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Golden shares: implicações e alternativas no direito societário

Golden shares: implicações e alternativas no direito societário

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Estuda-se a legalidade das ações de classe especial e sua aplicabilidade em companhias que sempre pertenceram exclusivamente ao âmbito privado.

1. Introdução 

A separação entre a propriedade e o controle, a representatividade do acionista ou quotista minoritário, entre outras problemáticas, são temas de grande recorrência no âmbito do Direito Societário. A necessidade de alternativas para a estruturação do controle interno das sociedades, sempre evoluindo em uma dinâmica acelerada, gera grande foco por parte deste segmento da doutrina jurídica. Casualmente, é necessário que os mecanismos societários sejam utilizados de forma a conceber soluções inovadoras para as demandas práticas.  

No âmbito do programa de privatizações inglesas, durante a década de 80, uma solução de tal natureza foi necessária para poder harmonizar a transferência do controle societário de certas empresas a particulares com a proteção de setores considerados estratégicos pelo Estado. À época, a participação estrangeira acentuada em certas empresas era temida como uma ameaça à segurança nacional (GRAHAM e PROSSER, 1987, p. 31). 

Esta solução consistiu na criação de um mecanismo, a golden share4. Este título acionário representava uma unidade do Capital Social da empresa e atribuía ao Estado prerrogativas especiais, desproporcionais a sua participação. Dentre estas prerrogativas, encontrava-se o poder de impedir que estrangeiros ingressassem no bloco de controle da companhia. A Golden Share surgia então, supostamente, em busca da satisfação de interesses nacionais (PELA, 2012, p.27). 

A partir da iniciativa britânica, o mesmo mecanismo foi adotado por vários países, especialmente dentro da comunidade europeia, buscando aliar seus próprios programas de desestatização à proteção dos seus interesses nacionais (PIRIE, 1998, p. 6). O Brasil também se encontra dentro deste grupo, tendo não somente previsto o mecanismo dentro da regulamentação de suas privatizações, como inclusive tendo realizado reforma legislativa no sentido de adequar a Lei das Sociedades Anônimas à prática, como será posteriormente demonstrado neste trabalho. 

Cabe notar que estes títulos passaram, posteriormente, a serem adotados não somente por sociedades dentro do contexto das privatizações, mas também por aquelas em que o Estado jamais possuíra participação (PELA, 2012, pp.78-81). Nestas, as características da golden share são especialmente úteis à técnica societária, servindo para a estruturação do poder interno destas companhias. Nestes casos, é perceptível o objetivo de atender à função distinta daquela originalmente intencionada pelo Estado com a criação o instrumento, tomando um viés puramente comercial. 

Ocorre que a aplicação da Golden Share tem sido recorrentemente questionada quanto a sua adequabilidade ao Direito, seja no âmbito público ou privado. Dentro da Europa continental, estas contestações tiveram especial repercussão, tendo a European Court of Justice (ECJ) emitido diversas decisões nas quais a criação destas ações foi considerada incompatível com as leis da Comunidade Europeia. 

Dentre os muitos aspectos que compõem esta temática, o presente trabalho buscará apresentar o desenvolvimento das Golden Shares nos cenários internacional e brasileiro, as controvérsias e jurisprudências relativas a matéria, assim como buscar alternativas para o alcance dos mesmos fins pretendidos pelo instrumento. Deste modo, cabe retornar ao início da questão para melhor compreender a origem desta criação jurídica. 


2. Origem e desenvolvimento no cenário internacional 

As golden shares surgiram no Reino Unido, dentro do programa de privatizações realizado a partir 1979, no governo de Margareth Thatcher. Na ocasião, as razões para as privatizações faziam-se particulares caso a caso, mas como colocou PIRIE (1993, p.6), aquelas que eram mais significativas podiam ser reunidas como: (i) a influência dos ideais neoliberais; (ii) a necessidade de diminuição dos gastos públicos em face da crise enfrentada pelo Reino Unido na transição entre as décadas de 70 e 80; (iii) a necessidade de reduzir o volume de empréstimos concedidos pelo Estado às Empresas públicas, os PSBR (Public Sector Borrowing Requirement); (iv) a diminuição estatal na administração das empresas, bem como do poder dos sindicatos; (v) a promoção da eficiência e da competitividade; e (vi) o incentivo à dispersão acionária e a aquisição de ações por parte de trabalhadores. 

No entanto, enquanto havia o objetivo de reduzir a participação estatal, havia conjuntamente o entendimento de que certo grau de intervenção ainda se fazia necessário, frente ao importante papel que grande parte das sociedades privatizadas exercia prestando serviços públicos essenciais. Permitir que essas empresas ficassem vulneráveis à falência, à interrupção em suas atividades, ou mesmo a um hostile takeover por parte de estrangeiros poderia apresentar sérios riscos ao interesse público8. 4 

Para contornar este cenário, a resposta foi a criação de uma ação preferencial resgatável que atribuía ao Estado poderes especiais, a qual viria ser denominada como special redeemable share9. Estes poderes variaram em cada estatuto, porém consistiam, genericamente, em: (i) premissas quanto à aprovação de cláusulas estatutárias relativas a própria golden share ou a limitações à titularidade; e (ii) poderes de veto em deliberações relativas a dissolução da companhia. Ao Estado também era garantido o poder de veto na criação de novas ações e na aprovação de transferências de parcelas significativas dos ativos da companhia. Do mesmo modo, segundo Graham e Prosser (88, pp. 423-431), procedimentos específicos eram previstos com a finalidade de evitar a transferência do controle das companhias privatizadas. Um destes consistia em assegurar o Estado, a maioria dos votos em qualquer deliberação da Assembleia Geral em duas hipóteses: (i) caso houvesse uma oferta pública de aquisição superior à uma parcela de 50% do capital votante; ou (ii) na possibilidade de uma pessoa ou grupo específico deter mais de 50% dos votos válidos. Outro procedimento previsto consistia na prerrogativa de cercear qualquer indivíduo de possuir mais de 15% do capital votante, a qualquer tempo. 

A Golden Share foi instaurada ainda no início do programa de privatizações inglês, que possuiu três etapas, tendo as principais aberturas ao capital privado ocorrido no intervalo de 1979 à 1993. O mecanismo criado pelo governo inglês foi implementado em uma escala ampla, estando presente em várias companhias desde então. Dentre as mais notórias, encontram-se: A antiga British Aerospace (hoje BAE Systems), fabricante de aeronaves civis e militares; Sealink, prestadora de serviços de transporte marítimo; Jaguar, fabricante de automóveis; British Telecom, prestadora de serviços de telefonia; Rolls Royce, que à época tinha suas atividades concentradas no setor aeroespacial, aeronáutico e de defesa; e British Petroleum, petrolífera. Muitas outras empresas prestadoras de serviços mais abertos ao público, como de geração de energia (National Power), ou de saneamento básico e fornecimento de água (Regional Water Authorities), também contaram com o instrumento. 

Embora a ampla adoção das Golden Shares no cenário inglês, poucas foram as vezes em que o Estado utilizou-se de suas prerrogativas. Não obstante, o modelo inglês foi utilizado e adaptado por vários países, principalmente dentro da comunidade europeia. 

 Em uma destas poucas ocasiões, o Estado britânico vetou a oferta pública de aquisiçào de ações apresentada pela compnanhia estadunidense Sothern Company à National Power, como notado por por Nuno Cunha Rodrigues em Golden shares: as empresas participadas e os privilégios do Estado enquanto acionista minoritário. Coimbra: Coimbra editora, 2004. p. 269 

Na França, a chamada action spécifique foi estabelecida pela Lei n.º 86-912, de 6 de agosto de 1986, a qual tratava da alienação da participação estatal a agentes privados. Pelo art. 10 desta Lei, cabia ao Ministro da Economia determinar se a proteção do interesse nacional requeria a criação de uma action spécifique. Caso necessário, esta ação seria criada com base na conversão de uma ação ordinária de propriedade do Estado francês, vigorando por um prazo de 5 anos ou até decisão antecipada do Estado quanto a sua conversão em ação ordinária. Pela vigência desta lei, o instrumento permitia ao Estado aprovar a participação de qualquer indivíduo com mais de 10% do capital. 

Posteriormente, a França ingressou na segunda etapa de seu programa de privatizações, que passou a ser regido pela Lei n.º 93-923/93, a qual trouxe modificações a alguns mecanismos da antiga norma. A regulamentação da action spécifique passou a requerer um decreto para sua instituição e o rol de direitos e prerrogativas concedidos pelo título foi expandido. Desde que previsto nas disposições do decreto, a action agora também podia permitir ao Estado determinar qual o percentual que determinado acionista deveria possuir para que sua participação na sociedade passasse pelo crivo estatal, mesmo que inferior a 10%. A lei, além disso, passou a autorizar a nomeação de membros do Conselho de Administração ou do Conselho Fiscal e o poder de veto do Estado sobre deliberações de cessão ou oneração de ativos que pudessem prejudicar o interesse nacional. Na França também existiam mecanismos alternativos à utilização das golden shares, como os Noyax Durs, os quais serão melhor analisados por este estudo posteriormente. 

Dentre aqueles que buscaram implementar mecanismos similares, pode-se citar o sistema italiano, onde foram criados os poteri speciali. Entretanto, estes poderes eram fundamentalmente diferentes daqueles adotados pela França ou pela Inglaterra. Isto porque, conforme consta na Lei n.º 474, de 30 de julho de 1994, a atribuição ao Estado dos privilégios não estava vinculada à titularidade de ações representativas de capital social dentro das companhias privatizadas. A legislação previa que as empresas públicas atuantes nos setores de defesa, transportes, telecomunicações, energia e outros serviços públicos poderiam sofrer modificações nos seus estatutos para prever a inclusão dos poteri speciali. Deste modo, os poderes eram atribuídos diretamente ao Estado pelo estatuto, sem porém conferir-lhe posse sobre qualquer unidade do capital social. A realização desta reforma estatutária deveria ser expressamente prevista por decreto. 

Em meio às cláusulas que poderiam ser adicionadas aos estatutos, a Lei estipulava que elas poderiam prever o direto de o Estado aprovar previamente a aquisição de participações correspondentes a pelo menos 5% do capital votante, ou mesmo aprovar a celebração de acordos parassociais que envolvessem ações com no mínimo 5% do capital votante. Conjuntamente, poderia ser garantido o poder de veto sobre as deliberações que tivessem por objeto a dissolução, cisão ou fusão, transferência de estabelecimento empresarial, mudança da sede, alteração do objeto social ou quaisquer modificações as cláusulas dos poteri speciali. Ficava também reservado ao Estado o poder de eleger membros dos conselhos de administração e fiscal. 

É valido ressaltar que o Estado italiano contou com estas premissas apenas em alguns casos excepcionais, tendo apenas quatro companhias contado com estas clausulas em seus estatutos15. Não obstante, houveram muitas críticas quanto a sua adoção, sendo o aspecto mais controverso de sua natureza a desvinculação dos poderes da titularidade de capital. 

As golden shares também tiveram representações em vários outros países, como na Alemanha (goldene aktie e spezialaktie), Bélgica (action spécifique), Espanha (regime administrativo de controle específico), Nova Zelândia (kiwi share), Portugal (acções especiais) e inclusive em nosso próprio sistema jurídico. 

Posto que já foram analisados alguns dos exemplos mais relevantes da Comunidade Europeia e do cenário estrangeiro, podemos voltar-nos para o desenvolvimento desta matéria dentro do contexto brasileiro que, como será demonstrado a seguir, teve objetivos semelhantes àqueles pretendidos pelos Estados Europeus. 


3. As Golden Shares no Brasil 

No Brasil, a Lei n.º 8.031, de 12 de abril de 1990, instituiu o Programa Nacional de Desestatização – PND, além de prever, em seus artigos 6º e 8º, a figura da ação de classe especial. Para melhor compreender o que o programa almejava, é valido citar seus objetivos, conforme o texto da norma trazia em seu artigo 1º: 

“Art. 1° (...): I - reordenar a posição estratégica do Estado na economia, transferindo à iniciativa privada atividades indevidamente exploradas pelo setor público; II - contribuir para a redução da dívida pública, concorrendo para o saneamento das finanças do setor público; III - permitir a retomada de investimentos nas empresas e atividades que vierem a ser transferidas à iniciativa privada; IV - contribuir para modernização do parque industrial do País, ampliando sua competitividade e reforçando a capacidade empresarial nos diversos setores da economia; V - permitir que a administração pública concentre seus esforços nas atividades em que a presença do Estado seja fundamental para consecução das prioridades nacionais; VI - contribuir para o fortalecimento do mercado de capitais, através do acréscimo da oferta de valores mobiliários e da democratização da propriedade do capital das empresas que integrarem o Programa” 

O Programa buscava então alcançar estes objetivos realizando a alienação, para particulares, dos direitos que anteriormente garantiam à União Federal o exercício do controle acionário em determinadas sociedades empresárias (PELA, 2012, p. 63). Alinhando-se à esta estratégia, a ação de classe especial surge como uma opção para resguardar certo controle ao Estado, sem porém prejudicar o intuito do programa. 

O referido artigo 6º previa em seu inciso XII a competência da Comissão Diretora do PND de sugerir a criação da ação de classe especial, bem como as matérias as quais esta disciplinaria. O artigo 8º, por sua vez, apenas autorizava a união a manter a posse a ação e previa que a mesma estabeleceria direitos de veto. É notório que a Lei n.º 8.031/90 não disciplinou estritamente as hipóteses nas quais a emissão do instrumento seria necessária, ou mesmo os direitos inerentes a ele. 

Sob o regime lei de criação do PND, três companhias contariam com a criação de ações de classe especial, tendo cada uma delas inserido disposições específicas em seus estatutos para melhor adequarem-nas a suas particularidades. A Companhia Eletromecânica Celma (Atualmente denominada GE Celma S.A.), prestadora de serviços de reparo, revisão e manutenção de motores, foi uma das primeiras incluídas no PND em 199116. Em seu procedimento de privatização, foi criada uma ação ordinária de classe B, de titularidade da União, pela qual seria reservado o direito de aprovar qualquer alteração relativa ao objeto social, ao limite para a participação de companhias aéreas dentro do capital ou ao Conselho de Administração da Sociedade. A Companhia também garantia à União a atribuição de apontar um dos membros de seu conselho. Em 15 de novembro de 1991 foi publicado no Diário Oficial da União o edital para a alienação das ações de emissão da companhia de nº PND/A-02/91/CELMA. 

 É valido notar que a prerrogativa de eleger um membro do conselho estava presente no estatuto e protegida pela ação de classe especial. Entretanto, a prerrogativa em si não possuía vínculo com a titularidade da ação. 

 Em 04 de abril de 1994 foi publicado foi publicado no Diário Oficial da União o Edital de nº PND-A- 05/94/Embraer 

Segundo o próprio edital, só poderiam participar do leilão pessoas físicas ou jurídicas organizadas sob a forma de sociedade de propósito específico” (sendo assim, com o objetivo social de administrar a participação acionária na Companhia). – Item 1.1 do edital nº PND/A-01/97/CVRD. 

A Empresa Brasileira de Aeronáutica S.A. – Embraer, viria a ser incluída no PND em janeiro de 1992, através do Decreto nº 423. Sendo a segunda empresa privatizada no Brasil a contar com ações de classe especial, a previsão destas se encontrava no edital para a alienação de suas ações, publicado em 199418. Além dos poderes usualmente concedidos para ações de classe especial, é valido notar que a ação de classe especial também proveu recursos para a União vetar a criação ou alteração de programas militares (que envolvessem ou não a República Federativa do Brasil), a capacitação de terceiros em tecnologia para programas militares e a interrupção do fornecimento de peças de manutenção e reposição e aeronaves militares. 

A terceira entidade privatizada brasileira a portar uma ação de classe especial foi a Companhia Vale do Rio Doce, a qual foi incluída no Programa Nacional de Desestatizações por meio do Decreto nº 1.510, de 06 de junho de 1995. O edital de alienação das ações foi publicado dois anos após sua inclusão, sobre o número PND/A-01/97/CVRD. Este mesmo edital previu que seria criada não somente a ação de classe especial pela própria Companhia Vale do Rio Doce, como também que seria emitida uma ação preferencial de classe “A” pela sociedade adquirente19 das ações ofertadas em leilão. A primeira delas proporcionaria, além dos usuais artifícios contidos em instrumentos similares à golden shares, o direito de o Estado vetar deliberações da Assembleia Geral relativas ao alienamento ou encerramento das atividades ou etapas dos sistemas de extração mineral da empresa, fossem elas: (i) depósitos, minas e jazidas minerais; (ii) ferrovias; e (iii) portos e terminais marítimos. Já a ação emitida pela sociedade adquirente forneceria para a União “direito exclusivo de deliberar” sobre determinadas matérias submetidas à Assembleia Geral, as quais correspondiam, em sua maioria, à alterações sobre regras de concentração acionária e transferências de valores mobiliários da Companhia do Vale do Rio Doce. Cabe frisar que esta ação foi atribuída a BNDES Participações S.A., para que exercesse os direitos em favor dos interesses da União. 

Posteriormente, a Lei n.º 8.031/90 foi revogada e substituída pela Lei n.º 9.491/97. A nova Lei manteve os objetivos previamente transcritos, porém ampliou a abrangência do Programa de forma a permitir a transferência para o setor privado não somente da participação acionária de empresas públicas, mas como também da execução de serviços públicos explorados pela União. 

Por força das discussões que emergiram com o evento de privatização da Companhia Vale do Rio Doce (as quais resultaram em duas ações judiciais especialmente importantes para a compreensão das controvérsias envolvidas na questão e que serão examinadas posteriormente neste trabalho), houve a mobilização do Poder Legislativo para sanar algumas das inseguranças relativas às contendas acerca dos entendimentos sobre as normas de Direito Societário pertinentes. Desta mobilização resultou a inclusão na Lei n.º 6.404/76 de previsão sobre a ação de classe especial (PELA, 2012, pp.141-144). Esta modificação se deu por meio da Lei n.º 10.303, de 31 de outubro de 2001, e adicionou o §7º ao Art. 17 da Lei das S/A. É oportuno transcrever o texto do artigo: 

“§ 7 º Nas companhias objeto de desestatização poderá ser criada ação preferencial de classe especial, de propriedade exclusiva do ente desestatizante, à qual o estatuto social poderá conferir os poderes que especificar, inclusive o poder de veto às deliberações da assembleia-geral nas matérias que especificar." 

Conforme pode ser observado acima, a ação de classe especial passou a ser qualificada como ação preferencial. Esta determinação não estava prevista anteriormente, seja na Lei n.º 9.491/97, seja na Lei n.º 8.031/90, e é de especial importância para a compreensão a respeito do posicionamento destes instrumentos no Direito Societário brasileiro. 

Antes de desenvolver uma análise mais direta dos elementos jurídicos deste tema, cabe ainda visitar as companhias privadas que adotaram mecanismos similares as Golden Shares. No Brasil, há dois exemplos que prevaleceram, conforme aponta PELA (2012, p. 78). O primeiro é o da Companhia Brasileira de Liquidação e Custódia – CBLC e o segundo é o da Companhia de Bicicletas Caloi S.A., ambas sociedades anônimas. 

No caso da CBLC, esta empresa é responsável pela prestação dos serviços de compensação, liquidação, custódia e depósito no mercado de capitais brasileiro. Tida a importância do encargo que realiza, uma ação preferencial de classe especial foi atribuída à Bolsa de Valores de São Paulo - BOVESPA, de forma a assegurar a prestação adequada de suas atividades. Além dos direitos patrimoniais usualmente concedidos aos acionistas preferencialistas, a ação também conferia à Bolsa de Valores de São Paulo o direito de aprovar diversas matérias por votação em separado. Dentre estas matérias encontrava-se a participação da CLBC em outras sociedades sempre que os investimentos na participada superassem 10% do capital social da mesma. 

A ação de classe especial se manteve em vigor até meados de 2006. O Estatuto Social aprovado em assembleia geral extraordinária e publicado em agosto de 2007 já não mais contava com o instrumento, restando apenas ações ordinárias em sua base de capital. 

Quanto ao ocorrido na Bicicletas Caloi S.A., o modelo de ações de classe especial foi introduzido em um momento no qual a companhia passava por uma recuperação, conforme aponta PELA (2012, p. 79-81). À época, foi atribuída uma ação de classe especial à sociedade encarregada da gestão temporária da companhia, com prerrogativas especiais. A ação preferencial de classe “C”, como foi disciplinada, permitia ampliação dos poderes e atribuições da administradora e a limitação do então acionista controlador, de forma a prestar garantia suficiente para a manutenção do crédito. Conforme afirma Salomão Filho (2002, pp. 114-115), a Golden Share fornece instrumento eficaz e relativamente indolor para o controlador nestas situações, já que garante que não possa influir na administração da companhia, porém mantendo, virtualmente, todo seu patrimônio intacto. Alternativas como a diluição ou a redução de sua participação societária se mostrariam muito mais onerosas neste aspecto. 

Como pode ser observado nas descrições realizadas até o momento, o termo “Golden Share” designa genericamente os mecanismos societários criados a partir do modelo de privatizações britânico. Há porém, diferenças substancias entre os títulos criados sob esta alcunha, tidas as particularidades relevantes a cada caso. As golden shares podem variar quanto a vários aspectos, como a vinculação a titularidade societária, por exemplo, ou mesmo a sede da disciplina jurídica que a institui, seja ela apenas estatutária, como é o caso nos países de common law, seja ela respaldada por previsão legal, como se dá em países do sistema jurídico continental europeu. 

Tendo analisado as especificidades que podem surgir em situações particulares, podemos agora mover o foco para as questões legais envolvidas, para constatar a compatibilidade dos mecanismos com as bases legais por eles pretendidas. 


4. Críticas e Bases legais para as Golden Shares no Direito Societário Brasileiro 

As golden shares e os instrumentos similares fizeram-se presentes em várias situações nos cenários brasileiro e internacional, como foi evidenciado no item anterior. A utilização destas sofreu, porém, severas críticas, especialmente quanto a sua adequabilidade aos princípios e regras do Direito Societário. 

Como coloca PELA (2012, pp. 84-85), as alegações de que de que as golden shares violam os princípios do Direito Societário são recorrentes dentre os juristas dos países de tradição jurídica romano-germânica, ao passo que nos países de tradição jurídica anglo-saxã essas alegações são mitigadas pelo princípio da autonomia jurídica privada e estatutária. Embora o enfoque deste capítulo esteja voltado para a situação brasileira, também é valido levantar as discussões realizadas no exterior mas que poderiam ser aplicadas ao sistema jurídico do Brasil. A análise das bases legais das golden shares será organizada, portanto, em respostas às considerações já formuladas pela doutrina e pelo mercado. 

Um dos principais focos nos debates que ocorreram no exterior, neste sentido, é quanto à violação do tipo societário da sociedade anônima. Conforme a doutrina dispõe, o núcleo essencial deste tipo societário é composto por três elementos indispensáveis para a caracterização da sociedade anônima. O primeiro destes é a estruturação do capital da companhia em ações, o segundo é a responsabilidade limitada do sócio, enquanto o terceiro é relativo a divisão do capital social em ações passiveis de transferência. Estes elementos são fundamentais ao passo em que a reunião de todos resulta na primazia da contribuição patrimonial sobre a pessoal. Isto é, a individualização da participação de cada sócio de acordo com os recursos aportados na companhia e a possibilidade de circulação de um título que reúne todos os direito e obrigações atribuídos a este contribuem para uma despersonalização da participação acionária, permitindo que os sócios sejam “substituíveis”, sem prejudicar a identidade da companhia. 

Sabendo destes três elementos, pode-se tratar das críticas endereçadas a compatibilidade das golden shares com o tipo sociedade anônima. 

Uma das primeiras críticas quanto a estes aspectos é voltada para a adequação da divisão acionária aos direitos de voto quando há a presença de uma golden share na base de capital. Ocorre que dentro de várias disciplinas, como a francesa, a italiana e a brasileira, vigora um princípio societário conhecido como o princípio da proporcionalidade (“one share one vote”). A um primeiro olhar, este princípio parece constar como obstáculo para os poderes de veto e deliberação comumente atribuídos as golden shares. PELA (2012, pp. 126-131) demostra, no entanto, que este princípio se aplica apenas entre classes de ações em específico, não sendo aplicado indistintamente a todas as ações de emissão da companhia. Tal afirmação é sustentada, no Direito brasileiro, por força do parágrafo 1º do artigo 109 da Lei 6.404/76, que dita “(...)§1º as ações de cada classe conferirão iguais direito aos seus titulares”. Outros indícios da compatibilidade deste princípio dentro da norma são encontrados dentro dos artigos 16 e 18 da Lei das S.A., que estabelecem, respectivamente, possibilidades de diferenciação nos direitos concedidos às ações ordinárias de companhias fechadas e às ações preferências tanto de companhias abertas quanto de companhias fechadas. 

Resta ainda esclarecer, dentro da análise deste mesmo princípio, que as Golden shares não devem ser confundidas com ações de voto plural, pois não conferem maior número de votos do que as demais ações votantes de emissão da companhia. A diferença que figura aqui é de natureza qualitativa, e não quantitativa. Assim, diz respeito a natureza dos poderes conferidos ao titular. Esta distinção, por sua vez, não viola o princípio da proporcionalidade, pois tem a mesma natureza presente dentro do ordenamento, nos artigos supracitados 

Outra questão debatida ainda dentro do núcleo do tipo jurídico da sociedade anônima diz respeito ao princípio da livre circulação das ações. Esta critica possui três desdobramentos, primeiro quanto a restrição e imposição de limites a participação de novos acionistas nas companhias emitentes das golden shares, segundo quanto a impossibilidade de transferência do próprio título golden share, resultando, por fim, em alegada incompatibilidade com o mercado de valores imobiliários. 

Para responder a tais alegações, cabe recorrer a COMPARATTO (2005, pp. 179-180), que percebeu a diferença entre o direito de transmissibilidade das ações e a prerrogativa de livre transmissibilidade das ações. Enquanto as ações devem possuir a característica da transmissibilidade, está não é uma regra de alcance absoluto, por assim dizer. De fato, é possível encontrar na Lei da S.A. previsão especifica sobre esta questão. De acordo com o artigo 36 da Lei, as companhias fechadas podem modificar seus estatutos para introduzir limites a circulação de seus títulos desde que estes estejam regulados minuciosamente, não impeçam a negociação das ações e não sujeitem o acionista ao arbítrio da companhia ou da maioria dos acionistas. 

Percebe-se, porém, que este artigo estipula esta permissão apenas para sociedades anônimas fechadas. De acordo com PELA (2012, pp. 119-121), em tese, a criação de instrumentos de controle da estrutura acionaria dentro de companhias de capital aberto implica em uma violação do subtipo societário, uma vez que as sociedades anônimas de capital aberto pretendem a utilização do princípio da livre transferência frente a sua integração no mercado de capitais. Os poderes de influir na estruturação societária são, por conseguinte, incompatíveis com o mercado de valores mobiliários. 

Resta ainda a discussão quanto à restrição da circulação aplicada ao próprio título societário da golden share. Este conflito pode ser sanado ao passo em que se desconstroem os motivos para a criação desta clausula de inalienabilidade sobre o título. Como já foi posto anteriormente neste estudo, as golden shares são criadas visando a proteção de um interesse em específico, seja ele o interesse púbico ou nacional dentro de companhias privatizadas, seja a recuperação e preservação da eficiência dentro das companhias sem intervenção estatal direta. Conforme PELA (2012, pp. 123-125) conclui, enquanto existir o interesse que justifica sua emissão, a golden share deve ser considerada válida, ainda porque princípio da livre transferência não se encontra violado nesta característica da ação. Isto porque, cumprindo seu papel específico, a golden share em si não foi criada com o intento de ser comercializada no mercado aberto (mesmo que presente dentro de companhias de capital aberto) e, portanto, não está vinculada ao princípio em seu sentido mais abrangente. 

Uma vez abordadas as principais críticas dentro do conteúdo principiológico, podemos nos voltar para os aspectos relacionados à adequabilidade do instrumento à própria Lei societária. Dentro do Brasil, estas indagações quanto à legalidade destes instrumentos se limitaram às alegações de violação das espécies e classes de ações fixadas na Lei.

A maioria destas críticas surgiu em meio ao cenário de privatização da Companhia Vale do Rio Doce, conforme posto anteriormente, sob o argumento de que as ações de classe especial previstas na legislação que disciplinava o Programa Nacional de Desestatização não se encontravam compatíveis com nenhuma das espécies de ação vigentes na legislação brasileira. 

O art. 15 da Lei n.º 6.404/76 prevê que as companhias podem emitir somente três espécies de ações (ordinárias, preferenciais e de fruição). É vedado às sociedades brasileiras, portanto, emitir ações as quais os direitos não correspondam àqueles garantidos por uma destas espécies previamente estabelecidas na Lei. A questão que se interpunha, portanto, era se os direitos pretendidos pelas golden shares se encontravam dentro deste grupo e, caso assim fosse, a qual espécie de ação, em específico. 

Como a legislação e regulamentação do Programa Nacional de Desestatização não previam sobre qual espécie deveria ser adotada a ação de classe especial, foram criadas tanto ações preferenciais como ordinárias de classe especial. Para sanar esta crítica, como foi posto anteriormente, o legislativo incluiu na reforma promovida pela Lei 10.303/2001 a previsão estipulada no §7º do Art. 17 da Lei das S/A, fixando os instrumentos como classe de ações preferenciais. Cabe porém notar, como defende PELA (2012, pp. 147-164), que os direitos conferidos pelas ações de classe especial também podem ser estabelecidos através da utilização das vantagens políticas estabelecidas pelos artigos 16 e 18 às ações ordinárias e preferenciais.

Segundo o artigo 16 da Lei n.º 6.404/76, as ações ordinárias de companhias fechadas podem ser de classes diversas, em função de (i) conversibilidade em ações preferenciais; (ii) exigência de nacionalidade brasileira do acionista; ou (iii) direito de voto em separado para o preenchimento de determinados órgãos administrativos. Conforme a exposição de motivos da Lei, o dispositivo foi criado para permitir a composição ou conciliação de interesse e proteção eficaz de condições acordadas” nas “associações de diversas sociedades em empreendimento comum (joint venture)”. Pode-se identificar coincidências entre um dos poderes garantidos por golden shares e aqueles previstos para a ação ordinária de classe especial. 

Conforme a previsão do artigo, é garantido a estas ações o direito de eleger determinados membros do Conselho de Administração ou Diretores. Como a Lei não estipula limite, em tese este direito poderia inclusive garantir a premissa de eleger a maioria dos membros do órgão, conforme analogia desenvolvia por PELA (2012, p. 147). Note-se que o artigo 16 apenas atende às companhias fechadas, deixando de assegurar às companhias abertas o direito de emitir ações ordinárias com tais possibilidades. 

O artigo 18 da Lei n.º 6.404/76, por sua vez, encerra as vantagens políticas das ações preferenciais, assegurando-lhes os direitos de: (i) eleição, em separado, de um ou mais membros dos órgãos de administração; e (ii) aprovação, em assembleia geral, de alterações estatutárias. Constata-se assim, perfeita coincidência entre os direitos políticos atribuídos a ações preferencias e aqueles que caracterizam as golden shares, como observa PELA (2012, p.155) 

Pode-se concluir, portanto, pela legalidade da adoção de ações de classe especial a que sejam ensejados os direitos estipulados pelos artigos 16 e 18 da Lei das S/A. A aplicabilidade desta não fica, dessa maneira, restringida a companhias privatizadas, podendo ser apreciada por companhias que sempre pertenceram exclusivamente ao âmbito privado da mesma maneira. 

Uma vez visitados os pressupostos legais, pode-se prosseguir agora para a uma análise dos casos jurisprudências, uma vez que os aspectos jurídicos que serão expostos já foram introduzidos e poderão ser priorizados na avaliação. 


5. Análise jurisprudencial 

Haja vista a origem das golden shares no cenário europeu e tendo vários Estados- membros da Comunidade Européia adotado o mecanismo de intervenção estatal, a Comissão da Comunidade Européia se encontrou particularmente envolvida na questão. Postas as liberdades de livre circulação dos capitais e do livre estabelecimento, previstas dento dos artigos 56 e 43 do Tratado de Instituição da Comunidade Européia, criou-se um cenário para a atuação da Corte de Justiça da Comunidade Européia. 

Há de se notar, entretanto, que a Comissão entendeu que algumas circunstâncias justificariam uma limitação excepcional a estes princípios. Conforme disposto em seu Comunicado referente a “determinados aspectos jurídicos dos investimentos intracomunitários”, podem ser aplicadas restrições discriminatórias (dirigidas a apenas a nacionais de outros membros da União Europeia) quando se tratar de: (i) atividade onde há o exercício de autoridade pública pelo Estado-membro que a impôs; (ii) estiver relacionada a políticas públicas, segurança ou saúde pública; ou (iii) constituir uma medida adequada e necessária para assegurar a quanto proteção dos interesses públicos, de forma que não haja outro mecanismo capaz de atingir os mesmos resultados com menor limitação aos princípios da liberdade de circulação de capitais e liberdade de estabelecimento. 

Quanto às restrições não discriminatórias (aplicadas indistintamente a nacionais de qualquer Estado-membro), estas poderiam ser admitidas se: (i) realmente forem aplicadas de forma não discriminatória, e não apenas previstas como tais; (ii) fundarem-se em razões de interesse geral; (iii) representarem medida adequada ao alcance do objetivo por elas visado; e (iv) não excederem o que seria necessário para atingir esse objetivo. 

Estas considerações são de suma importância para a análise jurisprudencial, pois tiveram impacto relevante nas decisões da Corte de Justiça da União Europeia quanto aos processos instaurados contra os Estados-membros que adotaram o mecanismo. 

O primeiro desses processos teve como partes a Comissão da Comunidade Europeia e a República da Itália. Figurando sobre o número de número C-58/9937, o processo analisou os poteri speciali detidos pelo Estado italiano no capital da ENI s.p.a. e Telecom Italia s.p.a., nos termos da legislação italiana (mais especificamente, os arts. 1 e 2 do Decreto-Lei n. 332, de 31 de maio de 1994, modificado pela lei n. 474, de 30 de julho de 1994). Ao final do processo, a Corte de Justiça, condenou a República italiana pelo descumprimento de suas obrigações no âmbito da União Européia. 

Seguiram-se outros processos, abertos contra Portugal (C-367/9838), França (C-483/9939) e Bélgica (C-503/993840). O processo instaurado contra Portugal dizia respeito aos poderes reservados ao estado no âmbito do programa de privatizações implementado pela lei n.° 11/90 e pelos Decretos-lei n.º 380/93 e n.º 65/99. O processo instaurado contra a França recaía especificamente sobre a action spécifique detida pelo Estado francês no capital social da Société Nationale Elf-Aquitaine, cujos poderes estavam previstos no decreto n.° 93.1298. Por fim, o processo aberto contra o Reino da Bélgica tinha por objeto as prerrogativas conferidas ao estado no âmbito de duas companhias: Société Nationale de Transport par Canalisations e Distrigaz. 

Diante da semelhança existente entre esses três casos, o advogado-geral da Comunidade Europeia, Ruiz-Jarabo Colomer, proferiu parecer conjunto, em 03 de julho de 2001. Nesse parecer, o advogado-geral qualificou como discriminatória e, portanto, contrária aos princípios da livre circulação de capitais e da liberdade de estabelecimento a proibição prevista na legislação portuguesa de aquisição, por parte de investidores oriundos de estados-membros diversos de Portugal, de mais de determinado número de ações de emissão de companhias portuguesas. As restrições previstas nas demais normas eram, para o advogado-geral, não-discriminatórias e compatíveis com o Direito comunitário europeu. Com essas considerações, o parecer opinava pela condenação da República portuguesa por descumprimento de suas obrigações comunitárias e pela improcedência das pretensões apresentadas pela Comissão relativas às restrições não-discriminatórias existentes na legislação de Portugal, França e Bélgica. 

Apesar de tais razões, a Corte de Justiça da Comunidade Europeia não acolheu integralmente o aludido parecer. Em sentenças proferidas em 04 de junho de 2002, a Corte condenou as Repúblicas de Portugal e da França por violação do tratado de instituição da Comunidade Europeia. O caso C-503/99, instaurado contra a Bélgica, foi o único em que o pedido da Comissão foi considerado improcedente. Segundo a Corte de Justiça, os poderes concedidos ao estado no âmbito da Société Nationale de Transport par Canalisations e Distrigaz eram necessários e adequados à proteção do interesse público, representado pela preservação das reservas e do fornecimento de gás natural em eventual crise. 

Estes três julgados, com destaque para aquele proferido no processo instaurado contra a Bélgica, constituíram importantes precedentes na jurisprudência da Corte de Justiça da Comunidade Europeia. A eles, seguiram-se os processos instaurados contra a Espanha (C- 463/0041) e contra o Reino Unido (C-98/0142).  

O processo C-463/00 pretendia analisar a compatibilidade, do assim tido “sistema de prévia aprovação administrativa”, criado na Espanha, com o Direito Comunitário Europeu. Segundo a legislação espanhola as companhias com participação estatal superior a 25% do capital social cujas atividades estivessem vinculadas à consecução do interesse público, estavam sujeitas a realização de certos atos à autorização administrativa. O processo observava a aplicação destes poderes na Repsol SA, Telefónica de España SA, Telefónica Servicios Móviles SA, Corporación Bancaria de España SA, Tabacalera SA e Endesa SA. 

No caso, a Corte inicialmente considerou que inexistiam justificativas de interesse geral para a manutenção do sistema de prévia aprovação administrativa nas sociedades Tabacalera SA e Corporación Bancaria de España SA. Quanto às demais companhias, embora tenha reconhecido a presença de interesses públicos estratégicos, a Corte entendeu, com base nos julgamentos precedentes, que o procedimento previsto para exercício dos poderes estatais concedia às autoridades administrativas excessiva margem de discricionariedade, pois prescindia de critérios claros e amplamente divulgados. 

O processo C-98/01 recaía sobre a special redeemable share detida pelo Reino Unido no capital social da British Airport Authority plc. A Corte de Justiça concluiu, em seu julgado, que a atribuição ao Estado das prerrogativas representadas pela special redeemable share importava limitação ao princípio da liberdade de circulação de capitais e ao princípio da liberdade de estabelecimento. Em virtude da decisão da Corte de Justiça, a special share emitida pela British Airport Authority foi cancelada em julho de 2004. 

Outro caso de suma importância para a jurisprudência europeia é o caso C-112/0544, que procurou averiguar a compatibilidade de determinados dispositivos da legislação alemã que disciplinou a privatização da Volkswagen AG com o Direito Comunitário Europeu. Segundo os mecanismos utilizados, ficavam garantidas: (i) a limitação os direitos de voto de cada acionista a 20% do capital social da companhia; (ii) a premissa da República Alemã e o Estado da Baixa Saxônia poderem indicar, individualmente, 2 membros do Conselho da companhia; e (iii) a elevação do quórum de deliberação da Assembleia Geral da companhia para 80%. Em 2007 a Corte se manifestou, proferindo decisão desfavorável a Alemanha. 

Como foi exposto, a jurisprudência europeia construiu forte entendimento quanto a improcedência das golden shares quando confrontadas com os princípios do Direito Comunitário Europeu. Dentro do Brasil, porém, outros aspectos foram contestados nas ações judiciais relativas às ações de classe especial. 

O processo de privatização da Companhia Vale do Rio Doce foi especialmente conturbado, estando acompanhado por intensos debates, incluindo sobre a criação de ações de classe especial dentro da própria Companhia e da Sociedade adquirente. Quanto a estas discussões, duas ações judiciais podem ilustrar mais apropriadamente seu teor. Trata-se da ação popular com pedido de medida liminar ajuizada em 22 de abril de 1997 contra o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES, e da ação direta de inconstitucionalidade com pedido de liminar n. 1.597-4, proposta perante o Supremo tribunal Federal em 30 de abril de 1997. 

A ação popular, processada sob n.° 1997.39.00.12696-8 perante a 1ª Vara da Justiça Federal do Pará, pleiteava, em caráter liminar, a não realização do leilão de venda das ações da Companhia Vale do Rio Doce, e, em caráter definitivo, a anulação de todo processo de privatização da companhia. De acordo com as razões aduzidas na respectiva petição inicial, tal processo estaria eivado de vícios e ilegalidades insanáveis, dentre as quais a incompatibilidade com o direito societário brasileiro da ação de classe especial que se pretendia atribuir ao estado. 

Em sua contestação, o Banco nacional de Desenvolvimento econômico e Social - BNDES alegou que a ação de classe especial encontrava fundamento no art. 8 da Lei n.º 8.031/90 e não conflitava com a lei acionária brasileira. A medida liminar, embora inicialmente concedida, foi cassada pelo Superior Tribunal de Justiça. A sentença foi proferida pelo juízo monocrático em 2001 e decretou a extinção do processo sem julgamento do mérito, ante o entendimento de que houve perda do objeto e consequente carência de interesse processual.

A ação direta de inconstitucionalidade com pedido de liminar n.º 1.597-4 foi proposta pelo Partido dos trabalhadores – PT em conjunto o Partido Socialista Brasileiro - PSB e com o Partido Democrático Trabalhista – PDT perante o Supremo Tribunal Federal em abril de 1997. Nessa ação, questionou-se a constitucionalidade – e, indevidamente, a legalidade – de medida Provisória que atribuiu nova redação ao art. 13 da lei n.º 8.013/90 e dos arts. 39 e 43 do Decreto n.º 1.204/94. A respeito desse último dispositivo, alegou-se na petição inicial que a ação de classe especial nele prevista não se subsumia às espécies de ações tipificadas na lei acionária brasileira e, por essa razão, estaria caracterizada a violação ao princípio da legalidade inscrito no art. 5, II da Constituição Federal.

Em julgamento ao pedido liminar dessa ação, em 19 de novembro de 1997, os ministros do Supremo Tribunal Federal, reunidos em sessão plenária, decidiram por unanimidade de votos em não conhecer a pretensão relativa ao art. 43. Entenderam os ministros, em síntese, que: (i) a ação de classe especial já estava prevista no art. 8º da lei n.º 8.031/90 e, portanto, não foi introduzida no ordenamento brasileiro por normas regulamentares; (ii) nesse sentido, não houve qualquer violação ao princípio constitucional da legalidade; (iii) a alegada incompatibilidade da ação de classe especial com os preceitos da lei n.º 6.404/76 não deveria ser apreciada em ação direta de constitucionalidade. Os demais pedidos veiculados pela ação foram conhecidos e providos parcialmente no julgamento da medida liminar. O processo ainda tramita perante o Supremo tribunal Federal. 

Percebe-se aqui, comparadas as jurisprudências europeia e brasileira, que as motivações para a contestação da legalidade das golden shares tem uma fundamentação muito mais sólida dentro do contexto da Comunidade Europeia. Isto porque, enquanto existem os impedimentos impostos pelos princípios intra-comunitários na Europa, no Brasil há apenas a contestação quanto ao cerne das fundamentações legais das golden shares. Uma vez que houve uma reforma legislativa para sanar qualquer conflito a este respeito, pode considerar-se este debate como assentado no entendimento da jurisdição brasileira. 

Conquanto muitas das dissidências em relação as golden shares encontrem-se superadas, há de se considerar que existem outras opções para se alcançar os fins pretendidos por elas. É oportuno averiguar estas possibilidades para tomar conhecimento da complexidade do direito societário, assim como da riqueza de instrumentos e opções disponíveis para atender as necessidades do mercado. 


6. Alternativas a Golden share: Os acordos Parassociais 

Conforme visto anteriormente, o programa de privatizações francês contava com uma gama de instrumentos alternativos à action spécifique, entre eles, os chamados noyaux durs. Seguindo 22 a necessidade do estado de proporcionar estabilidade as empresas de setores específicos, estes “núcleos duros” consistiam em grupos de acionistas titulares de números significativos de ações, que se comprometiam por meio de acordo de acionistas a manter a titularidade dessas ações durante determinado tempo, garantindo dessa forma a estabilidade da estrutura de capital da companhia privatizada. Os acionistas tinham interesse nestes acordos pois adquiriam as ações por faixas especiais de preço, com descontos de 5% a 20% sobre o preço estipulado pela Comissão de Privatização. 

A cláusula de inalienabilidade mostrou-se válida para garantir a estabilidade da composição acionária a companhia, alcançando o objetivo pretendido pelo governo. Esta intervenção só foi possível graças a utilização do acordo de acionistas. 

Assim como na França, este mecanismo também pode ser utilizado com proveito no Brasil para o alinhamento dos interesses dentro das companhias, mesmo fora do ambiente e privatização. É possível, nos termos do artigo 118 da Lei n.º 6.404/76, ser estabelecido um acordo de acionistas sobre o poder de controle ou sobre o exercício do direito de voto, adquirindo assim, poderes similares ao usualmente atribuídos a uma golden share. Tal acordo deve conter, fundamentalmente, o acionista controlador como parte, além daquele acionista a quem se pretende conferir os direitos especiais. Por força do acordo, o controlador obriga-se a votar em determinadas matéria no sentido determinado por este outro acionista. Dentre essas matérias podem constar, por exemplo, a eleição dos administradores ou alterações estatutárias. 

Conforme coloca SALOMÃO FIHO (2002, p. 113), é viável, portanto, a obtenção dos mesmos efeitos da emissão de classe de ações com características de golden shares por meio da celebração do acordo de acionistas sobre o exercício do direito de voto e poder de controle. 


7. Conclusão 

O escopo desta pesquisa foi enquadrar a origem, o desenvolvimento e as repercussões judiciais dos mecanismos societários baseados no modelo das golden shares. Partindo da análise da origem e do contexto histórico em que surgiu o arquétipo, este estudo procurou demostrar como diferentes sistemas jurídicos utilizaram-se de seus ordenamentos para produzir soluções similares para um problema em comum: a transição da administração pública para o setor privado em situações envolvendo o interesse nacional. 23 

Sobre a golden share, as conclusões alcançadas pela doutrina quanto a sua validade jurídica e sua adequabilidade aos princípios do Direito Societário são variadas e ainda restam dúvidas acerca destes tema (como se dá, por exemplo, na conformidade do instrumento ao princípio da livre circulação das ações nas companhias abertas). Entretanto, sua adoção na esfera de empresas particulares que nunca contaram com a participação estatal demonstra a necessidade do mercado em estruturar os mecanismos de controle internos a empresa. 

A reforma legal da Lei n.º 6.404/76 através da Lei n.º 10.303, de 31 de outubro de 2001, com a inclusão do §7º ao Art. 17 da Lei das S/A, foi um marco na delimitação da importância deste instrumento para o Estado e da necessidade de superação das inseguranças relativas a sua compatibilidade com a legislação. 

Assim como a engenhosidade jurídica proporcionou aos Estados as ferramentas necessárias para alcançar suas necessidades, é uma tendência natural do mercado se utilizar dos meios a sua disposição para fazer o mesmo. A utilização da tida “engenharia jurídica” é controversa, mas é necessário que haja um consenso entre os entendimentos jurídicos acerca de determinados temas a fim de evitar que analogias indevidas sejam realizadas, prejudicando a importante função econômica desempenhada pelo direito societário. 

Uma análise mais apropriada das técnicas jurídicas envolvidas na formulação e na criação deste instrumento e de outras soluções de mercado se faz necessária, porém não cabe a este estudo, cuja premissa foi a de levantar as características gerais envolvendo o mecanismo de intervenção conhecido como Golden Share. 


8. Bibliografia 

1. ARAGÃO, Valdenir Cardoso. Aspectos da responsabilidade civil objetiva. In: Âmbito Jurídico, Rio 

2. COMPARATO, Fabio Konder. Aspectos jurídicos da macro empresa. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1970 

3. COMPARATO, Fabio Konder. O poder de controle na sociedade anônima, 3ª ed., São Paulo, ed. Forense, 1983 

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5. GRAHAM, Cosmo; PROSSER, Tony. Privatising nationalised industries: constitutional issues and new legal techniques. Modern law review, Oxford, n. 50, p. 16-51, 1987. 

6. LLOYD, Tracey; Robet, Gavin. Golden shares and European Law. European Counsel, London, n. 2, fasc. 10, pp. 37 – 40, 1998 

7. PIRIE, Madsen. Privatização,mercado de capitais e democracia – a recente experiência internacional. Sem referência ao tradutor Rio de Janeiro, Correio da Serra, 1998 

8. RODRIGUES, Nuno Cunha. Golden shares- as empresas participadas e os privilégios do Estado enquanto acionista minoritário. Coimbra: Coimbra editor, 2004, p 269; 

9. SALOMÃO FILHO, Calixto. O novo Direito Societário. 2 ed. São Paulo: Malheiros, 2002. 

10.SANDERS, Peter; HARRIS, Colin. Privatisation and popular capitalism. Buckingham: Open University Press, 1994 

11.STAJN, Rachel. Contrato de sociedade e formas societárias. São Paulo: Saraiva, 1989.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DIAS, Felipe Mattos Leal. Golden shares: implicações e alternativas no direito societário. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4699, 13 maio 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/48748. Acesso em: 19 abr. 2024.