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Software gratuito? Inexigibilidade de licitação?

Uma breve análise sobre a oferta de programas de acesso a financiamentos consignados aos servidores dos municípios

Software gratuito? Inexigibilidade de licitação? Uma breve análise sobre a oferta de programas de acesso a financiamentos consignados aos servidores dos municípios

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Empresa de desenvolvimento de software pretende disponibilizar programa que habilita acesso facilitado a empréstimos consignados para servidores públicos municipais. Cabe inexigibilidade de licitação?

​A experiência como Procurador Jurídico de Município me permite vivenciar situações inusitadas. Dentre elas, a de manifestar em procedimentos cujas peculiaridades demonstram que, no estudo do Direito, nada é tão simples como parece. Recentemente me veio à mão um processo de aparente inexigibilidade de licitação. Uma empresa de desenvolvimento de software pretendia disponibilizar programa que habilitava o acesso facilitado a empréstimos consignados por parte dos servidores públicos municipais. Constatou-se que o programa era oferecido gratuitamente em regime de comodato.

Neste breve artigo, pretendo demonstrar as conclusões que cheguei ao enfrentar o tema prático relativo ao procedimento, limitando-me à inexigibilidade para licitação para a contratação em questão. Espero com isso corroborar com o aprofundamento do estudo dos procedimentos licitatórios inaugurando, modestamente, o debate acerca da temática.

Sabe-se, a toda evidência, que a inexigibilidade configura-se quando a competição for inviável (e não disputa) (MENDES, 2018). Assim o procedimento licitatório será impossível de ser deflagrado, como disposto no art. 25, da Lei Federal nº 8.666/93 (Lei de Licitações e Contratos).

A inviabilidade da competição se caracteriza necessária não apenas quando a ausência de pluralidade de alternativas afasta a possibilidade de escolha entre diversas opções, pode se configurar inviabilidade de competição, para fins do art. 25, da Lei nº 8.666/96, mesmo quando existirem no mercado inúmeros particulares em condições equivalentes de desempenhar a prestação necessária à satisfação do interesse sob tutela estatal. Nesse caso, será necessário justificativa robusta (art. 26) (JUSTEN FILHO, 2010).

É que o estudo dos três incisos do art. 25 demonstra situações distintas entre si. A análise delas é muito esclarecedora, nesse ponto. Evidencia que o conceito de “inviabilidade competição” não é simples, tampouco homogêneo. Trata, na verdade, de uma pluralidade de situações que podem ser muito diversas entre si. Por isso a função dos três incisos do art. 25 não é meramente exemplificativa e estabelece regras restritivas e severas, a propósito dos requisitos de contratação direta, para as hipóteses por eles disciplinadas.

A compreensão do conceito de inviabilidade de competição resulta, por isso, não apenas de uma interpretação semântica, fundada na significação verbal das palavras. Compreender o que significa “inviabilidade de competição” depende do exame das três situações apontadas nos incisos do art. 25, as quais são emblemáticas.

Ali se indicam três manifestações fundamentais através das quais a competição não se pode instaurar, sendo evidentemente limitadas para aquisição de produtos “exclusivos” (inciso I), de serviços técnicos “singulares” (inciso II) e para contração de artistas de “empresários exclusivos” ou “consagrados pela crítica” (inciso III).

Note-se, conforme leciona Di Pietro, que a característica essencial é a impossibilidade de competição:

A diferença básica entre as duas hipóteses está no fato de que, na dispensa, há possibilidade de competição que justifique a licitação; de modo que a lei faculta a dispensa, que fica inserida na competência discricionária da Administração. Nos casos de inexigibilidade, não há possibilidade de competição, porque só existe um objeto ou uma pessoa que atenda às necessidades da Administração; a licitação é, portanto, inviável (2013, p. 77) (n.n)

Daí que pode se tornar um grande problema quando a exclusividade, a singularidade e até a consagração, se demonstram “comuns” a diversos contratantes. Por essa causa, a doutrina chega a ponderar, em razão da complexidade exposta, sobre a possibilidade de realização de sorteio e, mesmo espantosamente, a contratação discricionária (MELLO, 1998), para caso houvesse, aparentemente, identidade no que é oferecido (JUSTEN FILHO, 2018).

Todavia, no caso concreto submetido à análise, se ofereceu serviço gratuito para uso de software que habilita acesso a créditos financeiros consignados em instituições bancárias. Pode-se crer, supostamente, conforme se justificou a autoridade administrativa, que o aplicativo seria único para procedimentos de acesso a financiamento. Pelo que se estribou, apenas uma das empresas possuía o aplicativo que melhor se ajustava às necessidades do Município. Porém, é preciso considerar algumas questões que passo a discorrer.

Frisa-se, preliminarmente, que dificilmente se cogita de serviço gratuito no mundo privatista. Alguma vantagem financeira há de ter a empresa interessada (GASTALDI, 2005). As informações sobre as receitas e eventuais encargos da empresa sobre a instituição financeira e, por lógica, passível de repasse indireto aos servidores municipais, jamais é trazida aos procedimentos.

Outro detalhe a observar é que há conhecimento de inúmeras desenvolvedoras de softwares com programas que oferecem o mesmo tipo de aplicativo para acesso a financiamentos. Não é possível então cogitar de exclusividade, pura e simplesmente, por ser esta ou aquela que primeiro se apresenta ao Município. Tampouco singularidade, dado que a produção de “sistemas” há muito foge desta expressão. Não é, também, por ser gratuito que não deve haver a melhor contratação.

Então, para uma contratação destas, o perseguir o perfil esperado (acredita-se que para buscar singularidade - diga-se, conceito relativo), não necessariamente justifica inexigibilidade de licitação; pelo contrário, instrui opções específicas de interesse público para sua completa adequação à isonomia e a seleção da proposta mais vantajosa (art. 3º, Lei de Licitações).

Explico. Pois se há outras empresas que podem fornecer o software, por que não converter a contratação em vantagem e receita ao Município? Se há vantagens econômicas para empresas despenderem esforços financeiros para se estabelecerem comercialmente, por que não podem oferecer proposta financeira em certame licitatório? De graça não é, obviamente. Se existem outros softwares oferecidos no mercado, por quais qualidades tão especiais a empresa que primeiro se apresenta deveria receber tratamento diferenciado em exceção à isonomia? Claro que não.

Então uma proposta econômica só se daria em comodato modal (com encargo) para o qual se inverteria a favor do Município, mediante procedimento licitatório em que a empresa que ofereça o maior preço (aqui encargo) seja a comodatária (VENOSA, 2005). O instituto do direito privado guardaria correlação com a “permissão de uso” do direito público. Interessante, uma vez que não se trata de “bem público”, mas de informações públicas (por isso alguns podem crer se tratar de cessão). A analogia favorece a realização do ato em comodato.

Essa análise decorre do fato de não se visualizar a possibilidade de simples sorteio, muito menos escolha discricionária baseada na singela confiança, aqui com justificativa insuficiente para o ato (não cumpre com o que diz o art. 26, da Lei de Licitações). Isso diante da compatibilidade com recebimento de receita pelo Município.

Por fim, enaltece-se a cautela deste parecerista naquela ocasião, sem levantar suspeitas acerca da lisura de qualquer empresa interessada que se apresente aos Recursos Humanos com tal oferta, uma vez que as contratações desta natureza demandam desvelosa atenção, sobretudo depois do escândalo envolvendo a empresa e tecnologia Consist Software, contratada pela União para intermediar os empréstimos consignados feitos por bancos aos servidores federais, atualmente investigada pela Polícia Federal do Brasil, sendo que nela responde diretamente pelas acusações um ex-ministro de Estado (BEDINELI, 2018).

O próprio TCU, a exemplo do Acórdão n° 1.505/2007 – TCU, vem realizando auditorias em softwares desta natureza devido a problemas como a ocorrência de inclusão de consignações sem autorização do consignado; reinclusão indevida de consignações já excluídas ou finalizadas; exclusão indevida de consignações; alteração de valores a serem repassados aos consignatários; não cobrança de taxa de utilização de sistema para rubrica de consignação facultativa; inclusão de consignações facultativas em rubricas de consignações compulsórias e de despesas não legalmente previstas em rubricas de mensalidades; existência de rubrica de consignação não prevista legalmente; falta de controles no início do fluxo das consignações; ausência de critérios para punição de consignatário que age de modo irregular ou ilegal; dentre outros tantos apontamentos negativos.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

À luz do exposto, é possível concluir que uma melhor contratação de programas desta natureza se dê por comodato modal com oferta de vantagem econômica ao município interessado, revertendo-se em proveito financeiro aos cofres públicos. Admite-se, com isso, a realização de certame em modalidade sob escolha do ente municipal para colher a melhor oferta, sendo a inexigibilidade ou dispensa de procedimento licitatório a última opção.

Toda cautela, no entanto, é necessária aos pareceristas públicos ao se manifestarem em procedimentos instaurados para estabelecimento de contratos em regime de comodato de softwares com inexigibilidade ou dispensa de procedimento licitatório, uma vez que os órgãos de controle começaram a apreciar casos em que se verificaram inúmeros apontamentos negativos, prejudiciais aos servidores, ao erário e, em último grau, ao próprio advogado público que referendou a contratação.


REFERÊNCIAS

BEDINELI, Camila. Paulo Bernardo recebeu propina que lesou milhares de servidores, diz PF Ex-ministro petista foi beneficiado com cerca de 7 milhões de verba que aumentou valor de empréstimos consignados. Disponível em <https://brasil.elpais.com/brasil/2016/06/23/politica/1466699934_795832.html>. Acesso em: 26 fev 2018.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 23ª Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 26ª ed. São Paulo: Atlas, 2013.

GASTALDI, José Petrelli. Elementos de Economia Política. 19ª ed. São Paulo, Saraiva, 2005.

​JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 14º ed. São Paulo. Dialética. 2010.

MENDES, Renato Geraldo. A inexigibilidade de licitação na visão do TC. Disponível em: < https://static.zenite.com.br/portal/blog/Doutrina_1_Dr.Renato_ilc209.pdf> Acesso em: 6 abr 2018.

MELLO, Celso Antônio Bandeira. Legalidade – Discricionariedade, seus limites e controle. São Paulo: RT, 1988.


Autor

  • Renato Luiz Barbosa Brandão

    Advogado, Procurador Jurídico do Município de Jataí-Goiás, Pós-graduado em Direito e Direito Processual Civil. Professor do Curso de Direito da Universidade Federal de Jataí-Goiás, Ex-Professor do Curso de Direito do Centro de Ensino Superior de Jataí, membro da Comissão Especial de Regularização Fundiária do Município de Jataí.

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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRANDÃO, Renato Luiz Barbosa. Software gratuito? Inexigibilidade de licitação? Uma breve análise sobre a oferta de programas de acesso a financiamentos consignados aos servidores dos municípios. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5991, 26 nov. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/78065. Acesso em: 17 abr. 2024.