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Os métodos consensuais no novo código processual e os modelos de juiz

a institucionalização do mediador "Hermes"

Os métodos consensuais no novo código processual e os modelos de juiz: a institucionalização do mediador "Hermes"

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Reflete-se sobre a busca da “resposta adequada ao caso concreto” por meio do diálogo entre os próprios atores do processo, trazendo à baila a participação da instituição religiosa que as partes frequentam.

1. Reflexões introdutórias

Importante abordar inicialmente que é sabido por todos os envolvidos no campo jurídico que se vivencia, na contemporaneidade, a positivação e divulgação dos métodos consensuais de resolução de conflitos, isto com vistas às possíveis melhorias processuais/sociais (notadamente por meio da transferência dos diálogos sobre o litígio para as próprias partes envolvidas) e celeridade processual (diminuição do “abarrotamento judiciário” e razoável duração do processo).

A princípio, torna-se imperioso defender a tese de que é necessária, notadamente no presente momento, uma reflexão profunda sobre os aportes teóricos que sustentam o direito processual, sob a égide da grande mudança de paradigmas que marca o Novo Código em vigor.

Sustenta-se também com o presente trabalho, que as discussões envoltas ao direito processual não estão imunes à Filosofia e Teoria do Direito, desmunidas de sentido as afirmações daqueles que bradam em alto som que o processo é prático, não é lugar de reflexões teóricas. A (suposta) dicotomia teoria/prática será abordada em momento oportuno, porém, deve-se alertar que sem o suporte teórico, que exige aprimoramento desde o início da universidade, não se tem bons agentes atuantes no processo, sem bons agentes, não há “bom” processo – e isso reflete de maneira assaz significativa na sociedade (jurisdicionados).

Um exemplo marcante corrobora a reflexão proposta: o § 2º do artigo 489 do Código de Processo Civil de 2015 dispõe que “no caso de colisão entre normas, o juiz deve justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação efetuada, enunciando as razões que autorizam a interferência na norma afastada e as premissas fáticas que fundamentam a conclusão. ” Pois bem, o trecho colacionado possui enorme carga semântica, exigindo do jurista conhecimentos propedêuticos.

O que o legislador quis dizer com o termo “colisão entre normas”? O termo “normas” compreenderia regra e princípio? É possível tal colisão? Veja-se que um parágrafo, como o descrito, suscita um sem número de indagações, imagine, pois, o código em seu conjunto. Exige-se assim, para a escorreita interpretação deste dispositivo, conhecimentos atinentes à teoria de Ronald Dworkin, F. Muller, e, claro, Robert Alexy, e sua teoria da Ponderação (que pode ser muito mais complicada do que parece)[1].

Sob título de complementação à parte introdutória, interessante citar trabalho que diz respeito às provas no processo, escrito pelo magistrado Eduardo José da Fonseca Costa, o autor ensina que “prova e verdade são problemas filosóficos entrelaçados, que exigem uma radicalidade reflexiva; porém, vivem no Direito uma monotonia teórica, despojada de originalidade, porquanto presos a cálculos dogmáticos, a conceitos convencionais dominados pela linguagem esclerosada dos processualistas e armazenados no uso corrente do quotidiano do foro”. O eminente processualista ainda arremata “que infunde a suspeita de que o Brasil, templo da rasidade meditativa, é um dos túmulos mundiais do Direito Probatório”[2].

O trabalho escrito pelo magistrado traz como assunto a questão probatória, mas suas reflexões podem ser estendidas ao Direito Processual como um todo, com o intuito de superar o habitus (Bourdieu) que impera no âmbito do senso comum teórico do jurista (L. Alberto Warat). 

Assim, concluindo a parte introdutória da presente pesquisa é possível afirmar que reduzir o direito processual ao modus operandi simplificador acrítico, significa compreender o Direito como mero instrumento, deixando de lado o papel de destaque que a atividade jurídica assume no cenário hodierno.


2. A necessária adequação do Processo Civil ao Constitucionalismo

Essa reflexão introdutória é de assaz relevância diante do cenário instaurado (e reproduzido) pela comunidade jurídica no sentido de interpretar o direito processual como seara “meramente prática”, alheia às reflexões filosóficas. Ora, a separação (arcaica e metafísica) entre matérias práticas e teóricas acaba por justificar incongruências por parte da academia jurídica, ao ponto de contribuir para o dilema do ensino jurídico mitigado.

Defende-se por meio deste, que a teoria processual surgida no bojo da Constituição Federal é corroborada pelo Código de Processo Civil recém elaborado, exigindo o olhar do novo com os olhos do novo (Lenio Streck).

O estudo do direito processual não deve ser entendido como mero instrumento, ainda mais quando se pensa que o processo bem guiado é garantidor daquilo que a Carta Constitucional propõe.

Com o intento de aclarar as informações trazidas, o estudioso Daniel Gomes de Miranda entende instrumentalismo: “como a corrente que defende uma relação de interdependência entre o direito material e o direito processual, de modo que este serve de instrumento para a efetivação daquele, que, por sua vez, confere sentido a este. ” [3]

Posto isso, como forma de inserir o direito processual no cenário proposto, constitucionaliza-lo significa condicionar a atuação dos envolvidos na criação/aplicação da lei aos novos preceitos, desde a tarefa legiferante até a solução da lide.

Interessante o estudo de Daniel Miranda, afirmando que a constitucionalização do processo gera efeitos de três ordens:

a) A criação normativa: momento em que inserido o projeto do novo Código de Processo Civil, uma vez que o legislador busca adequar a legislação infraconstitucional aos direitos fundamentais assegurados e protegidos pela ordem jurídica brasileira; b) A interpretação normativa: reconhece-se que não há mais espaço para os vetustos princípios gerais de direito, brocardos seculares, na interpretação normativa processual. A interpretação do novo Código deve-se dar através de um vetor hermenêutico, qual seja a Constituição Federal. Enxerga-se o Código com os olhos da Constituição; e 29 c) A aplicação normativa: o magistrado, quando da aplicação das normas contidas no novo Código, tem – em decorrência da interpretação constitucionalizada que conferiu ao texto normativo – um grau maior de liberdade de decisão, na medida em que pode recusar aplicação da regra, sob fundamento de desconformidade com o texto constitucional, o que não significa que se esquiva do dever de bem motivar, também constitucional. [4]

Ainda sobre a constitucionalização do processo, salutar, destacar a obra de Georges Abboud e Rafael Tomaz de Oliveira, que ao criticar a postura instrumental proposta por Dinamarco, entendem que

podemos concluir que o que acontece com Dinamarco e sua instrumentalidade do processo é um não retorno crítico através da tradição, o que faz com que se aceite acriticamente alguns conceitos que a própria teoria pretende superar. Isso no campo jurídico é corrente na medida em que um retorno apropriativo em direção ao passado, possibilitado pela própria historicidade do Ser-aí, é tido como supérfluo.[5]           

Logo após, os mesmos autores arrematam ao afirmar que

o estudo do direito processual centrado na relação jurídica permite um acesso hermenêutico ao Direito. Essa perspectiva permite a superação da visão nominalista do direito diante da qual este nada mais seria do que um conjunto de normas que regulam a vida humana, uma vez que por relação jurídica se entende uma relação juridicamente relevante regulada pelo direito objetivo (material) de pessoas entre si ou de pessoas e coisas![6]

Este cenário é envolto por muitos outros temas correlatos, por exemplo o papel que o Judiciário assume no contexto histórico a partir da segunda metade do século XX, aumentando, inevitavelmente, sua carga de trabalho e o número de processos. Neste sentido, vale destacar interessantes obras que tratam do tema, por exemplo: Ingeborg Maus em “O Judiciário como Superego da Sociedade”; em que a autora relaciona a atuação judiciária à teoria psicanalítica de Freud.

No Brasil, o jurista que merece destaque é Lenio Streck, que trata do tema em diversos estudos, notadamente em “Verdade e Consenso” e “Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica”, este que, por sua vez, constrói o que entende ser sua Teoria da Interpretação em tempos de Constitucionalismo Contemporâneo, pautando na intricada relação entre Direito e Política com amparo, principalmente, na obra de Ronald Dworkin, na filosofia hermenêutica de Heiddegger e na hermenêutica filosófica de Gadamer.[7]

Essas reflexões servem de esteio para o desenvolvimento da pesquisa, visto que nos fazem pensar sobre a possibilidade da busca da “resposta adequada ao caso concreto” por meio do diálogo entre os próprios atores do processo, trazendo à baila a participação, inclusive, da instituição religiosa que as partes frequentam. Portanto, percebe-se que o Código de Processo Civil recém-inaugurado vem, também, com o escopo de adaptar-se à realidade constitucional, promovendo a adequada colocação do processo no Estado Democrático de Direito. 


3. Breves anotações sobre as principais mudanças no Processo Civil

A grande viragem na Teoria do Direito que pretende se esboçar se dá com a Lei 13.105/2015, que institui o Código de Processo Civil e proclama logo no caput de seu artigo 3º: a reprodução do conhecido Princípio da Inafastabilidade da Prestação Jurisdicional (art. 5º, XXXV), a permissão da arbitragem (§ 1º), a promoção da solução consensual dos conflitos pelo Estado (§ 2º) e o estímulo por parte de juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público (§ 3º).

O Novo Código ainda corrobora a luta pela celeridade do processo ao dispor em seu artigo 4º sobre o Princípio da Razoável Duração do Processo, colocado na Constituição Federal, a partir da Emenda 45/2004, no artigo 5º, LXXVIII.

O artigo 6º do NCPC ainda traz o “Princípio da Cooperação entre as partes”, conforme tem sido chamado pela doutrina, que afirma a busca pela resolução consensual, instigando a participação ativa das partes no sentido de uma decisão justa, efetiva e em tempo razoável. Ainda sobre a razoável duração, vale destacar que, dentre as incumbências do juiz, está a de velar pela razoável duração do processo (art. 139, II) e promover, a qualquer tempo, a auto composição, preferencialmente com o auxílio de conciliadores e mediadores judiciais (art. 139, V).

No artigo 334, o CPC também inova ao estabelecer a audiência de conciliação como ato processual necessário, ou sua recusa fundamentada por ambas as partes. Proibição de decisão surpresa (art. 10), honorários sucumbenciais para a Fazenda Pública (85, §19), garantia da razoável duração do processo por meio de multa a recursos meramente protelatórios (art. 80), institucionalização das férias forenses, instrumentos de uniformização de jurisprudência como o incidente de resolução de demandas repetitivas (art.976). [8]

Nem tudo são flores no Novo Código. Importante abordar interessantes críticas feitas por estudiosos da seara processualista. Pois bem, Eduado José da Costa entende que “na leitura do artigo 927 do CPC-2015, percebe-se uma tentativa de “redução” dos tribunais superiores a órgãos a-históricos, compostos por juízes neutros, que (i) resolvem as questões que lhes são levadas à apreciação a partir de um ver puramente teórico, e que (ii) procedem à objetivação de seus entendimentos mediante a elaboração de enunciados universais lato sensu (ex.: enunciados stricto sensu de súmula de jurisprudência dominante, precedentes em controle abstrato de constitucionalidade ou em julgamento de recursos excepcionais repetitivos).” [9]

Outra crítica que merece reflexão, mas que não cabe aqui, diz respeito à “fetichização dos precedentes”, a tão exarada “aproximação com a commom law”. Ora, como alterar o sistema jurídico de uma nação, o que pressupõe uma ruptura paradigmática assaz relevante, em tão curto período de tempo? E por meio de um código procedimental. [10]


4. Modelos juiz e interação entre as partes

Com espeque nas supracitadas alterações no Código Processual Civil, percebe-se uma interessante e salutar conjuntura que pode ser resumida nos seguintes termos: o CPC corrobora a inafastabilidade da prestação jurisdicional, reconhecendo a abundante e crescente busca pelo Judiciário como realizador de direitos e garantias; porém distribui entre todos os participantes do processo, a responsabilidade por contribuir com a resolução da demanda em tempo razoável, estabelecendo a obrigatoriedade de tentativa de auto composição, e buscando a diminuição da arbitrariedade do intérprete julgador.

Como bem ensina Humberto Dalla Bernardina de Pinho Karol Durço, em interessante artigo denominado “A mediação e a solução dos conflitos no estado democrático de direito. O juiz Hermes e a nova dimensão da função jurisdicional”:

Em sociedades primitivas a pacificação dos conflitos era feita pela força privada; em Estados despóticos a pacificação dos conflitos confundia-se com o próprio Rei; em Estados liberais a mesma era ditada pela lei do mercado; em Estados sociais a pacificação dos conflitos correspondia ao paternalismo prestacionista; e em Estados democráticos a pacificação dos conflitos deve ser legitimada por um discurso processual intersubjetivo além de reclamar, portanto, métodos outros que a estrita e fria atuação estatal por meio da atividade jurisdicional.[11]

Importante alertar que os autores ainda sustentam o artigo sob a égide do trabalho de François Ost, chamado “Os modelos de juiz”, em que este último propõe a associação entre os modelos jurisdicionais e os modelos de Estado no curso da história, concluindo assim que “atividade jurisdicional e a presença dos denominados equivalentes jurisdicionais (autotutela, autocomposição, mediação e julgamento de conflitos por tribunais administrativos) nada mais é do que um reflexo do modelo de Estado sob o qual esta é exercida”.

Deve-se alertar que quando se diz “modelos de juiz” se pretende expor “modelos de jurisdição”, ou modelos de intérpretes, como propõe Morais da Rosa e Tomaz de Oliveira. [12]

Ost entende não ser possível falar em um único modelo de juiz para o atual contexto jurídico, para tanto recorre à mitologia, na tentativa de analisar as facetas da atuação judicial. As referências são Júpiter, Hércules e Hermes.

Há, outrossim, três grandes modelos de juiz, a saber: o vinculado ao paradigma do Estado Liberal, paralelo ao período de codificação, em que a confiança no legislador é notória e influenciada pela “vontade geral” de Rousseau, nesta esteira o juiz é mera “boca da lei” (lembrando que a Revolução liberal francesa busca, notadamente, acabar com o elo magistratura/soberano, tão presente no período anterior).

Assim o juiz do período liberal clássico é Júpiter: o juiz mínimo. Júpiter é tratado como exegeta (paloejuspositivsmo, amparado na classificação de “positivismos”, que pode ser encontrada em Bobbio).

O segundo modelo se alia ao Estado Social, na esteira da superação do liberalismo clássico, afirmação dos direitos sociais (2º geração) e revoluções socialistas, para este período Ost entende o juiz como Hércules, um magistrado ativo, atuante – com vistas a superar o “boca da lei”, e até, de certa forma, discricionário. Vinculado ao “realismo jurídico”, ou seja, para Ost, o segundo modelo é o juiz que realiza o Direito, sendo o Direito aquilo que o juiz afirma.

Aqui cabe tecer alguns comentários sobre as atuações deste modelo de juiz, salutar dizer que Ost não se baseia no Hércules de Dworkin, pois a atividade do juiz Hércules (de Dworkin) é árdua: levar a sério o Direito, com responsabilidade política e recorrendo aos princípios (que não são os gerais, tampouco são valores).

Nesta esteira, ao criticar a posição de Ost, Streck argumenta que o juiz Hércules de Dworkin é antidiscrionário, isto porque atua na busca da coerência e integridade do Direito, dentro dos limites estabelecidos pela Constituição. Ainda sustenta que Ost descreve o juiz Hércules como típico da Modernidade Filosófica, ou seja, o sujeito solipsista, que projeta suas decisões a partir de sua consciência. Desta feita, Ost teria se enganado ao abordar Hércules nesta vertente, pois as qualidades que lhe atribui são típicas do paradigma liberalista/individualista, não do Estado Social.

Destarte, Streck afirmaria que o modelo de juiz que melhor se amolda com a configuração estatal contemporânea é o Hércules de Dworkin, aquele, metaforicamente, capaz de chegar à “resposta correta”. Assim, pode-se dizer que “Dworkin alia a figura do juiz Hércules à metáfora do romance em cadeia (chain novel) a fim de ilustrar o processo de aprendizado social subjacente ao direito compreendido como prática interpretativa. [13]

A obra de Dworkin é extensa, posto que o autor trata de diversos pontos ligados à reflexão jurídica, porém, no enfoque da mudança de atuação dos atores do processo, como se pretende no momento, o juiz Hércules tem algo importantíssimo a mostrar: a construção intersubjetiva da decisão busca dar segurança às decisões judiciais, no sentido de garantir integridade e coerência à jurisprudência, estabelecendo a ideia de que o processo (e seu resultado) tem por finalidade a resolução da demanda do jurisdicionado.

Nesta perspectiva, o cidadão é menos dependente da atividade (discricionária) do magistrado, podendo participar da construção da resposta que melhor se amolda à resolução de seu imbróglio.  

O terceiro modelo proposto por Ost diz respeito ao “juiz Hermes”, que pode ser entendido como aquele adaptado à fragmentada pós-modernidade, o juiz mediador, capaz do diálogo entre todos envolvidos no processo, bem como o diálogo entre valores adversos. Mais adiante será abordada a mitologia do “semideus” Hermes.

Para deixar claro, palavras do próprio Ost:

O Direito, aceita um número  indefinido  de  jogadores  cujos  papéis  e  réplicas  não  estão inteiramente  programados. Por um lado,  podem  entrar  em  jogo  hierarquias  enredadas em  anéis  desconhecidos;  como  vimos,  às  vezes  papéis  secundários  ganham destaque. Por outro  lado,  cada  participante  do  jogo  do  Direito  é  simultaneamente introduzido  em  outros  domínios  que  se  celebram  sobre  outros  domínios particularmente  familiares,  econômicos  e  políticos.[14]  

O trabalho de Ost sofreu inúmeras críticas por todo o mundo, não vem ao caso numerá-las. Para a presente pesquisa, sua tese é de fundamental importância, e, principalmente, instiga a reflexão sobre o modelo de processo que se instaura no paradigma do novo CPC. [15]


5. O que se espera do processo

Retorna-se ao ponto fulcral da discussão, ao indagar qual o modelo de processo que mais se alia ao status jurídico contemporâneo, aquele que propugna a participação ativa de todos os envolvidos, ou aquele que confia que o magistrado é capaz de extrair a “verdade real” do caso concreto?

Neste momento surge um adendo fundamental, que permeia a visão holística da discussão, visto que a construção da resposta ao problema individual, entendida no sentido da intersubjetividade proposta pelo Novo CPC alcança a postura histórico/cultural do brasileiro em relação à atividade judiciária.

Da mesma forma que, no paradigma do Estado Democrático de Direito, espera-se uma participação efetiva do jurisdicionado na construção da decisão que melhor se amolda a seu litígio, pugna-se, também, que a construção de melhorias sociais não fique (demasiadamente) a critério da magistratura (notadamente na atuação do Supremo Tribunal Federal).

Afinal, o que se pretende com esta afirmação é que a participação do jurisdicionado na construção da decisão sirva como fonte de inspiração à participação do cidadão no estabelecimento dos programas traçados pela Constituição Federal, entendendo a atividade política como processo de emancipação política, não no sentido do “agir comunicativo” habermasiano, mas notadamente sob a perspectiva do “mitsein” de Heiddegger, o “ser-com”, ou seja: o processo é intersubjetivo.       

A formação histórico/cultural atua de maneira significativa no momento de discorrer sobre o que se espera do processo judicial. Como foi visto em outro momento, o modelo constitucional francês foi calcado na desconfiança em relação à atuação do juiz, já que este representava, no regime anterior, notório enlace com o rei soberano, tanto que o controle repressivo de constitucionalidade só foi adotado em 2009. No Brasil, pode-se destacar situação, muito, diferente.

Não vem ao caso adentrar neste mérito, mas somente confirmar que o processo intersubjetivo e democrático se faz com diálogos, intermediações. É neste contexto quer surge a figura do mediador, do conciliador.  

Com amparo nos argumentos já exarados, entende-se que o novo modelo processual significa mais que a busca por uniformização da jurisprudência e “desafogamento” do judiciário, isto porque simboliza a colocação do Direito em seu máximo viés democrático, ampliando o acesso à justiça ao alocar a parte como participante ativa na construção da decisão – surgindo o mediador e o conciliador como peças importantes no jogo processual.


6. A atividade do conciliador e do mediador no contexto do novo CPC

Neste ínterim, a atuação dos conciliadores e mediadores judiciais ganha destaque e merece considerações precisas. Veja-se que muito se discute sobre a formação necessária à prática de tais atividades, se tais profissionais devem possuir formação em Direito, Psicologia, ou ambas, ou nenhuma.

Ocorre na prática o curso de formação que é fornecido pelo Tribunal de Justiça e por instituições educacionais autorizadas.

Em virtude da atuação destacada que os conciliadores e mediadores ganham neste novo paradigma, o Código de Processo Civil traz regras também sobre a formação, aperfeiçoamento dos profissionais e locais envolvidos, nos artigos 165 e seguintes.

Desta forma, o CPC dispõe sobre a necessidade de criação de centros judiciários especializados; a observância das normas elaboradas pelo Conselho Nacional de Justiça; as diferenças primordiais entre as funções do conciliador (quando não há vínculo anterior entre as partes e a possibilidade de emitir opiniões na tentativa de solucionar o litígio) e do mediador (quando há vínculo anterior entre as partes e a possibilidade apenas de auxílio na compreensão das questões referentes aos interesses em demanda); princípios aplicados (independência, imparcialidade, autonomia da vontade, confidencialidade, oralidade, informalidade e decisão informada); registro dos profissionais em cadastro oficial, realização de curso conforme estabelecido pelo CNJ e Ministério da Justiça; preenchimento dos cargos por concurso público ou não; escolha do conciliador ou mediador pelas partes; remuneração, impedimentos e punições aos conciliadores e mediadores; e a criação de centros no âmbito dos entes federativos para aplicação no âmbito administrativo.

Assim, vê-se o detalhamento trazido pela legislação em relação ao assunto, o que corrobora a relevância do tema.

Neste cenário, seguindo a ideia de Pinho, que faz interessante diálogo com Bauman, “o direito em um Estado Democrático é líquido e denso ao mesmo tempo” e “esta liquidez jurídica se dá por meio da equidade e permite ao direito preencher os buracos nas relações sociais”.[16]

Esse preenchimento, como foi visto nos parágrafos introdutórios, deve ser feito com a participação das partes, de maneira que elas próprias consigam chegar ao deslinde necessário. Destarte, a interação entre as pessoas envolvidas no litígio simboliza um novo modo do “fazer direito”, por meio do estabelecimento de regras procedimentais rígidas, que devem ser observadas; e da participação atuante das partes com o auxílio de um participante “médio”, com uma visão imparcial (ou neutra), que palpita (conciliador) ou facilita o diálogo (mediador). Mediadores e conciliadores atuam neste sentido como intérpretes do caso concreto e do texto legal, passando às partes as vantagens da solução pacífica e seus limites legais.


7. Hermes, o mediador

Na maioria das interpretações (levando em consideração que há inúmeras, como as de Homero e Ésquilo), Hermes é considerado o responsável pela “tradução” ou interpretação das palavras dos deuses aos humanos, por isso que para muitos é considerado um “semideus”, já que em contato com as duas esferas.

Aristóteles também discorreu sobre, inclusive ao sistematizar o conceito da hermenêutica, a partir dos atributos de Hermes. Na mitologia romana, Hermes é Mercúrio, na egípcia se junta com Toth e vira Hermes Trismegisto - o três vezes grande.

Interessante notar que Hermes traduzia a linguagem dos deuses para os humanos, ou seja, para aqueles que não tinham tal conhecimento, corroborando a discricionariedade de sua atividade. E, apesar disso (ou por isso), Hermes era para muitos: traiçoeiro e maldoso.

Impossível discorrer no momento sobre todos os atributos de Hermes, de modo que, para o presente artigo, vale considera-lo como intérprete da linguagem dos deuses. Assim, o deus Hermes é mediador, assim como – simbolicamente claro - aquele que atua nos processos judiciais atuais.

Outra vez Humberto de Pinho ensina que:

Vale recordar que Hermes é o deus da comunicação, da circulação, da intermediação; é um interprete, um mediador, um porta-voz. A ideia é a de que o direito, como signo linguístico que ontologicamente é, sempre necessita de interpretação e, portanto, é inacabado; permanece continuamente se realizando (caráter hermenêutico ou reflexivo do juízo jurídico). [17]

Posto isso, considerando todas as informações trazidas no corpo do trabalho, deve-se concluir a importância desta reflexão acerca da função simbólica do mediador/conciliador como garantidor da interação entre as partes, e do arcabouço de princípios que marcam o novo Processo Civil.

Neste momento, far-se-ão comentários sobre a institucionalização da ideia simbólica de Hermes como mediador nas demandas judiciais (também na seara pré-processual), no seio de interessante programa desenvolvido no Tribunal de Justiça de Goiás.  


8. O programa “Mediar é divino” e a institucionalização de “Hermes”

A partir de outubro de 2015 os Tribunais de Justiça de Goiás e, posteriormente, do Distrito Federal, estabeleceram o programa denominado “Mediar é Divino”, iniciativa que busca dar efetividade a resoluções do Conselho Nacional de Justiça e do TJ “no sentido de manter e aperfeiçoar as ações voltadas ao cumprimento da política das metas”[18], que consiste, de acordo com informações do próprio site do TJ/GO, em uma preparação de líderes religiosos e pessoas praticantes, das mais diversas crenças e manifestações, para aplicar as técnicas de mediação no seio de suas instituições, fomentando a prática de técnicas conciliatórias em possíveis litígios entre os fiéis.

O juiz coordenador do projeto em Goiás, Paulo César das Neves, em entrevista concedida à Revista Justiça & Cidadania[19] explica que “o ‘Mediar é Divino’, além de contribuir para a redução da taxa de congestionamento do Poder Judiciário, implementa efetiva aproximação da Justiça com a sociedade”.

A iniciativa está em prática em diversas instituições religiosas, o líder de uma delas, em matéria divulgada em “http://fulviocosta.com/igreja-catolica/2016/08/mediar-e-divino-acesso-a-justica-pela-porta-da-igreja/” indica que:

Por ser um espaço da Igreja e não do Poder Judiciário, o mediador se utiliza muito da Doutrina Católica. Nos casos de divórcio, ele observa todas as questões que envolvem o Matrimônio, a família e se existe nulidade. Para as pessoas que não casaram na Igreja, ele explica o sentido do Sacramento e sua importância diante de Deus. Da mesma forma que na situação dos vizinhos, os casais em conflitos também estão muito mergulhados no problema em si e se esquecem do diálogo. E o mediador faz o mesmo trabalho de facilitar a comunicação entre as partes.

Interessante indagação se instaura: e quando esse mediador é um líder religioso, preparado para atuar com litígios que envolvem fiéis das mais variadas crenças, pode-se dizer que atua simbolicamente como o semideus Hermes? Tradutor da linguagem do (s) deus (es), na tentativa de estabelecer um acordo entre os fiéis? Pois bem, note-se como fica clara a função do mediador como o Hermes proposto por François Ost em seu trabalho sobre os “modelos de juiz”.

Imperioso alertar que o artigo de Ost traz outras relevantes informações, inclusive é feita considerações críticas sobre o modelo de jurisdição que aos poucos é institucionalizado quase que no mundo todo. Para melhor compreensão, a leitura do texto completo é altamente recomendável.

Salutar a afirmação de que o programa “Mediar é Divino” corrobora a importância do diálogo entre as partes na solução da demanda, confirmando outra vez Ost quando afirma que o modelo de jurisdição pautado em Hermes busca a interação dos valores. Ost afirma que o jogo (processo) está aberto a todos – no caso do TJ/GO e TJ/DF, inclusive ao mediador religioso.    

Se “mediar é divino”, o mediador seria Hermes? (Claro que aqui se faz um paralelo simbólico, sem discorrer sobre “questões religiosas”).

Não obstante às críticas em cima do trabalho de Ost, principalmente a realizada por Lenio Streck, pode-se concluir que Ost acerta em cheio – quando se busca refletir sobre o programa “Mediar é Divino”. Veja-se o papel do mediador, no programa, como aquele que dialoga com os valores das partes, que leva aos envolvidos a melhor (?) maneira de solução de litígios de acordo com a doutrina religiosa que fazem parte.

O assunto é polêmico, muito porque resta indagar: o programa “Mediar é divino” entra em perigoso terreno que mistura Direito e Religião?

Agora, as polêmicas que envolvem tal discussão são tamanhas, não cabem neste artigo que se encerra.    


9. Referências bibliográficas

DE PINHO, Humberto Dalla Bernardina. "Direito processual civil contemporâneo." (2013).

DE PINHO, Humberto Dalla Bernardina. "A Mediação e a necessidade de sua sistematização no processo civil brasileiro." Segunda Parte–Reformas Processuais (2010): 63.

DE PINHO, Humberto Dalla Bernardina. "O novo CPC e a mediação: reflexões e ponderações." id/496922 (2011).

OST, François. "Júpiter, Hércules, Hermes: tres modelos de juez." Doxa 14 (1993): 169-194.

SILVA, Virgílio Afonso da. A Constitucionalização do Direito. São Paulo: Malheiros, 2008.

STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2011

STRECK, Lenio Luis. Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica, 3 º Edição, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2013.   

ZANETI JÚNIOR, Hermes. "Processo constitucional: relações entre processo e constituição." (2004).


Notas

[1] Interessante trabalho sobre este tema pode ser encontrado em “Streck, Lenio Luiz. "As recepções teóricas inadequadas em terrae brasilis." Revista Direitos Fundamentais & Democracia 10.10 (2011): 02-37. “

[2] . (Direito deve avançar sempre em meio à relação entre prova e verdade. Revista Consultor Jurídico, 20 de dezembro de 2016, 7h08, acesso em 17/01/2017).

[3] de Miranda, Daniel Gomes. "A Constitucionalização do processo e o projeto do novo código de processo civil." (2012)., p. 18. 

[4] Idem p. 28/29.

[5] Abboud, Georges e Rafael Tomaz de Oliveira. "O dito e o não-dito sobre a instrumentalidade do processo: críticas e projeções a partir de uma exploração hermenêutica da teoria processual." Revista de Processo. Vol. 166. 2008, p. 19.

[6] Idem, p. 20.

[7] Não é o objeto do presente estudo, no entanto merece destaque seu entendimento no sentido de que é possível chegar a “uma” resposta correta diante do caso concreto, a “resposta constitucionalmente adequada”. Tal teoria ousa descordar de Kelsen para quem a atividade do intérprete julgador é um ato de vontade (razão prática), sendo inviável se chegar à resposta.

[8] (STRECK, ALVIM e LEITE, Hermenêutica e jurisprudência no Novo Código de Processo Civil, Editora Saraiva, 2016, p. 17).

[9] http://www.conjur.com.br/2016-dez-03/eduardo-costa-tribunais-superiores-sao-orgaos-transcendentais.

[10] Duras críticas são tecidas neste aspecto, para tanto (ABBOUD, Georges. Processo constitucional brasileiro. São Paulo: RT, 2016, p. 574). 

[11] Dalla, Humberto, and Karol Araújo Durço. "A MEDIAÇÃO E A SOLUÇÃO DOS CONFLITOS NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO. O “JUIZ HERMES” E A NOVA DIMENSÃO DA FUNÇÃO JURISDICIONAL." Revista Eletrônica de Direito Processual 2.2 (2016).

[12] http://www.conjur.com.br/2013-nov-02/diario-classe-complexo-macgyver-modelos-juiz-episodio1.

[13] DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Tradução de Jeferson Luiz Camargo, 3º Ed. São Paulo: Marins Fontes, 2014.

[14] OST, François. "Júpiter, Hércules, Hermes: tres modelos de juez." Doxa 14 (1993): 169-194, P. 124. 

[15] Na busca pelo modelo de juiz brasileiro, Alexandre Morais da Rosa e Rafael Tomaz de Oliveira fazem interessante paralelo e anunciam o juiz “MacGyver”, que cria princípios a todo momento, baseia suas decisões em argumentos de política, moralismos – o típico juiz herói. Os juristas citados, neste viés, lutam contra este modelo de atuação judiciária, muito amparados pela constatação do grande Umberto Eco, no sentido de que o próximo passo após o heroísmo (espécie de moralismo) é o autoritarismo, este que por sua vez, é incompatível com o modelo constitucional que se desenvolve no seio do Estado Democrático de Direito.

[16]Dalla, Humberto, and Karol Araújo Durço. "A MEDIAÇÃO E A SOLUÇÃO DOS CONFLITOS NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO. O “JUIZ HERMES” E A NOVA DIMENSÃO DA FUNÇÃO JURISDICIONAL." Revista Eletrônica de Direito Processual 2.2 (2016).

[17] Idem.

[18] Consoante notícia da Revista Consultor Jurídico, matéria de 13 de março de 2016, 9h04, acesso em 03/11/2016.

[19] (que pode ser encontrada em http://www.editorajc.com.br/2016/09/mediar-e-divino/).



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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SCHMIDT, Vinícius Pomar. Os métodos consensuais no novo código processual e os modelos de juiz: a institucionalização do mediador "Hermes". Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5049, 28 abr. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/55168. Acesso em: 18 abr. 2024.