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O Direito Intertemporal e a Lei nº 9.656/98

O Direito Intertemporal e a Lei nº 9.656/98

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Tormentosa questão que aflige os juristas de todo o mundo diz respeito à interpretação e à aplicação das normas de Direito Intertemporal (1). Cada Estado, portanto, adota um determinado conjunto de regras e princípios, sobrevalorizando ora o aperfeiçoamento das relações sociais, ora a segurança jurídica.

Esta obra tem por objetivo apresentar as correntes de entendimento que se formaram no Brasil em torno do princípio da irretroatividade das leis, basilar do Direito Intertemporal. Ao final, declara-se o posicionamento mais afinado com nosso Direito Positivo, sempre tendo em mente a seguinte questão: os atuais contratos de planos privados de assistência à saúde (2) firmados antes da Lei nº 9656, de 03 de junho de 1998, são regidos por ela?

É pacífico o entendimento segundo o qual os efeitos pretéritos dos contratos de longa duração (3) não são afetados por lei nova, assim como são inatingíveis os efeitos dos contratos de execução imediata (4) já consumados. Contudo, no que tange aos efeitos futuros a serem produzidos por aqueles pactos duradouros, duas correntes antagônicas se formaram e permanecem há séculos provocando embates a cada mudança na legislação.

O jurista Pinto Ferreira (5) afirma que "as leis novas não regulam fatos passados salvo disposição expressa". A irretroatividade da lei, portanto, constitui princípio e regra. "Excepcionalmente se admite a retroatividade ou a retroeficácia da lei, mas como exceção, nos casos de interesse da ordem pública."

No mesmo sentido, mas ressaltando que a questão é conflituosa, assim posicionou-se Nelson Nery Júnior (6):

Os dispositivos legais do Código [de Proteção e Defesa do Consumidor] se aplicam a esses contratos de execução continuada ou diferida, celebrados antes da entrada em vigor do CDC. Somente os efeitos pretéritos, verificados com base na lei então vigente, não são alcançados pela lei nova. (7)

A jurisprudência é discrepante quanto a este ponto. Há decisões entendendo, como nós, que o CDC se aplica aos contratos celebrados anteriormente à entrada em vigor da lei, por prevalecerem as normas de ordem pública e social (CDC, art. 1º) sobre o direito adquirido (8), enquanto há outras decisões em sentido contrário, aplicando o CDC somente aos contratos celebrados depois de 11.3.91 [, data em que esta lei entrou em vigor]. (9) (10)

Diversos acórdãos do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro têm admitido que os contratos de planos privados de assistência à saúde firmados antes da Lei nº 9656, de 03 de junho de 1998, passaram a ser regidos por esta norma jurídica, haja vista que se trata de lei de ordem pública que disciplina contratos de consumo de trato sucessivo (11).

É preciso esclarecer, contudo, que este entendimento viola o direito adquirido (12) fincado pelo art. 5º, inciso XXXVI, da Constituição da República Federativa do Brasil. A Magna Carta é expressa ao afirmar que as leis não retroagem e não prejudicam o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Não há qualquer exceção prevista por nossa Lei Maior, numa clara demonstração de que o constituinte originário privilegiou a segurança jurídica.

É bem verdade que "a doutrina ainda não fixou com precisão o conceito de direito adquirido. É ainda a opinião de Gabba que orienta sua noção, destacando como seus elementos caracterizadores: 1) ter sido produzido por um fato idôneo para a sua produção; 2) ter se incorporado definitivamente ao patrimônio do titular". (13)

Caio Mario da Silva Pereira (14) esclarece que os efeitos jurídicos dos contratos regem-se invariavelmente pela lei do tempo em que se celebraram; a lei que apresenta efeito retroativo vem maculada da eiva de inconstitucionalidade, cabendo ao Poder Judiciário declará-lo e recusar-lhe aplicação. E prossegue o jurista (15):

Costuma-se dizer que as leis de ordem pública são retroativas. Há uma distorção de princípio nesta afirmativa. Quando a regra da não-retroatividade é de mera política legislativa, sem fundamento constitucional, o legislador, que tem o poder de votar leis retroativas, não encontra limites ultralegais à sua ação, e, portanto, tem a liberdade de estatuir o efeito retrooperante para a norma de ordem pública, sob o fundamento de que esta se sobrepõe ao interesse individual. Mas, quando o princípio da não-retroatividade é dirigido ao próprio legislador, marcando os confins da atividade legislativa, é atentatória da Constituição a lei que venha ferir direitos adquiridos, ainda que sob inspiração da ordem pública. A tese contrária encontra-se defendida por escritores franceses ou italianos, precisamente porque, naqueles sistemas jurídicos, o princípio da irretroatividade é dirigido ao juiz e não ao legislador.

O Supremo Tribunal Federal, como guardião máximo da Constituição da República Federativa do Brasil, tem corroborado este entendimento (16). Não é por outra razão que foi declarado inconstitucional, por ofensa ao direito adquirido, o art. 35-E da Lei nº 9656, de 03 de junho de 1998, com a redação dada pela Medida Provisória nº 2177-44, de 24 de agosto de 2001, que estabelece normas para os atuais contratos de planos de saúde celebrados antes da vigência desta lei (17).

O contrato de plano privado de assistência à saúde gera para o consumidor o direito de receber atendimento médico ou hospitalar e, para a empresa-operadora, o direito à remuneração, direitos estes que se classificam como direitos adquiridos, os quais são inatingíveis mesmo em caso de alteração da legislação então vigente.

Por outro lado, é preciso lembrar que a Lei nº 8078, de 11 de setembro de 1990, é permeada por normas abertas, que apresentam conceitos jurídicos indeterminados, tal como ocorre em seu art. 51, inciso IV, que considera "nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos ou serviços que (...) estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade".

Cláudia Lima Marques (18) afirma que "as definições de abuso trazidas na nova lei [de planos de saúde] serão usadas para interpretar os contratos antigos. Assim, se uma cláusula foi declarada expressamente proibida pela nova lei, significa que nos contratos antigos, onde vigorava somente o regime [de normas abertas] do Código de Defesa do Consumidor, esta mesma cláusula já era abusiva ex vi art. 51, inc. IV e §1º do CDC."

Este trabalho acadêmico, portanto, limita-se a esclarecer que a interpretação dos atuais contratos de planos privados de assistência à saúde firmados antes da Lei nº 9656, de 03 de junho de 1998, deve tomar esta norma somente para fundamentação mediata, tendo-se a Lei nº 8078, de 11 de setembro de 1990, para fundamentação imediata, sob pena de infringir a Constituição da República Federativa do Brasil.


Notas

(1) Direito Intertemporal é o ramo do Direito destinado a solucionar o aparente conflito de leis no tempo.

(2) O contrato de plano privado de assistência à saúde pode ser enquadrado como contrato de seguro-saúde ou contrato de plano de saúde stricto sensu.

(3) Considera-se contrato de longa duração o contrato de execução diferida (no qual a prestação de uma das partes ocorre em várias parcelas, não se verificando a extinção da obrigação enquanto não se completar a execução, como nas vendas a prazo) e o contrato de execução sucessiva (que sobrevive, com a persistência da obrigação, embora ocorram soluções periódicas, até que, pelo implemento de uma condição ou decurso de um prazo, cessa o próprio negócio, como o contrato de locação, o contrato de fornecimento de energia elétrica, o contrato de plano privado de assistência à saúde).

(4) Nos contratos de execução imediata a solução ocorre de uma só vez, em ato único, como nas vendas à vista.

(5) FERREIRA, Pinto. Curso de Direito Constitucional. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 24.

(6) GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado pelos Autores do Anteprojeto. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000, p. 913-914.

(7) Nelson Nery Júnior, "Os princípios gerais do Código Brasileiro de Defesa do Consumidor", in Revista de Direito do Consumidor, nº 3, São Paulo, Revista dos Tribunais, p. 65; Nelson Nery Júnior e Rosa Maria Andrade Nery, Código de Processo Civil comentado, cit., coment. 2 ao CDC 118, p. 1725. No mesmo sentido: Jose Luiz Bayeux Filho, "O Código do Consumidor e o Direito intertemporal", in Revista de Direito do Consumidor, nº 5, Revista dos Tribunais, p. 54; Orlando Gomes, Questões de Direito Civil, 5ª ed., São Paulo, Saraiva, p. 356.

(8) RTJ 121/776, acolhendo parecer, no mesmo sentido, de Miguel Reale; RJTJSP 139/41.

(9) RT706/82, 694/92; STJ, 3ª T, AgRgAg 58403-5-SP, rel Min. Cláudio Santos, j. 7.2.95, v.u., DJU 20.3.95, p. 6.116; TJSP-BolAASP 1952/40e.

(10) Ver sobre o tema, C. F. Gabba, Teoria della retroativitá, vol. cit., ps. 211 e segs.; A. Ramella, Tratato sulla corrispondenza in matéria civile e comerciale, Torino, Fratelli Bocca, 1896, nº 202 e segs., ps. 232 e segs.

(11) Apelação Cível nº 2003.001.25053, 17ª Câmara Cível – TJRJ, rel. Des. Severiano Ignacio Aragão, j. 22.10.03 (DJRJ 07.11.03); Apelação Cível nº 2003.001.15313, 11ª Câmara Cível – TJRJ, rel. Des. Jose C. Figueiredo, j. 20.08.03 (DJRJ 10.09.03); Apelação Cível nº 2003.001.06587, 17ª Câmara Cível – TJRJ, rel. Des. Fabricio Bandeira Filho, j. 09.04.03 (DJRJ 25.04.03).

(12) "O respeito aos direitos adquiridos é uma necessidade imposta pelo instinto de conservação da sociedade, que não teria organização estável, nem base para o seu natural desenvolvimento, se a ordem jurídica e os direitos, que ela assegura, se dissolvessem com as sucessivas reformas da legislação. É também uma feliz aplicação da idéia de justiça, porque assegura aos direitos a existência que a sociedade lhes havia reconhecido, e harmoniza os interesses, contendo-os dentro dos limites em que eles se podem expandir, sem prejuízo da vida social" (BEVILAQUA, Clovis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Comentado. v. I. 11ª ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1956, p.76).

(13) SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 19ª ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 436.

(14) PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil. v. I. 20ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 144 e 161.

(15) PEREIRA, Caio Mario da Silva. op. cit., p. 162.

(16) "Se a lei alcançar os efeitos futuros de contratos celebrados anteriormente a ela, será essa lei retroativa (retroatividade mínima) porque vai interferir na causa, que é o ato ou fato ocorrido no passado. O disposto no art. 5º, XXXVI, da CF se aplica a toda e qualquer lei infraconstitucional, sem qualquer distinção entre lei de direito público e lei de direito privado, ou entre lei de ordem pública e lei dispositiva. Precedente do STF." (STF-Pleno, RTJ 143/724).

(17) ADI nº 1931-DF, Pleno, rel. Min. Marco Aurélio, j. liminar 21.08.03 (DJU 28.05.04).

(18) MARQUES, Cláudia Lima et. al. Saúde e Responsabilidade: seguros e planos de assistência privada à saúde. 1ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 115.


Autor


Informações sobre o texto

Título original: "O Direito Intertemporal e a Lei nº 9656, de 03 de junho de 1998".

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FADEL, Marcelo Costa. O Direito Intertemporal e a Lei nº 9.656/98. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 297, 30 abr. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/5139. Acesso em: 23 abr. 2024.