de Jürgen Habermas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3935, 10 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27387. Acesso em: 23 abr. 2024.