Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/50550
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

A universalização do ensino superior brasileiro:direito de todos ou privilégio de alguns?

A universalização do ensino superior brasileiro:direito de todos ou privilégio de alguns?

Publicado em . Elaborado em .

As leis de reserva de vagas nas universidades públicas brasileiras são ainda fortemente criticadas. Sob a ótica jurídica discute-se a sua constitucionalidade pela "aparente" violação ao princípio da isonomia.

Resumo: Neste artigo, pretende-se estudar as leis de reserva de vagas nas universidades públicas brasileiras.  A reserva com base na etnia dos indivíduos tem ocasionado discussões em diversos âmbitos: desde o da massa social ao dos acadêmicos do Direito. Tem sido fortemente discutida a constitucionalidade desta política educativa do governo e aqueles contrários as leis consideram que seriam  discriminatórias porque lesam o princípio constitucional de isonomia.  Do outro lado, estão aqueles que aprovam e defendem esse sistema afirmando que é dever do Estado proporcionar os meios necessários para combater as desigualdades sociais que algumas classes historicamente estigmatizadas têm sofrido. O suporte teórico jurídico para esta pesquisa é baseado no trabalho dos doutrinadores: José Afonso da Silva, Gomes Canotilho, Luis A. Araújo e Vidal Nunes Júnior. Foi feita uma pesquisa bibliográfica das teorias educativas  que questionam  a função social da escola e, através do conceito de “capital cultural” é possível compreender a brecha intelectual que existiria na formação sociocultural dos indivíduos. A  política compensatória do governo tem como objetivo principal beneficiar àqueles em visível desvantagem socioeconômica  e,  para  que possa ser compreendida a justificativa social das leis de cotas,  faremos referência à teoria do “reprodutivismo escolar” defendida pelos sociólogos  franceses Pierre Bourdieu e Jean Claude Passeron.

Palavras-chave: Capital cultural - Reprodutivismo – Isonomia


1- INTRODUÇÃO

Uma ação civil pública promovida pelo Ministério Público de Fortaleza, Ceará no 15 de setembro de 1999, marcou o início de uma nova era para o ensino superior público brasileiro.  A 6º Vara Federal determinou que a Universidade do Estado do Ceará “em nome do princípio da isonomia” reserva-se o 50% das vagas de todos os seus cursos para estudantes provenientes do ensino público.  Esta Ação Civil Pública serviu de base para as posteriores ações afirmativas do governo federal que promovem uma mudança social através das leis de reserva de vagas.

No Estado de Rio de Janeiro foram criadas as leis ordinárias nº 3524/00, nº 3708/01 e nº 4151/03 que reservam uma percentagem das vagas nas universidades públicas desse estado para os setores sociais mais vulneráveis.  Nestas leis se explicita quem poderá aceder a este benefício e quais os requisitos para preencher estas vagas.

Desde então, as universidades públicas federais e estaduais  mudaram as regras do jogo e o ingresso a tão ansiado nível superior já não seria tão simples.  Passar na prova do vestibular até então era algo complexo e requeria bom preparo geral em todas as áreas do conhecimento, mais com a reserva de um 45% das vagas o funil restringiu as chances deacesso universal ao ensino superior público.

Posteriormente, em agosto de 2012 foi sancionada a Lei nº 12.711 denominada “Lei de Cotas” que dispõe a reserva de 50% das vagas nas Instituições de Ensino Superior vinculadas ao MEC e também nas instituições federais de ensino técnico de nível médio. O prazo para a aplicação integral da lei é de quatro anos e incluiu um mínimo de 25% anual. Desta forma cada ano nos vestibulares (desde 2013) deverão ser reservadas gradativa e progressivamente um percentual de vagas: 12,5% em 2013; 25% em 2014; 35,5% em 2015, e 50% em 2016. Assim, em 2016, todas as instituições abrangidas na norma terão reservadas o 50% das suas vagas para as cotas.


2- A POLÊMICA NOS CRITÉRIOS DE SELEÇÃO

O critério de distribuição das vagas tem três fundamentos: a)origem em escola pública, b)Renda e c)Critério étnico-racial.

Todos os alunos que concorram a uma vaga no ensino superior público deverão ter cursado o ensino médio na rede pública e, no caso das vagas para ensino técnico público, os alunos deverão ser oriundos do ensino fundamental das escolas técnicas de nível médio. Assim, este primeiro critério de distribuição é excludente de seleção, pois, sem ser oriundo da rede pública, o candidato não poderá sequer pensar em participar da reserva de  vagas.

O segundo critério faz referência à renda. A lei estabeleceu também que a metade do total de vagas será reservada aos alunos com renda familiar per capita igual ou inferior a 1,5 SMN e a outra metade das vagas será preenchida por estudantes com renda superior familiar per capita a 1,5%  SMN. Desta forma vemos que o legislador se preocupou também em incluir na seleção o critério socio econômico pensando nas abismais diferenças existentes neste âmbito dentre o povo brasileiro.

O terceiro critério, e o que suscita mais polêmica desde a implementação desta modalidade de ingresso, é o “étnico-racial”.  A lei 12.711 estabelece que as cotas raciais  serão proporcionais à composição étnico-raciais de cada estado verificada pelos dados censários do IBGE e deverá incidir sobre a totalidade das vagas reservadas (50%). A proporção étnico-racial será dividida entre candidatos “autodeclarados” pretos, pardos ou indígenas do estado onde está situado o campus da universidade, centro ou instituto do federal tendo como suporte os dados estatísticos do IBGE.

Toda lei é criada com um objetivo e sempre visa garantir o direito de alguém, portanto, consideramos essencial compreender o porquê destas recentes disposições de ingresso à faculdade para não prejulgar antecipadamente os seus ideólogos e beneficiários.

O Estado tem por objetivo fundamental o bem comum dos indivíduos que o compõem e deve promover a criação de políticas de governo eficientes para atingí-lo. O ordenamento jurídico de cada Estado funciona como o alicerce que sustenta estas políticas, mais é preciso ter muita cautela para criar e aplicar as leis já que as vezes corremos o risco de atentar contra princípios fundamentais como o da “isonomia”. O sistema de cotas tem atraído a atenção da média desde a sua criação, é muito polêmico e divide a opinião pública em dois grandes grupos: os a favor e os em contra.  Não é tão discutida a reserva de vagas para as os candidatos oriundos do ensino público nem com base no critério socio-econômico;  o que realmente está sendo alvo das atenções é a reserva de vagas com base no critério étnico-racial dos indivíduos.


3- AÇÕES AFIRMATIVAS POLÍTICAS COMPENSATÓRIAS DO ESTADO

É necessário compreender o conceito de “ação afirmativa” para depois poder analisar e discutir a constitucionalidade destas leis. Uma ação afirmativa é uma política social compensatória, são intervenções do Estado que garantem ou sustentam os direitos sociais dos indivíduos que a ele pertencem. As políticas de ação afirmativa são fundamentais já que funcionam como um mecanismo ético-pedagógico dos diferentes grupos sociais para o respeito às diversidades de qualquer espécie: étnicas, culturais, de classe, de gênero, de orientação sexual ou etária.

Em todo Estado e em todo grupo social estabelecido, sempre têm existido diferenças. Em toda sociedade e em todo grupo social é possível distinguir subgrupos. Os seres humanos procuram seus iguais, aqueles com quem compartilha alguma coisa em comum,  seja a etnia, a classe social, a ideologia, a profissão, a religião, hobbies, profissão, etc.  Portanto, a interação social com os outros subgrupos não é tão natural nem tão fluida como deveria ser, e é então que surgem as incompreensões, a intolerância e a discriminação.   É difícil se situar no lugar do outro, compreendê-lo, aceitá-lo como ele é, e muitas vezes, a discriminação caminha de mãos dadas com a ignorância.  As políticas compensatórias particularistas atendem às diferenças e percebem estes grupos de indivíduos unidos pela etnia, deficiências, pela religião,  etc.,  percebendo-os como sujeitos concretos.  De certa forma, intentam superar a concepção filosófica do século XVIII que concebia ao ser humano como uma unidade homogênea, como iguais, em especial após a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789.

Portanto, a ação afirmativa tem por objetivo ajudar a superar essas diferenças e promover a igualdade de direitos entre os diferentes grupos que conformam  uma sociedade. A política estatal utiliza estas ações afirmativas para concretizar através do seu ordenamento jurídico uma igualdade mais real e mais concreta.  A igualdade deverá deixar de ser procurada aplicando as mesmas normas para todos os indivíduos do Estado assumindo que todos eles encontram-se na mesma situação. Esta igualdade deverá ser materializada através de medidas específicas que atendam as situações particulares de minorias e de aqueles grupos em visível desvantagem ou vulnerabilidade.

Segundo Ellis Cashmore, as ações afirmativas são:

[...] medidas temporárias e especiais, tomadas ou determinadas pelo Estado,de forma compulsória ou espontânea, com o propósito específico de eliminaras desigualdades que foram acumuladas no decorrer da história da sociedade.Estas medidas têm como principais beneficiários os membros dos grupos queenfrentaram preconceitos. (CASHMORE, 2000, p.31)

As políticas de ação afirmativa podem ser aplicadas de diversas formas, desde ações focadas aos problemas raciais, até as políticas de reserva de vagas para minorias em desigualdade de condições ou historicamente estigmatizadas.  De certa forma, estas políticas servirão de base para propiciar mudanças significativas naqueles setores da população que tem uma história de desigualdade.  Um claro exemplo disto é o dos brasileiros descendentes de negros e índios escravos.  As estatísticas revelam que a exploração humana está diretamente relacionada ao nível educativo do indivíduo.

O segundo governo Lula (2006-2010) incorporou uma série de ações afirmativas através do PDE, programa de desenvolvimento da educação.  Uma das ações deste programa é o PROUNI,  programa destinado exclusivamente ao ensino universitário que promove o acesso das minorias ao ensino superior público, já seja público ou particular.  Nas universidades particulares existem bolsas de estudo parciais e totais para estudantes que não possuem recursos econômicos suficientes para custear um curso superior. As leis estaduais de reserva de vagas também formam parte deste programa do governo, já que o objetivo primordial é reduzir a enorme brecha social que existe no país através da educação. Tudo parece muito simples e claro, mas o debate surge com o questionamento de um dos princípios fundamentais explicitados na CF/88, “o princípio da isonomia ou igualdade”.  Portanto, faz-se necessário compreender primeiro o conceito de princípio constitucional e a fundamentação teórica do princípio da isonomia.

   O  doutrinador Gomes Canotilho considera que os princípios constitucionais são basicamente de dois tipos: políticos e jurídicos.  Os primeiros são aquelas decisões políticas fundamentais que conformam normas do sistema constitucional do país que servem para regular as relações específicas da vida social. São os princípios fundamentais explicitados nos artigos 1º ao 4º da CF/88.

José Afonso da Silva define os princípios jurídico-constitucionais como:

[...]princípios constitucionais gerais informadores da ordem jurídica nacional.  Decorrem de certas normas constitucionais e, não raro,constituem desdobramentos dos fundamentais, como princípio da supremacia da constituição, o princípio da isonomia, o princípio daautonomia individual, o da proteção social dos trabalhadores (...) quefiguram no art. 5º. (DA SILVA, 1992, p.86)

David Araujo e Nunes Júnior consideram que: “a constituição instituiu o princípio da igualdade formal apontando que o legislador e o aplicador da lei devem dispensar tratamento igualitário a todos os indivíduos sem distinção de qualquer natureza” (ARAUJO E NUNES, 2002, p.91).  É importante compreender o que significa ser tratado por igual e como se faz para aplicar este princípio de forma tal de garantir  direitos a alguns sem lesar os direitos dos demais. Da Silva considera que o direito de igualdade é o alicerce fundamental da democracia.  Um regime democrático que não atende à defesa deste princípio estaria de certa forma compactuando com um regime liberal que admite privilégios e distinções para a classe burguesa que é detentora do poder econômico.  Segundo Da Silva, nossa CF/88 no art. 5º caput explicita este princípio dizendo que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza.  Este princípio é reforçado com normas que procuram garantir este direito buscando um tratamento igualitário aos desiguais mediante direitos sociais substanciais. Bandeira de Mello coincide em que: “[...]a função da lei consiste exatamente em discriminar situações, pois, só dessa forma procedendo é que pode vir a regulamentá-las” (BANDEIRADE MELLO, 1999)

   A noção de igualdade como direito se remonta a um fato histórico que foi o ponto de partida para a luta pelos direitos sociais: a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789.  A sociedade anterior a 1789 sustenta a sua ideologia dominante na convicção de que cada grupo social está predestinado a exercer uma função, uma tarefa determinada dentro da maquinaria social.

A Revolução Francesa mostrou aos indivíduos um novo horizonte que propiciou a luta das classes oprimidas pelos seus direitos.  O art.1º da declaração  afirma que os homens nascem e são livres e iguais em direitos. Porém há duas posições bem divergentes ao respeito. Uma das posições coincide com a afirmação do art.1º coincidindo em que efetivamente todos os indivíduos são iguais em direitos.  Os adeptos desta posição são os “idealistas”, que consideram que não existem diferencas entre as pessoas já para estes há um igualitarismo absoluto entre elas. Do outro lado, estão aqueles “realistas”que afirmam que a  desigualdade é moeda corrente no mundo e que os seres humanos desde que nascem são desiguais.  Para eles a igualdade seria só um conceito virtual, um nome sem nenhuma significação no mundo real.

Segundo Da Silva, o mandamento explicitado na Constituição se dirige exclusivamente ao legislador.  Portanto, se esta trata sobre a igualdade, a lei obrigará a executá-la com fidelidade  a este princípio.

O princípio não pode ser entendido em sentido individualista, que não leve em conta as diferenças entre grupos. Quando se diz que o legislador não pode distinguir, isso não significa que a lei deva tratar todos abstratamente iguais, pois o  tratamento igual esclarece Petzold não se dirige a pessoas integralmente iguais entre si, mas àquelas que são iguais sob os aspectos tomados em consideração pela norma, o que implica que os “iguais”podem diferir totalmente sob outros aspectos ignorados ou considerados como irrelevantes pelo legislador. (DA SILVA, 1992, p.197)

A  polêmica da lei de cotas radica justamente neste aspecto jurídico-social. O alvo é o acesso à educação já que é dever do Estado proporcionar educação para todos os seus membros (art.205 da CF/88),  o ensino deverá ser ministrado com base no princípio de igualdade de condições para o acesso e permanência na escola (art.206, I da CF/88).


4- FUNÇÃO SOCIAL DA ESCOLA – PANACEIA VS. REPRODUTIVISMO PERVERSO

A função social da educação tem sido fortemente questionada  por teorias críticas nos últimos 30 anos. A sociedade tem acreditado cegamente na escola como se esta fosse à panacéia para resolver toda a problemática social.

Dois sociólogos franceses na década dos anos 70 foram pioneiros na elaboração de teorias educativas que mudaram a visão tradicional da escola. As teorias “reprodutivistas” visualizam a escola como mera reprodutora das classes sociais. Baudelot e Establet e Bourdieu Passeron elaboraram  teorias que rapidamente se espalharam pelo mundo.  Estas denunciavam o reprodutivismo de classes existentes nas escolas e descreveram casos isolados de alunos de contexto sócio-econômico desfavorável que através do sistema escolar  e das suas qualidades pessoais conseguiram ascender socialmente. São casos muito raros e estes indivíduos são chamados pelos experts da sociologia como “mutantes” ou também “miraculados”. O doutrinador e educador francês Georges Snyders em seu livro “Escola, classe e luta de classes”  explica que nem todo é um mar de rosas para estes indivíduos já que na realidade:

A classe dominante conserva ciosamente nas suas mãos o controle desta seleção, que não faz perigar de forma alguma o conjunto das hierarquias estabelecidas.  Precisamente por se tratar de “casos”, esses poucos vão ser absorvidos pelo meio ambiente, moderlar-se segundo regras instituídas, arriscam-se mesmo a ficar fortemente algemados a um sistema que lhes permitiu, a eles, vencer, “sair-se bem”.  Estas probabilidades de ascensão social denunciam-nas Bourdieu-Passeron como meio de tornar verossímil a ideologia de uma escola que a todos oferece iguais oportunidades; um meio de mascarar o peso da origem social, e finalmente de negar a existência de classes.  Os “miraculados”constituem a caução do sistema e apesar das aparências lisonjeiras, não passam na realidade de reféns... “a organização e o funcionamento do sistema escolar retraduzem continuamente e segundo códigos múltiplos as desigualdades de nível social por desigualdades de nível escolar. (SNYDERS, 1997, p.21-22)

Segundo Pierre Bourdieu, o indivíduo adquire a cultura através de duas formas: mediante a “educação familiar”que inclui as práticas de socialização da primeira infância  (são espontâneas, implícitas, incluem hábitos, valores, princípios), e mediante a “a ação da escola”, que seria uma continuidade da primeira educação recebida no seio familiar.  Este autor introduz o conceito de “capital cultural” na sua teoria educativa para fundamentar a importância vital que possui a família como agente primário na socialização do indivíduo.

Snyders coincide com Bourdieu neste ponto e afirma que:

A ação da escola exerce-se sobre crianças cujo modo de vida, educação familiar são extremadamente diversos: a cultura das classes privilegiadas aproxima-se da cultura escolar, os seus hábitos assemelham-se aos hábitos e aos ritos escolares [...] Para os outros, trata-se de “uma conquista muito cara” tem de consegui-la laboriosamente, através de uma espécie de conversão imensamente difícil [...] é um empreendimento de adaptação a um grupo social. (SNYDERS, 1997, p.23)

As teorias reprodutivistas castigaram duramente a função social da escola e deixaram um sabor amargo. De certa forma começou a reinar uma espécie de pessimismo entre a comunidade educativa já que segundo esta teoria “nada poderia ser feito”, portanto,  a classe social de origem do indivíduo determinaria seu futuro, seu êxito ou o seu fracasso escolar. A escola estaria ao serviço da classe dominante perpetuando a estrutura das relações de classe e legitimando as diferenças, a escola seria uma perversa máquina que consegue dissimular a aparente função social que desempenha.

Apesar destas teorias educativas estarem ainda vigentes em grande parte do mundo, a visão que predomina é positiva e esperançosa. Se não fosse assim, muitos países socialistas não teriam aplicado reformas educativas profundas que mudaram significativamente a realidade social.

Após a segunda guerra mundial a antiga U.R.S.S. e Hungria depois de analisar as taxas de disparidades sociais, decidiram implantar  ações compensatórias no ensino superior. Em  1950 uma portaria ministerial polaca impôs às universidades uma proporção mínima de reserva de 60% das vagas para estudantes provenientes de famílias operarias e camponesas. As mesmas medidas foram implementadas por outros países e obtiveram resultados significativos em 30 anos. Snyders explica que esta medida compensatória implantada em países do leste europeu obteve resultados positivos e afirma que entre 1931 e 1963 na Hungria a taxa de disparidade entre a classe superior-operários baixou de 17 para 5. Desta forma podemos apreciar que as primeiras ações afirmativas implementadas há quase um século atrás tiveram resultados esperançosos.


5- CRITÉRIO - ÉTNICO-RACIAL + CRITÉRIO SOCIAL

O conteúdo da lei federal nº 12.711 de 2012 em seus artigos 3º, 4º e 5º  faz referencia a três itens fundamentais que são os critérios de seleção e distribuição das vagas: a origem em escola pública, a Renda e o Critério étnico-racial.

Como mencionamos anteriormente, a grande crítica desta ação afirmativa através da lei de cotas radica no critério étnico-racial e a forma em que este opera na prática.

 Os dois primeiros critérios de seleção podem ser efetivamente comprovados pelos candidatos através de documentos:  histórico escolar fornecido pela instuição de ensino médio de egresso e no caso do critério “renda” mediante comprovantes dos ingressos familiares ou da declaração anual de IRPF. Já o terceiro critério não tem esta modalidade probatória pois, a modalidade probatória exigida na lei é uma simples documento fornecido antes da prova onde o candidato se autodeclarará negro ou integrante de uma minoria étnica.

Caberá então, às universidades e num segundo momento fiscalizar este procedimento para evitar possíveis fraudes.

Surge aqui então o problema central da discussão que tem sido fonte de inspiração da média para divulgar matérias a este respeito.

Na edição 2011 da Revista Veja de junho de 2007 foi publicada uma matéria sobre este assunto. Dois irmãos, gêmeos univitelinos, filhos de pai negro e mãe branca se inscreveram para prestar vestibular na Universidade de Brasília.  Porem, após analisar cada requerimento com fotografia anexa, um foi classificado como preto na subcategoria dos pardos e o outro como branco.  Esta antagônica classificação demonstra a dificuldade que representa tentar diferenciar as pessoas pela tonalidade da pele ou pelos rasgos fisionômicos.

A miscigenação étnica no país dificulta ainda mais este processo de classificação nada científico que está sendo feito nas universidades do país.  Para que a categorização destes requerentes tivesse rigor científico deveriam submeter a cada candidato autodeclarado a uma análise de DNA  para saber qual é a etnia predominante em seu mapa genético.  Porém, ao ser este  tipo de exame muito oneroso e, ao ter cada universidade autonomia suficiente[2] para instrumentar as medidas de combate a fraude no processo de seleção; erros e injustiças deste tipo poderão ocorrer.

O termo “raça” é utilizado popularmente para classificar aos indivíduos de acordo a características físicas como: cor da pele, rasgos faciais, tipo de cabelo, cor dos olhos.  Esta designação é cientificamente incorreta já que todas as raças humanas pertencem a uma única espécie (homo sapiens sapiens) e somente possuem pequenas variações genéticas de menos de 1%.  Os investigadores científicos dividiram a espécie humana em três grandes troncos étnicos: negroide, ameríndio e caucasiano e estudos genéticos demonstraram que estes  se misturaram ao longo do tempo e, portanto não existiriam etnias puras.  As variações seriam fenotípicas,  quer dizer adaptações genéticas dos indivíduos de acordo com o ambiente onde habitam.  A matéria publicada na revista Veja realizou um estúdio genético de pessoas famosas e públicas e os resultados publicados no artigo utilizando gráficos surpreendem até os leitores mais céticos.

Com referencia  a este critério de classificação utilizado pelas universidades é importante destacar que a UNICAMP  no Estado de São Paulo, foi pioneira  muito antes da criação da atual Lei 12.711 de 2012 quando ainda não era tido em consideração o critério de seleção “renda”, inovou criando um critério de seleção diferente ao o previsto no sistema de cotas nesse momento. O programa PAAIS instituido em 2004 foi o primeiro programa de ação afirmativa sem cotas numa universidade brasileira. Este programa de inclusão social foi desenhado a partir de um estudo feito pela comissão de vestibular desta universidade, a COMVEST.  Foi comprovado que os alunos universitários provenientes do ensino médio público melhoravam seu desempenho acadêmico sensivelmente em relação aos resultados da prova de ingresso.  A UNICAMP era contrária a lei de cotas com base em critérios étnico-raciais por considerar esta política compensatória ineficiente para o combate à discriminação racial.  Portanto, decidiram que  o aluno proveniente do ensino público teria um bônus de  pontos na prova do vestibular. Aqueles que cumprissem o primeiro requisito e se autodeclarassem negros, pardos, pretos ou índios, teriam um bônus extrasomado ao primeiro.   De esta forma, a UNICAMP está aplicando uma política mais focada no social e não tanto no racial.

A UNICAMP no jornal Folha de São Paulo no ano 2006 divulgou resultados satisfatórios.  Em 31 dos 56 cursos oferecidos, os alunos beneficiados pelo PAAIS após um ano na universidade, mostraram melhor rendimento acadêmico que os demais estudantes.

Está previsto no art.4º da lei ordinária nº 4151/03  que o Estado deve prover os recursos financeiros suficientes para a implementação do programa de cotas assim como também para garantir a permanência dos alunos beneficiados dentro do sistema universitário. A permanência do aluno na escola também é previsto no art.206, I da CF/88. Portanto, as universidades podem prover bolsas de permanência estudantil:  bolsas de monitoria, assistência estudantil,  auxílio-transporte e auxílio- moradia para alunos  em situação de vulnerabilidade socioeconômica e para estudantes indígenas e quilombolas.

Seria muito ingênuo acreditar que aquele aluno carente que não tem recursos paracustear uma faculdade poderia permanecer dentro do sistema só com passar na prova do vestibular. É necessário contar com recursos suficientes para custear alimentação, moradia, despesas com transporte, material escolar, livros, etc.  Um curso universitário numa faculdade pública não é 100% gratuito, as despesas anteriormente citadas formão parte do investimento que é feito no momento em que o indivíduo começa seu curso superior.  Todos estes itens adicionam um custo extra ao curso universitário e deverão são custeados pela família do aluno que na maioria dos casos não possui os meios econômicos necessários para a permanência do aluno no sistema.


6- CONCLUSÃO

Depois de analisar brevemente o conteúdo da lei de cotas em conjunto com a doutrina sociológica, educacional e jurídica, é possível concluir que são estas ações afirmativas do governo são meios totalmente válidos para propiciar mudanças sociais.  Estamos frente a uma discriminação positiva amparada constitucionalmente onde o Estado está proporcionando igualdade de oportunidades aos desiguais.  Porém, consideramos que seria necessário aplicar outras ações conjuntas na área educativa para lograr resultados mais abrangentes, investindo na educação inicial do  indivíduo para tentar equiparar as diferenças de capital cultural de origem. A educação é um dos direitos sociais e reclama do Estado um papel prestacional visando diminuir as desigualdades. Seria importante também que as universidades repensassem a modalidade comprobatória da classificação étnico-racial dos candidatos. As categorias utilizadas para diferenciar aos candidatos devem ser consideradas como uma forma mais digna e justa de competição.  Os iguais competiram por uma vaga com seus pares para garantir a igualdade de condições na disputa.

Reserva de vagas é sinônimo de oportunidade.  A oportunidade é só o começo da caminhada, e o destino depende da vontade e da garra de cada indivíduo. Educação é sinônimo de mudança e transformação, portanto todo Estado que investe na educação de seus membros terá câmbios significativos que redundarão em benefícios socioeconômicos para todos.


Abstract:In this article we would like to study the vacancies reservation law for brasilian public universities. The vacancies reservation based in the ethnicity of the individuals had caused arguments in different spheres: from social mass to Law academic mass. The constitutionality of this government educational policy has been strongly criticized and those against these laws considered them discriminatory because they would harm the constitutional principle of equality. On the other hand, there are those that support and defend this system; they agreed that is the estate duty to give the necessary means to fight social inequalities that some historically stigmatized classes had suffered. The theoretical and law support of this research is based in the work of the researchers: José Afonso da Silva, Gomes Canotilho, Luis A. Araújo e Vidal Nunes Júnior. It was done a bibliographic research of the educational theories that question the social function of the school, and, through the “cultural capital” concept it is possible to understand the intellectual gap between the sociocultural formation of the individuals.  The compensatory governmental policy  has as main object to benefit those in visible  socio economic disadvantage and, to understand and justify the social justification of the vacancies reservation law we will refer to the “ school reproductivism” theory defended by the French sociologists Pierre Bourdieu and Jean Claude Passeron.

Keywords: Cultural capital - Reproductivism – Equality.


REFERÊNCIAS

BOURDIEU Y  PASSERON. La reproducción, Ed. Cátedra, Barcelona, 1972

SILVA, José Afonso da, Curso de Direito Constitucional Positivo, 9 ed. São Paulo, Malheiros Editores, 1992

MARCONI, Marina de Andrade, Técnicas de Pesquisa, 2 ed. São Paulo, Editora Atlas, 1990

CANOTILHO, J. J. Gomes, Direito constitucional e teoria da constituição, 4 ed. São Paulo,Livraria Almedina,  2000.

CASHMORE, Ellis, Dicionário das relações étnicas e raciais, São Paulo, Editora Summus,2000

CRAIDE, Sabrina, Universidades públicas enfrentam batalhas jurídicas sobre sistema decotas, Empresa Brasil de Comunicação, 28 de janeiro de 2008 Disponível em: <www.agenciabrasil.gov.br>

ARAUJO E NUNES JÚNIOR, Luiz Alberto David e Vidal Serrano, Curso de Direito Constitucional, São Paulo, Ed.Saraiva, 2002

SAKABI, Rosana, Raças não existem, Revista Veja, No 2011, 6 de Junho de 2007. 

SNYDERS, Georges, Escola, classe e luta de classes, São Paulo, Moraes Editores, 1977

TESSLER, Leandro, Cota não é sinônimo de ação afirmativa, Jornal Folha de São Paulo, 16 de agosto de 2006.  Disponível em:http://www.comvest.unicamp.br/paais/artigo4.pdf

VADE MECUM, Constituição Federal de 1988, São Paulo, Ed. Saraiva, 2015.

www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/12722.htm-L12711. Consulta em 22 de maio de 2015.

www.permanencia.mec.gov.br-Programa de Bolsa Permanência. Consulta em 23 de maio de 2015.

www.portal.mec.gov.br/cotas/perguntas-frequentes.html - ::Lei de Cotas para o Ensino Superior:: . Consulta em 20 de maio de 2015.

/


[2]As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial[...] (art.207 caput, da CF/88)


Autor


Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pela autora. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi.