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Oracle vs. Google

Uma leitura a partir de Wittgenstein

Oracle vs. Google: Uma leitura a partir de Wittgenstein

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O caso da justiça americana envolvendo a Oracle e a Google é um dos principais na discussão da propriedade intelectual sobre os programas de computador. No litígio, a Google foi acusada pela Oracle de ter utilizado parte do programa de sua autoria, o Java.

INTRODUÇÃO

O embate Oracle America, Inc. v. Google, Inc.[1] na justiça americana é um dos mais recentes na discussão da Propriedade Intelectual nos programas de computador. O caso coloca frente à frente dois gigantes da tecnologia. Eles discutem se partes da linguagem Java desenvolvida pela Sun Microsystems (comprada pela Oracle em 2010) pertenceriam a ela ou não. Do mesmo modo, debatem se pelo fato de esses trechos de programação serem essenciais para a “conversa” entre diferentes sistemas, eles seriam de domínio público e livres para serem utilizados por qualquer um.

Wittgenstein, em seu livro Investigações Filosóficas, apresenta o conceito de jogos de linguagem. De acordo com seu entendimento, a existência de uma linguagem privada – hermética ao contato com os demais – seria impossível. Isso porque a linguagem pertenceria a um sistema de regras – a um jogo de linguagem –, que só faria sentido se essas regras pudessem ser apreendidas por um número ilimitado de pessoas.

No caso analisado na presente pesquisa, a Oracle moveu ação judicial contra a Google alegando que esta teria se apropriado de trechos de linguagens de programação do Java – os APIs -, para o desenvolvimento de seu sistema Android. Em sendo assim, a Google teria infringido a Propriedade Intelectual da Oracle. A Google, em sua defesa, por outro lado, argumentou que os trechos de código desenvolvidos pela primeira não seriam passíveis de proteção por Copyright[2] por consistirem de trechos de programação essenciais para a comunicação entre diferentes sistemas, devendo, portanto, ser considerados como domínio público.

A ação se iniciou em 2010 e continua a correr, já tendo sido julgado por duas Cortes distritais e a Corte Federal do Nono Circuito. Tratar-se-á, assim, da discussão ocorrida entre 2012 e 2014, a qual corresponde ao primeiro julgamento da corte distrital da Califórnia e da Corte Federal do nono circuito, pois tratavam justamente se o objeto (os APIs) poderia ter alguém como dono ou não.

Desse modo, far-se-á primeiramente uma apresentação do conceito de Copyright e de alguns dos principais elementos da teoria de Wittgenstein como: os jogos de linguagem a e a impossibilidade de uma linguagem privada; e onde a linguagem de programação e os APIs se encaixariam nessa teoria. Logo em seguida, será feito um breve resumo da fase da ação entre Oracle e Google que vai de 2012 até 2014, com os principais argumentos utilizados pelas partes a respeito da possibilidade da proteção da linguagem Java por Copyright. Por fim, analisar-se-á se as ideias de Wittgenstein – pela impossibilidade de uma linguagem ser privada – poderiam ter sido utilizadas pela Google na fundamentação de sua defesa – no sentido de o código em discussão não poder ter um dono.


1. IMPOSSIBILIDADE DE UMA LINGUAGEM PRIVADA, LINGUAGEM DE PROGRAMAÇÃO E API: DEFINIÇÕES E CONCEITOS

Antes de tratar do caso em si, é necessário entender o conceito de Copyright e algumas das principais ideias de Wittgenstein, especialmente sua teoria dos jogos de linguagem e sua defesa pela impossibilidade de uma linguagem ser privada. Do mesmo modo, é necessário explicar o que é uma linguagem de programação e o que viriam a ser os APIs, os quais são o principal objeto de polêmica no caso Oracle vs. Google. Com a explanação desses conceitos será possível analisar o caso com maior precisão.

Copyright, de acordo com Marcos Wachowicz (2010, p. 02), seria um direito reservado desde a concessão do primeiro monopólio à indústria editorial e de comércio de livros, tratando-se esse do Copyright Act da Rainha Ana, de 1709. Discorre o autor que, em realidade, esta lei teria concedido um privilégio de reprodução e que isso teria consubstanciado a visão anglo-americana do Copyright, que nunca fora abandonada. Complementa Ascensão (1997, p. 04) que na base do Copyright estaria a materialidade do exemplar e o exclusivo da reprodução deste.

Assim, continua Wachowicz (2010, p. 02), o Copyright precederia historicamente o Direito de Autor, mas com este não se confundiria, pois o Copyright seria muito mais limitado aos direitos de exploração econômica de obras registradas. Concluindo sua argumentação, ele comenta que os países Europeu-continental e Latino-americanos adotaram o sistema de direito autoral criado pela Convenção de Berna (1886).

O Digital Millennium Copyricht Act (DMCA) americano, datado de 1998 é a legislação que regula o sistema de Copyright aplicado nos EUA. Em sua seção 102(a) ele define o que estaria sujeito à proteção por Copyright:

A proteção por Copyright subsiste, de acordo com esse título, em trabalhos autorais originais fixados em qualquer meio tangível de expressão, agora conhecidos ou posteriormente desenvolvidos, dos quais eles possam ser percebidos, reproduzidos ou de alguma outra forma comunicados, seja diretamente ou com o auxílio de uma máquina ou aparelho[3].

Em sua seção 102(b), o DMCA estabelece alguns casos em que a proteção por Copyright não se aplica – como por exemplo em procedimentos, processos, sistemas ou métodos de operação. Ver-se-á, nos parágrafos seguintes, se a definição de linguagem de Wittgenstein se encaixaria em alguma dessas exceções.

Ludwig Wittgenstein foi um filósofo austríaco naturalizado britânico responsável pelas principais contribuições na virada analítica ou linguística, durante o século XX (VON WRIGHT, 1955, p. 527). Alguns autores identificam em Wittgenstein duas fases bem distintas, conhecidas como “Primeiro Wittgenstein” e “Segundo Wittgenstein” (HINTIKKA, 1994), dada a diferente abordagem trazida em seus trabalhos posteriores como o Investigações Filosóficas quando comparados com trabalhos prévios como o Tractatus.

De modo geral, sua visão de linguagem em suas primeiras obras se baseava na ideia de que as palavras designam objetos e que o significado da palavra seria o objeto que ela substitui (BRITTO, 2005, p. 86). Assim, seria possível se concluir que cada pessoa poderia criar sua própria designação de um objeto no mundo real. Desse modo, criando sua própria linguagem – uma linguagem privada.

Entretanto, o “Segundo Wittgenstein” mudou sobremaneira suas ideias a respeito da linguagem. De acordo com sua nova visão, uma linguagem compreendida somente por seu criador seria impossível. O autor estabelece duas críticas principais a essa concepção de linguagem. A primeira crítica se dirige ao fato de que tal imagem da linguagem, que a resume a seu aspecto meramente designativo, é uma imagem muito limitada; a segunda crítica postula que, além de disso, esta imagem da linguagem como meramente designativa é uma imagem inadequada, dado o fato de não ser imediatamente compreensível (BRITTO, 2005, pp. 86 e 90).

Para fundamentar essas críticas e propor uma solução, Wittgenstein introduz o conceito de Jogos de Linguagem. Tal conceito foi inicialmente trazido 1930 em uma analogia dos sistemas axiomáticos com o xadrez (GLOCK, 1998, p. 225). Em 1932, ele estende essa analogia à linguagem como um todo com a função de enfatizar os pontos em comum entre jogos e linguagem. Sobre o ponto de partida dessas analogias, discorre Ruy (2008, p. 01):

A linguagem é uma atividade guiada por regras. Em primeiro lugar, bem como num jogo, a linguagem possui regras de constituição, a saber, as regras da gramática. Essas regras gramaticais, diferentemente de regras de estratégia, não nos informam que lance – no caso do jogo, ou proferimento – no caso da linguagem, terá sucesso, e sim o que é correto ou faz sentido, definindo assim o jogo ou a linguagem

Wittgenstein (2000, § 130) faz o seguinte alerta para o uso dessa teoria:

Nossos jogos de linguagem claros e simples não são estudos preparatórios para uma regulamentação futura da linguagem, não são, por assim dizer, aproximações preliminares, sem levar em conta o atrito e a resistência do ar. Os jogos de linguagem estão aí muito mais como objetos de comparação, os quais, por semelhança e dissemelhança, devem lançar luz nas relações de nossa linguagem.

Fazendo um comparativo da linguagem com o jogo, presume-se que para ele ser jogado, seria necessário que todos seus participantes entendessem suas regras. Ainda assim, o próprio autor admite que há situações em que uma linguagem privada seria possível (WITTGENSTEIN, 2000, §243):

Um homem pode encorajar a si mesmo, dar ordens a si mesmo, obedecer a si mesmo, castigar a si mesmo colocar-se uma pergunta e respondê-la. Poder-se-ia também imaginar homens que falassem somente monólogos, que fizessem acompanhar suas atividades com solilóquios. -Um pesquisador que os observasse e escutasse seus discursos poderia conseguir traduzir sua linguagem para a nossa. (Com isso ele seria capaz de antever corretamente as ações dessas pessoas, pois ele as ouve também fazer propósitos e tomar decisões.)

Porém, Wittgenstein vai refutar a possibilidade da linguagem privada argumentando que os jogos de linguagem inevitavelmente fazem a intermediação entre o objeto e o homem, especialmente ao falar da percepção de sentimentos, que em uma linguagem privada só deveriam poder ser percebidos por seu originador (WITTGENSTEIN, 2000, §243):

Mas seria também pensável uma linguagem na qual alguém pudesse, para uso próprio, anotar ou exprimir suas vivências interiores – seus sentimentos, seus estados de espírito? – não podemos fazer isto em nossa linguagem costumeira? – acho que não. As palavras dessa linguagem devem referir-se àquilo que apenas o falante pode saber; às suas sensações imediatas, privadas. Um outro, pois, não pode compreender esta linguagem.

Analisando o texto de Wittgenstein, Britto (2005, p. 96) tece as seguintes conclusões:

O pressuposto da linguagem privada é: existem sensações que apenas uma pessoa tem, que são inacessíveis para outras pessoas, por isso esta linguagem não poderia ser compreendida por ninguém mais, sendo intraduzível. Ora, para descrever estas sensações seria preciso valer-se de definições ostensivas privadas, para determinar quais símbolos representariam quais sensações. Isto porque, a linguagem exige regularidade para que possa ser coerente e compreensível, inclusive para seu próprio originador. Esta regularidade depende de regras de correção. Regras são necessariamente públicas, logo, a ideia de linguagem privada se auto refuta.

Percebe-se, assim, que o caráter necessariamente público da regra é um ponto central do argumento de Wittgenstein contra a linguagem privada. De acordo com o mesmo (2000, § 202), seria impossível seguir uma regra privadamente, pois “‘seguir a regra’ é uma práxis. E acreditar seguir a regra não é seguir a regra. E daí não podermos seguir a regra ‘privadamente’; porque, senão, acreditar seguir a regra seria o mesmo que seguir a regra”. Considerando que a regra de linguagem seria um procedimento de aplicação da língua, tal entendimento estaria condizente com a exceção do artigo 102(b) do DMCA, mencionado acima.

Essa definição de uma regra ser necessariamente pública também faz sentido quando se parte para a definição de linguagem de programação. De acordo com Paulo Blauth Menezes (2000, p. 01), a Teoria das Linguagens Formais teria sido desenvolvida na década de 1950 com o objetivo de se estudar e compreender as estruturas, características e propriedades das linguagens naturais. Logo se verificou, contudo, que a essa teoria era fundamental para se estudar as linguagens artificiais, especialmente as linguagens da Ciência da Computação. Desde então, de acordo com Menezes, o estudo das Linguagens Formais teria se desenvolvido significativamente, com ênfase nas áreas da Análise Léxica e Sintática de linguagens de programação.

Luis Alberto Warat (1995, p. 11) destaca, inclusive, que a tentativa de se considerar os signos como objeto específico de um conhecimento científico teria se originado de estudos e investigações realizados pelos linguistas contemporâneos em torno da linguagem natural, e pelos lógicos-matemáticos com relação às linguagens artificiais formalizadas.

Desse modo, assim como em uma linguagem natural, o estudo das linguagens formais se preocupa com seus problemas de sintaxe, de semântica e sintáticos, ou seja, suas regras. Discorre Menezes (2000, p. 02) que sintaticamente falando não existiria uma noção de programa “errado”: neste caso simplesmente não seria um programa. Assim, o jogo, em uma linguagem de programação, teria de ser rigorosamente definido, caso contrário não seria entendido pelo terminal/computador responsável por reconhecer determinada linguagem (chamado no jargão da Ciência da Computação de “autômato”). Linguagens de programação, nesse sentido, seriam constituídos de regras públicas necessárias para a criação de programas que possam ser lidos por diferentes tipos de autômatos.

Por fim, é necessário definir o conceito de API e sua origem. A empresa Sun Microsystems (comprada posteriormente pela Oracle) lançou a “plataforma” Java para a programação de computadores em 1996. Seu objetivo era o de facilitar o trabalho de programadores de ter de escrever diferentes versões de seus programas de computador para diferentes sistemas operacionais ou aparelhos. A plataforma Java, através do uso de uma máquina virtual, permitia a desenvolvedores de programas de computador escrever programas que conseguiam rodar em diferentes tipos de hardware sem ter de reescrever esses programas para cada tipo de máquina. Com Java, um programador podia escrever um programa uma vez e rodar em qualquer lugar[4].

O Java Virtual Machine (JVM) cumpria um papel central na plataforma Java. A programação Java em si – a qual inclui palavras, símbolos e outras unidades, assim como regras de sintaxe para usar esses símbolos para criar instruções – é a linguagem em que um programador de Java escreve códigos-fonte, a versão de um programa que é compreensível numa “linguagem humana”. Para as instruções serem executadas, elas precisariam ser convertidas em código binário, consistindo em 0s e 1s, os quais seriam entendidos por um autômato em particular. No sistema Java, o código-fonte era primeiro convertido em bytecode, uma forma intermediária, antes de ser convertida em código binário pelo JVM que fora desenhado para aquele autômato[5].

A empresa Sun escreveu certo número de programas Java pré-programados para realizar funções de computação comuns e organizou esses programas em grupos que chamou de ‘pacotes’. Esses pacotes, que são os APIs (Application Programming Interfaces) em discussão na apelação, permitem que programadores utilizem esse código pré-programado para desenvolver certas funções em seus próprios programas, ao invés de ter de escrever do zero seus próprios códigos para realizar essas mesmas funções. Eles são atalhos. A empresa Sun chamou o código para uma específica operação (função) de ‘método’. Ela definiu ‘classes’ para que cada classe consista de métodos específicos somadas as variáveis e outros elementos nos quais os métodos operariam. Para organizar essas classes para os usuários, então, ela agrupou essas classes (juntamente de outras ‘interfaces’ relacionadas) em ‘pacotes’. Tanto a Oracle quanto a Google não contestaram a analogia da corte: a coleção de pacotes de API da Oracle é como uma livraria, cada pacote é como uma estante na livraria, cada classe é como um livro na estante e cada método como um capítulo de instruções em um livro[6].

Apresentadas as principais ideias de Wittgenstein – a relação das linguagens naturais com as linguagens de programação e o conceito de API – passa-se agora à descrição do caso Oracle vs. Google


2. O CASO ORACLE AMERICA, INC. V. GOOGLE, INC.

A disputa de Copyright entre as empresas Oracle e Google envolvia 37 pacotes de código-fonte, os quais, conforme visto anteriormente, eram chamados de APIs. A primeira empresa moveu ação judicial em face da segunda na Corte distrital da Califórnia, alegando que o sistema operacional Android da Google infringia os Direitos de Propriedade Intelectual da Oracle na utilização desses 37 pacotes.

Essa Corte Distrital determinara que a Google teria de fato replicado esses 37 pacotes de API (incluindo sua estrutura, sequência e organização), mas considerou que esses pacotes não estariam sujeitos a proteção de Copyright. Em decorrência dessa decisão, a Oracle apelou para a Corte Federal do Nono Circuito por considerar que esses pacotes estariam sim sujeitos à proteção pelo Copyright, por serem de sua autoria e possuírem elementos criativos suficientes para determinar sua titularidade sobre a programação.

Em sua defesa, a Google argumentou que (1) haveria somente uma maneira de se escrever o método Java de modo a permanecer funcional com outros sistemas; e (2) a organização e a estrutura dos 37 pacotes API Java seria uma “estrutura de comando” excluída da proteção de Copyright de acordo com a já mencionada seção 102(b) do DMCA[7]. Assim se lê do aludido dispositivo legal:

Em caso algum a proteção por Copyright de um trabalho autoral original se estende a qualquer ideia, procedimento, processo, sistema, método de operação, conceito, princípio ou descoberta, não importando a forma em que é descrito, explicado, ilustrado ou incorporado em tal trabalho.{C}[8]{C}

O tribunal destacou, contudo, que o Copyright Act concede proteção legal a “trabalhos autorais originais fixados em qualquer meio de expressão tangível”, incluindo “trabalhos literários” (17 U.S.C. § 102a). Não se contestou que programas de computador – definidos no Copyright Act como “um grupo de declarações ou instruções para serem utilizadas direta ou indiretamente em um computador com o objetivo de trazer certo resultado” (17 U.S.C. § 101) – podem ser sujeitos a proteção por Copyright como trabalhos literários[9]. Frisou-se que tal programa deve ser expresso em um meio tangível e que ele deve ser original.

Insistindo em sua argumentação, a Google fez uso da Merger Doctrine. De acordo com essa teoria, a Corte não deveria defender um trabalho protegido por Copyright de infrações se a ideia contida nele só puder ser expressa de uma maneira. Para programas de computador isso significa que quando específicas partes do código, mesmo protegido, são a única e essencial maneira de cumprir determinada tarefa, seu uso por terceiros não será considerado como infração[10]. Essa teria sido a principal argumentação utilizada pela corte distrital da Califórnia para determinar que os 37 pacotes de API não poderiam ser protegidos por Copyright.

Em sua apelação, a Oracle admitiu não poder exigir proteção por Copyright sobre a ideia de organizar funções de um programa ou na estrutura organizacional “método-pacote-classe” enquanto entidade abstrata. Ao invés disso, a Oracle arguiu pela proteção por Copyright somente em sua maneira particular de nomear e organizar cada um dos 37 pacotes de API de Java. A Oracle reconheceu, por exemplo, que ela não pode proteger a ideia de programas que abram uma conexão à internet, mas ela poderia proteger as específicas linhas de códigos utilizadas para realizar essa operação, pelo menos enquanto existirem outras linguagens disponíveis para exercer a mesma função. [11]

Assim, a Oracle reconheceu que a Google e outras empresas poderiam se utilizar da linguagem Java – assim como qualquer um poderia aplicar a língua inglesa para escrever um parágrafo sem violar o Copyright de outros escritores da mesma língua. Na mesma linha, a Google poderia fazer uso da estrutura “método-pacote-classe”, assim como escritores podem se utilizar das mesmas regras gramaticais escolhidas por outros autores, sem medo de cometer uma infração. O que a Oracle contestou é que, além desse ponto, a Google, como qualquer outro autor, não está autorizada a empregar a precisa formulação ou estrutura escolhidas pela Oracle para implementar a substância dos seus pacotes – os detalhes e o arranjo da prosa – pelo fato de querer garantir a compatibilidade de seus programas com o sistema Java desenvolvido pela Sun[12].

Em sua decisão, a Corte comentou que, dado o fato de a capacidade de proteção por Copyright estar focada nas escolhas disponíveis ao requerente no período de criação do programa de computador, a questão da compatibilidade se centra em uma pergunta: se as escolhas do requerente seriam ditadas por uma necessidade de assegurar que o programa funcionaria com programas de terceiros à época. Se o réu, posteriormente à criação do programa pelo requerente, buscou fazer seu programa interoperável com o programa desse não tem relação com a potencial limitação de design que o programa do requerente teria em decorrência de fatores externos[13].

Dito de outra maneira: o foco estaria na necessidade de compatibilidade e escolhas de programação da parte que requer proteção por Copyright, e não nas escolhas feitas pelo réu para alcançar a compatibilidade com o programa do requerente. Consistente com essa argumentação, a corte reconheceu que uma vez que o requerente desenvolveu um trabalho passível de proteção (sua própria maneira de escrever os APIs) o desejo do réu de ‘atingir a compatibilidade total’ é um desejo competitivo e comercial, o qual não entra na questão de determinadas ideias e expressões terem se fundido, excluindo a aplicação da Merger Doctrine[14].

A Google poderia ter estruturado o Android de maneira diferente, tendo a opção de escolher diferentes caminhos de expressar e implementar a funcionalidade que ela copiou. Especificamente, a corte chegou à conclusão de que a mesma funcionalidade poderia ter sido oferecida no Android sem duplicar o exato mesmo comando utilizado no Java. As provas mostraram, inclusive, que a Google desenvolveu vários dos seus próprios pacotes API do zero e, assim, seria plausível que ela desenvolvesse os 37 pacotes API copiados da Oracle, caso ela quisesse fazê-lo[15].

A Google estava livre para desenvolver seus próprios pacotes API e a fazer um “lobby” para convencer programadores a os adotarem. Ao invés disso, ela escolheu copiar a estrutura, sequência e organização do código da Oracle para capitalizar na comunidade já existente de programadores que estavam acostumados a utilizar os pacotes API Java. Esse desejo não tinha qualquer relação com a possibilidade de proteção desses pacotes Java por Copyright ou não[16].

A corte descobriu que para o código Java funcionar com autômatos que utilizassem Android, a Google precisaria fornecer o mesmo sistema de comando pacote-classe-método-Java utilizando os mesmos nomes com a mesma taxonomia e especificações técnicas similares. Ademais, a corte concluiu que a Google replicou o que era necessário para atingir um grau aceitável de interoperabilidade, mas nada mais, deixando de fornecer seu próprio código[17].

Por essas razões, a corte federal do nono circuito, em 09 de maio de 2014, chegou à conclusão de que os 37 pacotes API Java seriam passíveis sim de proteção por Copyright. Do mesmo modo, ela concluiu que o argumento da Google de que esses pacotes seriam “padrões da indústria” necessários para a “conversa” entre diferentes sistemas não seria válido e que haveria diferentes maneiras de a Google implementar as mesmas soluções que ela copiara da Oracle.


3. ANÁLISE DO CASO ORACLE V. GOOGLE SOB A ÓTICA DE WITTGENSTEIN

Da análise do caso, percebe-se que a questão principal é se as linhas de código copiadas pelo Google poderiam ou não ser protegidas por Copyright. A Google não contesta ter utilizado os 37 pacotes API Java desenvolvidos pela antecessora da Oracle. Porém ela argumenta que eles não deveriam poder ser protegidos de qualquer maneira, por constituírem linguagem de programação necessária para que diferentes autômatos fossem compatíveis entre si.

Viu-se que o conceito de linguagem de Wittgenstein passa pela comparação desse com um jogo de linguagem, o qual determina a relação entre uma pessoa e seu objeto só ser possível se essa pessoa entendesse “o jogo”, ou seja, o sistema de regras que regula a relação entre os objetos e quem os percebe. Do mesmo modo, a partir do conceito de “regras do jogo”, Wittgenstein (2000, § 202) fundamenta seu conceito de ser impossível a existência de uma linguagem privada, pois:

...‘seguir a regra’ é uma práxis. E acreditar seguir a regra não é seguir a regra. E daí não podermos seguir a regra ‘privadamente’; porque, senão, acreditar seguir a regra seria o mesmo que seguir a regra.

Assim, visualizar linguagens pertencente a uma só entidade seria algo impossível para a teoria de Wittgesntein – tendo em vista que, de acordo com seu pensamento, as linguagens seriam compostas de regras, só fazendo sentido se pudessem ser compreendidas por todos. Pode-se dizer, com confiança, que uma linguagem é uma sequência de regras que descrevem procedimentos, processos, sistemas ou métodos de operação de determinada língua.

Essas descrições de procedimentos constituiriam justamente uma das exceções à aplicação da proteção por Copyright do DMCA americano, contido na seção 102(b) do já citado dispositivo legal:

Em caso algum a proteção por Copyright de um trabalho autoral original se estende a qualquer ideia, procedimento, processo, sistema, método de operação, conceito, princípio ou descoberta, não importando a forma em que é descrito, explicado, ilustrado ou incorporado em tal trabalho.

Isso permite a conclusão de que uma linguagem não poderia ser protegida pelo sistema de Copyright, pois suas regras, de caráter público, são constituídas de métodos de operação que recaem nas exceções da lei americana.

Já no que se refere às linguagens de programação, viu-se que os estudos e investigações realizados pelos lógicos-matemáticos com relação às linguagens artificiais formalizadas teriam a mesma origem dos estudos realizados por linguistas contemporâneos em torno da linguagem natural, conforme destacara Warat (1995, p. 11). Isso significa que para uma linguagem de programação como o Java poder ser difundida e utilizada por vários programadores, ela também precisaria se sujeitar a um sistema de regras e procedimentos semelhantes aos de uma linguagem como o português e o inglês.

Em termos práticos, isso quer dizer que aplicando a teoria de Wittgenstein uma linguagem de computação não poderia ser protegida por Copyright, assim como uma linguagem natural. Ela também é constituída de um sistema de regras que demanda a compreensão dos seus usuários para permitir a interação entre homem e máquina/autômato ou entre autômatos.

Por isso, em um primeiro momento, poderia se vislumbrar a possibilidade de a Google ter aplicado a teoria de Wittgenstein em sua defesa à ação judicial movida pela Oracle, pois conforme consta no início do acórdão da Corte Federal do Nono Circuito “muitos desenvolvedores de programas de computador usam a linguagem Java, assim como os pacotes API da Oracle, para programar aplicativos (usualmente referidos como apps) para computadores, tablets, smartphones e outros aparelhos”.[18] Esse sistema de regras seria, então, essencial para programadores que utilizam Java.

A Google, inclusive, utilizou em sua defesa argumentos condizentes com a teoria de Wittgenstein, ao afirmar que haveria somente uma maneira de se escrever o método Java de modo a permanecer funcional com outros sistemas. Alegou, ainda, que a organização e a estrutura dos 37 pacotes API Java seria uma “estrutura de comando” excluída da proteção de Copyright de acordo com a seção 102(b) do DMCA.

A própria Oracle reconheceu que não poderia exigir proteção sobre a estrutura organizacional de uma linguagem de computação e admitiu que outras empresas poderiam se utilizar da linguagem Java, desenvolvida pela sua antecessora Sun Microsystems.

Porém, a fundamentação da Google começava a ruir quando se analisam mais a fundo os 37 pacotes API Java que ela teria copiado da Oracle. Os APIs seriam programas Java pré-programados para realizar funções de computação comuns, organizados em grupos chamados de ‘pacotes’. Relembra-se, aqui, da analogia da corte de que a coleção de pacotes de API da Oracle é como uma livraria, cada pacote é como uma estante na livraria, cada classe é como um livro na estante e cada método como um capítulo de instruções em um livro.

O que a Oracle alegou, e que foi eventualmente aceito pela corte, é que apesar de não poder proteger a linguagem Java, ela poderia pedir proteção por Copyright das específicas linhas de códigos utilizadas para realizar as funções de programação comuns. Foi levantada, ainda, a argumentação de que a Google teria desenvolvido seus próprios APIs para realizar outras funções em seu programa Android, mas não teria tornado esses APIs públicos por conta de uma escolha de mercado.

Isso levou à conclusão da corte de que o que a Google copiou da Oracle não foi uma linguagem de programação em si, mas sim a sua aplicação. Utilizando-se de uma analogia, a Google não se apropriado da língua inglesa, mas sim de uma série de livros escritos nessa língua para criar seu sistema Android.

Assim, em uma análise mais aprofundada do caso, percebe-se que a teoria de Wittgenstein não poderia ser aplicada a esse caso, pois o que a Google copiou da Oracle não foi um sistema de regras – que são públicas de acordo com sua teoria -, mas sim aplicações dessa regra que cumprem os requisitos de proteção da seção 102(a) do DMCA, de ser um trabalho autoral original fixado em qualquer meio tangível de expressão. A Google poderia ter desenvolvido seus próprios APIs, portanto, mas não o fez por uma estratégia comercial.


CONCLUSÃO

A análise filosófica de casos judiciais, que envolvem eminentemente elementos dogmáticos, se mostra desafiadora. Isso porque, em ações judiciais, o recurso a teorias pelas partes se faz, na sua grande maioria, de maneira instrumental. Os advogados trazem às suas petições os argumentos – incluindo os de elaboradas teorias jurídicas – que são convenientes à sua defesa. Reconhece-se, aqui, que não se poderia esperar a adoção de uma linha teórica coerente pela parte dos representantes legais das partes. É inerente à atividade advocatícia que se tenha de defender posições contraditórias, em diferentes casos. Se estivessem em lados opostos, seria até natural que os advogados da Oracle e da Google argumentassem de maneira diferente – ou até mesmo invertida – para assegurar a vitória de seus clientes.

Porém, a análise filosófica de casos não perde sua relevância, pois permite uma outra interpretação a leis e dogmas de determinado sistema legal. Pegue-se como exemplo algumas das exceções à proteção por Copyright do artigo 102(b) do DMCA: “ideia, procedimento, processo”. Por que foram escolhidas especificamente essas e por que nessa ordem?

Pela aplicação de Wittgenstein e de sua teoria da linguagem já se obtém parte dessa resposta: é porque uma linguagem é constituída de regras e procedimentos e esses devem ser necessariamente públicos para terem sentido, fazendo com que uma linguagem privada seja impossível. Não deixa de ser um exercício de imaginação, mas que auxilia na maior compreensão da matéria estudada.

Uma análise teórica desse viés dos casos também permite perceber algumas incongruências na argumentação utilizada pelas partes – que eventualmente podem lhes custar a vitória em uma ação. Como exemplo temos a Google, a qual argumentava que os APIs da Oracle deveriam ser públicos, porém não disponibilizava publicamente seus próprios APIs para o sistema Android. Isso fez com que o tribunal “percebesse” os intuitos comerciais da mesma e fez sua decisão ser tendencialmente mais favorável à Oracle.

Assim, ainda que uma argumentação baseada em Wittgenstein não seja possível no caso analisado, sua teoria tem muito mérito ao descrever as linguagens como sistemas de regras que devem ser públicas para garantir sua compreensão. Por fim, essa teoria também ajuda a entender como os programas de computador, que têm uma regulamentação legal recentíssima, devem ser entendidos dentro do direito para permitir a aplicação correta de conceitos jurídicos em casos que envolvam linguagem de programação.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Acórdão da Corte federal do Nono Circuito do caso Oracle America, Inc. v. Google, Inc. está disponível através do link: https://cyber.harvard.edu/people/tfisher/cx/2014_Oracle.pdf.

ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Autoral. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 04

BRITTO, Rafael. O Público e o Privado em Wittgenstein. Da Definição Ostensiva aos Jogos de Linguagem. Fortaleza, vol. I, N º 1, 2005, P. 79-98.

GLOCK, Hans-Johann. Dicionário Wittgenstein. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

HINTIKKA, J.; HINTIKKA, M. Uma investigação sobre Wittgenstein. Tradução de Enid Abreu Dobránszky. Campinas: Papirus, 1994.

MENEZES, Paulo Fernando Blauth. Linguagens Formais e Autômatos. 3. Ed. Porto Alegre: Editora Sagra Luzzatto, 2000.

RUY, Mateus Cazelato. O Conceito de Jogos de Linguagem nas Investigações Filosóficas de Wittgenstein. Londrina, vol. I, N º 1, 2008, p. 1-12.

VON WRIGHT, G. H. Ludwig Wittgenstein. A biographical sketch. Philosophical Review, Vol. 64, n. 4, 1955.

WACHOWICZ, Marcos. Direito Autoral. 1.ed. Florianópolis: Editora Gedai, 2010. Disponível em:http://www.gedai.com.br/sites/default/files/arquivos/artigo_marcoswachowicz_direitoautoral_6.pdf

WARAT, Luís Alberto. O direito e sua linguagem. 2. ed. Porto Alegre: Fabris, 1995.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. São Paulo: Ed. Nova Cultural (Col. Os Pensadores – trad.: José Carlos Bruni), 2000.


Notas

[1] Íntegra do acórdão em análise disponível em: https://cyber.harvard.edu/people/tfisher/cx/2014_Oracle.pdf

[2] Copyright seria a versão americana do Direito Autoral. Porém, ater-se-á a nomenclatura em inglês quando se referir a ele por conta de diferenças fundamentais entre o direito autoral brasileiro e o americano, especialmente no que se refere aos direitos morais do autor sobre a obra, ausentes no sistema americano. O objetivo é evitar a confusão entre os dois sistemas.

[3] Do original em inglês: Copyright protection subsists, in accordance with this title, in original works of authorship fixed in any tangible medium of expression, now known or later developed, from which they can be perceived, reproduced, or otherwise communicated, either directly or with the aid of a machine or device.

[4] Tradução livre do parágrafo 25 do Acórdão da Corte Federal do nono circuito no Caso Oracle vs. Google.

[5] Tradução livre do parágrafo 26 do Acórdão da Corte Federal do nono circuito no Caso Oracle vs. Google.

[6] Tradução livre do parágrafo 27 do Acórdão da Corte Federal do nono circuito no Caso Oracle vs. Google.

[7] Tradução livre do parágrafo 50 do Acórdão da Corte Federal do nono circuito no Caso Oracle vs. Google.

[8] Do original em inglês: In no case does copyright protection for an original work of authorship extend to any idea, procedure, process, system, method of operation, concept, principle, or discovery, regardless of the form in which it is described, explained, illustrated, or embodied in such work.

[9] Tradução livre do parágrafo 55 do Acórdão da Corte Federal do nono circuito no Caso Oracle vs. Google.

[10] Tradução livre do parágrafo 83 do Acórdão da Corte Federal do nono circuito no Caso Oracle vs. Google.

[11] Tradução livre do parágrafo 114 do Acórdão da Corte Federal do nono circuito no Caso Oracle vs. Google.

[12] Tradução livre do parágrafo 114 do Acórdão da Corte Federal do nono circuito no Caso Oracle vs. Google.

[13] Tradução livre do parágrafo 127 do Acórdão da Corte Federal do nono circuito no Caso Oracle vs. Google.

[14] Tradução livre do parágrafo 127 do Acórdão da Corte Federal do nono circuito no Caso Oracle vs. Google.

[15] Tradução livre do parágrafo 115 do Acórdão da Corte Federal do nono circuito no Caso Oracle vs. Google.

[16] Tradução livre do parágrafo 131 do Acórdão da Corte Federal do nono circuito no Caso Oracle vs. Google.

[17] Tradução livre do parágrafo 119 do Acórdão da Corte Federal do nono circuito no Caso Oracle vs. Google.

[18] Tradução livre do parágrafo 18 do Acórdão da Corte Federal do nono circuito no Caso Oracle vs. Google.



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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GONÇALVES, Lukas Ruthes. Oracle vs. Google: Uma leitura a partir de Wittgenstein. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6410, 18 jan. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/61385. Acesso em: 16 abr. 2024.