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Sob a égide da Constituição proposta pela Comissão Afonso Arinos estaríamos enfrentando tão longa crise política?

Sob a égide da Constituição proposta pela Comissão Afonso Arinos estaríamos enfrentando tão longa crise política?

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Predições à parte, forçoso reconhecer que algumas contribuições importantes do texto abandonado seriam de grande valia para a resolução dos problemas hoje enfrentados por nossa República.

Ainda sob os olhares desconfiados advindos da caserna à recém-conquistada redemocratização do país, um decreto exarado pelo então presidente da República, José Sarney, instalou uma comissão de estudos para elaboração de um anteprojeto de Constituição. Foi a denominada Comissão Provisória de Estudos Constitucionais, criada por meio do Decreto 91.450, de 18 de julho de 1985, que acabou amplamente conhecida como Comissão Afonso Arinos, em razão da presidência exercida pelo jurista, ex-deputado federal e ex-senador Afonso Arinos de Melo Franco.

Os cinquenta integrantes do colegiado, dentre estudiosos e personalidades das mais diversas áreas da sociedade, como os juristas Miguel Reale, Evaristo de Moraes Filho e Sepúlveda Pertence, o empresário Antonio Ermírio de Moraes, o antropólogo e sociólogo Gilberto Freyre, o escritor Jorge Amado, o cientista político Bolívar Lamounier, dentre outros nomes de grande relevo, concluíram a elaboração do anteprojeto da Constituição meses antes da Assembleia Nacional Constituinte iniciar os seus trabalhos.

O texto final do anteprojeto foi publicado no Diário Oficial da União em 26 de setembro de 1986 (Suplemento Especial ao nº 185) [1], porém nunca chegou a ser encaminhado oficialmente ao Congresso Nacional por José Sarney, que em entrevista concedida à Agência Senado alegou que tomou a decisão para evitar uma “crise institucional”. O hoje senador Cristovam Buarque, à época membro da aludida comissão, em entrevista à mesma Agência Senado, mencionou que havia o entendimento no Congresso de que o texto seria uma intromissão do Executivo nos trabalhos dos constituintes.

Entretanto, passados quase trinta anos de sua elaboração, quais contribuições o aludido anteprojeto teria nos agraciado caso fosse aceito e promulgado pela Assembleia Nacional Constituinte? E, assim sendo, qual seria a extensão da atual crise política que hoje vivemos?

Predições à parte, forçoso reconhecer que algumas contribuições importantes do texto – incluindo-se aqui as que por ventura serviram de inspiração aos nossos constituintes - seriam de grande valia para a resolução dos problemas hoje enfrentados por nossa República.

Dentre estas valiosas contribuições, oportuno mencionar aqui a figura do denominado “Presidente do Conselho”, esculpido no artigo 232 do referido texto, cuja definição mais didática seria a do cargo de primeiro-ministro, ante suas similaridades, porém com sucintas particularidades, como a possibilidade do cargo ser ocupado por pessoa não necessariamente integrante do parlamento, in casu, do Congresso Nacional.

Dentre as atribuições a ele previstas - exercidas exclusivamente pelo Presidente da República em nossa Constituição vigente - poderíamos destacar a competência para gerir toda a administração federal, expedir decretos e regulamentos para a fiel execução das leis, dispor sobre a estrutura e o funcionamento da Administração Federal, propor vetos ou pedidos de reconsideração aos projetos de lei aprovados pelo Congresso Nacional, dentre outras, esmiuçadas no artigo 239 do anteprojeto, bem como apresentar o programa de governo como fundamento de sua aprovação perante a Câmara dos Deputados, conforme disciplina o artigo 238.

Ou seja, caberia ao titular do cargo de Presidente do Conselho, em breve síntese, a chefia do Poder Executivo sob os auspícios do Presidente da República, que de acordo com a previsão constitucional passaria a exercer um cargo mais próximo do chefe de Estado do parlamentarismo.

Não bastasse, conforme já mencionado alhures, a indicação do Presidente do Conselho seria realizada pelo Presidente da República e encaminhada à Câmara dos Deputados (os representantes do povo), a quem caberia aprovar ou rejeitar a indicação, garantindo assim a plena governabilidade do cargo em razão da estabilidade política que tais mecanismos procuraram estabelecer.

Prova disso é que, em caso de uma segunda recusa à indicação da Presidência da República, o Presidente do Conselho seria indicado pela maioria absoluta dos deputados ou, na ausência de definição destes, livremente pelo Presidente da República, exaltando aí a teoria dos freios e contra pesos (checks and balances) de Montesquieu.

Não obstante, havia ainda no mencionado anteprojeto constitucional a possibilidade de exoneração do Presidente do Conselho, por determinação da Presidência da República, devidamente motivada, ou por maioria absoluta da Câmara dos Deputados, nas situações expostas no artigo 233, §1º, permitindo assim a rápida mudança nos rumos governamentais quando enfraquecida a coalizão política.

Acrescente-se aqui, ainda, a possibilidade de dissolução da Câmara dos Deputados com a convocação de novas eleições nos termos do artigo 236, mecanismo recorrente nos sistemas parlamentaristas.

Ou seja, diante de um cenário de grave crise política, a Constituição proposta pela Comissão Afonso Arinos trazia em seu bojo alguns instrumentos que possibilitariam uma rápida resposta à opinião pública, evitando assim um duradouro embate político e amenizando sobremaneira os efeitos econômicos que crises desta natureza tendem a propiciar a qualquer democracia.

E desta feita, sem o intuito de semear aqui qualquer discórdia ao texto promulgado pela Assembléia Nacional Constituinte, que resultou em nossa Constituição cidadã e solidificou nossas raízes democráticas, mas tão somente por amor aos ensinamentos que a história nos permite absorver e com a ambição de contribuir para o debate, não há dúvidas de que tais instrumentos constitucionais, se vigentes hoje, amenizariam a extensão e os efeitos de nossa atual crise política, se é que estaríamos diante de tal crise.

No momento em que se discute a possibilidade de convocação de eleições gerais, em descompasso com os atuais ditames vigentes em nossa Constituição, tal obra pretérita de forte lastro científico não deveria ser desprezada e permanecer relegada ao ostracismo quando pode e deve servir de inspiração às ações futuras de nossos governantes em um momento tão delicado pelo qual atravessamos.

Sem maiores delongas, sem qualquer pretensão de esgotar a matéria, encerra-se aqui o presente texto, com as belas palavras do saudoso Tancredo Neves, reproduzidas na publicação do anteprojeto: “A lei deve ser a organização social da Liberdade”.


Nota

[1] A íntegra do anteprojeto publicado poderá ser visualizada no endereço eletrônico http://www.senado.gov.br/publicacoes/anais/constituinte/AfonsoArinos.pdf


Autor

  • Daniel Carvalho

    Advogado especializado em Direito Público e Eleitoral. Conselheiro Estadual de Trânsito no Estado de São Paulo na gestão 2012/14. Ampla experiência em Administração Pública, especialmente nas áreas de Transportes e Trânsito. Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas - PUCCAMP, Pós-graduado em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC Minas.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARVALHO, Daniel. Sob a égide da Constituição proposta pela Comissão Afonso Arinos estaríamos enfrentando tão longa crise política?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4716, 30 maio 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/49367. Acesso em: 18 abr. 2024.