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Violência doméstica em tempos de confinamento obrigatório

a epidemia dentro da pandemia

Violência doméstica em tempos de confinamento obrigatório: a epidemia dentro da pandemia

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A pandemia mostrou uma grande realidade: não estamos no mesmo barco; só no mesmo temporal.

INTRODUÇÃO

O novo coronavírus (Covid-19) atingiu milhões de pessoas no mundo todo e o medo do contágio causou a necessidade de confinamento da população em diversos países, dentre eles o Brasil.

A pandemia provocou grande preocupação com a saúde e a economia, mas também deu causa ao aumento da violência doméstica e familiar sofrida por mulheres e crianças que, diante da necessidade de isolamento em seus lares, passaram a conviver dia e noite com seus agressores.

Foi nesse cenário que o secretário geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres[1], alertou que o “horrível aumento global da violência doméstica” dirigida a mulheres e meninas, em meio à quarentena imposta pelos governos na resposta à pandemia da COVID-19, necessita de medidas urgentes. Lembrou, ainda, que a violência não se limita ao campo de batalha e que, “para muitas mulheres e meninas, a ameaça parece maior onde deveriam estar mais seguras: em suas próprias casas”.

No Brasil, isso não foi diferente. O aumento da violência contra mulheres e crianças no ambiente doméstico e familiar durante a quarentena tem sido uma constante. Entretanto, é fato que, mesmo antes da pandemia, a violência contra as mulheres já era uma das grandes violações de direitos humanos ocorridas no País, que, segundo relatório da HumanRightsWatch (ACEBES, 2017), caminha para ocupar o primeiro lugar no ranking de violência doméstica e familiar.

Dentro dessa perspectiva, é preciso compreender o sistema legal e social que envolve a proteção da mulher, como também analisar o complexo e dinâmico fenômeno da violência na nossa sociedade, frente à pandemia existente.


1 AS NORMAS DE PROTEÇÃO ÀS MULHERES VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

O Brasil, no âmbito internacional, assumiu o compromisso de garantir um tratamento igualitário e a eliminar toda forma de discriminação contra as mulheres, ao ratificar instrumentos internacionais[2] e interamericanos[3]. Porém, a mulher ainda é tratada de forma preconceituosa e mediante estereótipos discriminatórios.

As mulheres constantemente são retratadas por parcela das autoridades públicas como uma “categoria suspeita”, com fundamento em estereótipos e falsas crenças de que elas exageram nos relatos sobre violência ou mentem. E, ainda, que se valem de seus direitos por razões de vingança ou para obter vantagem indevida, como também são corresponsáveis pelos crimes sexuais em razão de “provocarem” os homens com determinadas vestimentas ou condutas que eles consideram “inadequadas”. Assim, por exemplo, são, por diversas vezes, essas condições levadas em consideração em maior medida do que os princípios constitucionais como isonomia, boa-fé, devido processo legal e ampla defesa, na análise das provas processuais e na elaboração da decisão judicial (SEVERI, 2016).

Vale dizer, a discriminação da mulher é questão certa nahistória da humanidade e é fácil observar que ela sempre foi ignorada ou teve seu papel minimizado. Até na mitologia grega, conta-se que no Século VIII a. C., Telêmaco, filho de Ulysses, na Odisseia de Homero, assumiu o poder de decisão no lugar do pai (que estava ausente em razão da guerra de Tróia) e determinou que sua mãe Penélope se limitasse ao espaço interno da casa e se ocupasse dos trabalhos de tear e costura.

A violência contra mulher é, portanto, estrutural no Brasil, e tão enraigada que se reproduz de forma automática, natural.

O preconceito está presente na forma de pensar de muitas pessoas, ainda que estas não sejam capazes de perceber tal fato.

O maior risco para a mulher está na sua posição social fundada no domínio ou lógica patriarcal. Desde o seu nascimento, é amparada por uma sociedade que permite e reduz o seu papel na sociedade. Temos maioria de mulheres na população brasileira, mas no Poder Legislativo Federal, Estadual ou Municipal são minorias. Isso se repete no Poder Judiciário, na Polícia Civil e em diversos outros órgãos públicos e setores privados.

É interessante observar que a Constituição Federal de 1988 desde o seu preâmbulo preza pela igualdade entre homens e mulheres. Entretanto, a desigualdade, a discriminação e o preconceito ainda imperam.

Deve-se acrescentar que existe um crescimento muito superior da violência letal entre mulheres negras em comparação com as não negras, o que demonstra a grande dificuldade do Brasil em garantir e implementar a universalidade de suas políticas públicas (IPEA, 2019).

Dados do Atlas de Violência de 2019 (IPEA, 2019) apontam a desigualdade racial a partir da comparação entre mulheres negras e não negras vítimas de homicídio, sendo que “enquanto a taxa de homicídios de mulheres não negras teve crescimento de 4,5% entre 2007 e 2017, a taxa de homicídios de mulheres negras cresceu 29,9%. Em números absolutos, a diferença é ainda mais brutal, já que entre não negras o crescimento é de 1,7% e entre mulheres negras de 60,5%. Considerando apenas o último ano disponível, a taxa de homicídios de mulheres não negras foi de 3,2 a cada 100 mil mulheres não negras, ao passo que entre as mulheres negras a taxa foi de 5,6 para cada 100 mil mulheres neste grupo”.

O leitor deve estar questionando o que pode ser feito diante do império da violência e da discriminação contra mulheres e meninas? Vejamos.

A Convenção de Belém do Pará (norma supralegal), em seu artigo 7º, letra b, estabelece o dever de agir do Estado, com o devido zelo, para prevenir, investigar e punir a violência contra a mulher (BRASIL, 1996).

A Lei 11.340/2006 surge diante de um contexto internacional, com forte recomendação[4] da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, diante da violação de Direitos Humanos de Maria da Penha Maia Fernandes[5], para prevenir e coibir a violência do gênero no ambiente doméstico, familiar ou de uma relação íntima de afeto.

Em que pese tudo isso, a violência doméstica e familiar contra a mulher ainda é crescente. Logo, é preciso fortalecer as políticas públicas de prevenção e educação. Mas não se resume a isso.

É necessário um diálogo entre as redes de enfrentamento. É preciso a capacitação dos autores sociais e da comunidade jurídica para o devido acolhimento e atendimento da mulher vítima de violência doméstica e familiar.

A vítima não pode ser revitimizada. Não é admissível reproduzir o estereótipo causado pelo agressor. É nesse momento que entra a figura da autoridade policial e de sua equipe.

A Delegacia de Polícia é geralmente a porta de entrada da vítima de violência doméstica. Os gritos de socorro, a aflição e o medo da mulher estão presentes diante do primeiro garantidor da justiça: o Delegado de Polícia.

A Lei Maria da Penha fixa as regras para a inquirição de mulher em situação de violência doméstica e familiar ou de testemunha de violência doméstica, quais sejam (art.10-A,§1º):

I - salvaguarda da integridade física, psíquica e emocional da depoente, considerada a sua condição peculiar de pessoa em situação de violência doméstica e familiar;        

II - garantia de que, em nenhuma hipótese, a mulher em situação de violência doméstica e familiar, familiares e testemunhas terão contato direto com investigados ou suspeitos e pessoas a eles relacionadas;       

III - não revitimização da depoente, evitando sucessivas inquirições sobre o mesmo fato nos âmbitos criminal, cível e administrativo, bem como questionamentos sobre a vida privada.  

§ 2º Na inquirição de mulher em situação de violência doméstica e familiar ou de testemunha de delitos de que trata esta Lei, adotar-se-á, preferencialmente, o seguinte procedimento: 

 I - a inquirição será feita em recinto especialmente projetado para esse fim, o qual conterá os equipamentos próprios e adequados à idade da mulher em situação de violência doméstica e familiar ou testemunha e ao tipo e à gravidade da violência sofrida;  

 II - quando for o caso, a inquirição será intermediada por profissional especializado em violência doméstica e familiar designado pela autoridade judiciária ou policial;        

III - o depoimento será registrado em meio eletrônico ou magnético, devendo a degravação e a mídia integrar o inquérito. 

Deverá ainda a autoridade policialquando do atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar, entre outras providências (artigo 11):

I - garantir proteção policial, quando necessário, comunicando de imediato ao Ministério Público e ao Poder Judiciário;

II - encaminhar a ofendida ao hospital ou posto de saúde e ao Instituto Médico Legal;

III - fornecer transporte para a ofendida e seus dependentes para abrigo ou local seguro, quando houver risco de vida;

IV - se necessário, acompanhar a ofendida para assegurar a retirada de seus pertences do local da ocorrência ou do domicílio familiar;

V - informar à ofendida os direitos a ela conferidos nesta Lei e os serviços disponíveis, inclusive os de assistência judiciária para o eventual ajuizamento perante o juízo competente da ação de separação judicial, de divórcio, de anulação de casamento ou de dissolução de união estável. 

Extremamente importante é o procedimento constante do artigo 12, inciso VI-A, que determina à autoridade policial o dever de verificar se o agressor possui registro de porte ou posse de arma de fogo e, na hipótese de existência, juntar aos autos essa informação, bem como notificar a ocorrência à instituição responsável pela concessão do registro ou da emissão do porte, nos termos do Estatuto do Desarmamento.

Vale acrescentar a possibilidade de a autoridade policial requisitar os serviços públicos necessários à defesa da mulher em situação de violência doméstica e familiar e de seus dependentes e, ainda se restar evidenciado a existência de risco atual ou iminente à vida ou à integridade física da vítima ou de seus dependentes, o agressor será imediatamente afastado do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida pelo delegado de polícia, quando o Município não for sede de comarca.

Temos ainda as medidas protetivas de urgência que representam um verdadeiro instrumento para salvaguardar a vida, a saúde e o patrimônio da mulher vítima de violência doméstica.

Deve ser ressaltado que as medidas protetivas de urgência que obrigam o agressor, como também as destinadas à vítima de violência doméstica e familiar constantes da Lei Maria da Penha, são apenas exemplificativas. Logo, a autoridade policial, a pedido da ofendida, poderá solicitar ao juiz a medida protetiva adequada a necessidade existente.

Assim, poderá ser determinado pelo juiz, dentre outras, as seguintes medidas protetivas de urgência: suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente; o afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida; a proibição de aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor; do contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação; de frequentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida; restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar; prestação de alimentos provisionais ou provisórios; comparecimento do agressor a programas de recuperação e reeducação e acompanhamento psicossocial do agressor, por meio de atendimento individual e/ou em grupo de apoio.

Poderá ainda o juiz conceder à ofendida as seguintes medidas protetivas de urgência: encaminhamento da ofendida e seus dependentes a programa oficial ou comunitário de proteção ou de atendimento; determinar a recondução da ofendida e a de seus dependentes ao respectivo domicílio, após afastamento do agressor; determinar o afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo dos direitos relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos; determinar a separação de corpos; determinar a matrícula dos dependentes da ofendida em instituição de educação básica mais próxima do seu domicílio, ou a transferência deles para essa instituição, independentemente da existência de vaga.

Para a proteção patrimonial dos bens da sociedade conjugal ou daqueles de propriedade particular da mulher, o juiz poderá determinar, liminarmente, as seguintes medidas, entre outras: restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à ofendida; proibição temporária para a celebração de atos e contratos de compra, venda e locação de propriedade em comum, salvo expressa autorização judicial; suspensão das procurações conferidas pela ofendida ao agressor; prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas e danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a ofendida.

Percebe-se que temos instrumentos hábeis para a devida proteção da mulher, mas tudo isso depende da sensibilidade do aplicador para reconhecer qual medida ou providência deve ser a mais adequada ao caso, seja ele a Autoridade Policial, o Ministério Público ou o Juiz.


2 DADOS TÉCNICOS DA PANDEMIA E A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER

Foi em meados de março de 2020, com a intensificação da pandemia da Covid-19 em todo o mundo, e especificamente no Brasil, que diversos Estados do país adotaram medidas de isolamento social com o objetivo de minimizar a contaminação da população pelo novo Coronavírus, e, de eficácia realmente comprovada e de extrema necessidade, essas medidas são imperativas, contudo, o isolamento social acabou por mostrar um lado sombrio no seio social.

A situação de confinamento domiciliar tem demonstrado, como possível efeito colateral, consequências perversas para as milhares de mulheres brasileiras em situação de violência doméstica, na medida em que elas não apenas são obrigadas a permanecerem em casa com seus agressores, mas também, têm dificuldades em ter acesso às Delegacias de Defesa da Mulher (uma vez que seu algoz encontra-se em casa em integral tempo), às redes de proteção e aos canais de denúncia, como o Disque 181 no Estado de São Paulo, e o Disque 100 em nível federal.

A Pesquisa Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (2019), realizada pelo Instituto de Pesquisa DataSenado[6], em parceria com o Observatório da Mulher contra Violência, aponta que 78% das mulheres que sofreram violência doméstica foram agredidas pelos atuais ou pretéritos maridos, companheiros ou namorados. Aponta ainda que problemas econômicos causados pela redução da renda auferida e o aumento do consumo de álcool no período de isolamento social estão entre possíveis gatilhos para agressões.

Acrescente-se, ainda, que, de acordo com o estudo realizado com as entidades Amazônia Real, Agência Eco Nordeste, #Colabora, Portal Catarinas e Ponte Jornalismo sobre a violência doméstica entre os meses de março e abril de 2020, durante a pandemia do novo coronavírus, foi constatado que os casos de feminicídio no país aumentaram em 5% em relação a igual período de 2019. Somente nos dois meses, 195 mulheres foram assassinadas, enquanto em março e abril de 2019, foram 186 mortes. Entre os 20 estados brasileiros que liberaram dados das secretarias de segurança pública, nove registraram juntos um aumento de 54%, outros nove tiveram queda de 34%, e dois mantiveram o mesmo índice (PONTE, 2020).

Segundo o referido estudo, nos 20 Estados analisados, a média observada foi de 0,21 feminícidios por 100 mil mulheres. A taxa ficou acima da média em 11 estados, os quais detêm 40% da população feminina do total analisado e foram responsáveis por 59% das mortes (115 feminícidios)[7], constatando que “a violência doméstica não diminuiu, ela está mais privada do que nunca; a mulher que vive com um agressor já vivia isolada, agora ela está praticamente em cárcere privado” (PONTE, 2020).

O estudo também advertiu para a frequência da subnotificação no período da pandemia da Covid-19, período em que há dificuldades, por parte das mulheres, em se comunicar, acessar os canais de denúncia e até mesmo para chegar fisicamente até estes canais ou até as Delegacias de Polícia, o que é preocupante, visto que esses registros são fundamentais para romper o ciclo da violência e, consequentemente, conter da violência física e o feminicídio.

De acordo com este estudo, houve um aumento de 41% no número de feminicídios no Estado de São Paulo, e uma redução de registros de 22% e 33% nos crimes de lesão corporal e ameaça, respectivamente. O crescimento de 431% nos relatos no Twitter de brigas de casal com indícios de violência doméstica, segundo relatório, divulgado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) em abril deste ano, é outro fator que aponta a subnotificação dos casos (PONTE, 2020)

Para além dos números que possibilitam analisar a dimensão dos crimes de ódio à condição da mulher no ambiente doméstico, a reportagem trouxe relatos de mulheres que se viram enclausuradas com companheiros que usam da força para submetê-las à condição de cárcere privado e tortura, durante a pandemia do novo Coronavírus. Para ter acesso aos relatos de violência doméstica, as cinco mídias envolvidas na série lançaram um pequeno formulário com questionário fechado. Ao final, a mulher pode deixar seu número de Whatsapp para que alguma jornalista entre em contato. Em todo o processo, o anonimato foi mantido para a proteção das vidas das mulheres; o formulário ficará ativo até dezembro de 2020. Algumas das mulheres contaram pela primeira vez o que ocorreu em seus lares que, longe de trazerem tranquilidade, são lugares em que a violência de gênero se manifesta de maneira ainda mais desproporcional. Os relatos estão nas reportagens das cinco regiões do País:

Angela*, 31, moradora de São Luís, no Maranhão, decidiu dar um basta à violência doméstica. Mesmo já tendo feito uma denúncia em uma delegacia perto de sua casa, as agressões não cessavam. E então ela decidiu, correndo todos os riscos, pedir proteção em meio ao isolamento social imposto pela pandemia do novo coronavírus. Encontrou a proteção na Casa da Mulher Brasileira, uma instituição que existe desde 2017 na capital maranhense. “Toda vez meu marido chegava em casa me agredindo. Isso acontece já de muito tempo, e era sempre na frente dos meus filhos”, afirmou Angela. Na Casa da Mulher Brasileira, ela fez um relato das agressões. “E aquilo ali tudo já foi me coisando e eu não aguentei mais, e resolvi pedir ajuda aqui. Isso já faz tempo, tempo demais. A agressão dele é mais quando ele bebe. Quando ele tá bonzinho, não fala essas coisas, só mais quando está alcoolizado com a bebida”. (PONTE, 2020).

Segundo a reportagem, a Organização Mundial da Saúde alertou sobre o aumento da violência doméstica na pandemia da Covid-19. A Itália, por exemplo, que iniciou o isolamento social mais cedo do que o Brasil, registrou um aumento de 161,71% nas denúncias telefônicas entre os dias 1º e 18 de abril de 2020, de acordo com o Ministério da Família e da Igualdade de Oportunidades. Na Argentina, o canal de denúncias, “Linha 144”, teve um aumento de 39% na segunda quinzena de março. No Brasil, o número de denúncias feitas pelo “Ligue 180” aumentou 34% entre março e abril deste ano, em relação a 2019, segundo o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos; ao comparar apenas o mês de abril de 2020, o crescimento de denúncias foi de 36%.

O monitoramento da série “Um vírus e duas guerras” (PONTE, 2020) foi realizado a partir de dados de feminicídios e violência doméstica solicitados às Secretarias de Segurança Pública dos 26 estados brasileiros e do Distrito Federal. Cada iniciativa de mídia independente ficou responsável por uma região do país. Amazônia Real pelas regiões Norte e Centro-Oeste, Agência Eco Nordeste pela região homônima ao nome da mídia, Portal Catarinas pelo Sul, e #Colabora e Ponte Jornalismo pela região Sudeste.

O monitoramento levantou os dados parciais sobre violência doméstica nos Estados, mas em algumas regiões os números fornecidos foram incompletos para fazer cruzamento no quadrimestre 2019/2020. Além disso, cada Estado tem uma forma diferente de classificar os crimes compreendidos como violência doméstica, tipificados pela Lei Maria da Penha. Em alguns deles, nem mesmo há separação entre violência doméstica geral e violência doméstica contra as mulheres, como é o caso do Paraná. Em Santa Catarina, enquanto o feminicídio é tratado com atenção pelas autoridades que divulgam os números atualizados em relatório semanais, não é possível fazer uma série histórica dos casos de violência doméstica, ou mesmo um comparativo com o ano anterior porque, segundo a assessoria de imprensa da Secretaria de Segurança Pública, houve uma reformulação do sistema que integrou os registros das polícias civil e militar, o que impossibilitaria a divulgação dos dados anteriores para comparativo.

Também foram analisados os dados do primeiro quadrimestre de 2020 comparado a igual período de 2019. O Estado do Pará registrou um número três vezes maior de feminicídios neste período em comparação ao ano anterior. No Acre essa ocorrência quase dobrou. O Rio Grande do Sul teve um acréscimo de 70% e São Paulo de 29%. Já o Mato Grosso teve uma alta de mais de 40% nos casos de feminicídio. O Estado do Acre lidera os números de feminicídios no quadrimestre, com uma taxa de 1,32 casos por grupo de 100 mil mulheres, seguido por Mato Grosso 1,26; Sergipe 0,67; Rio Grande do Sul 0,62; e Pará 0,59.

Há que se consignar, por derradeiro, os estudos realizados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) 2020. Os números levantados, desde o início da vigência das medidas de isolamento social, segundo o FBSP 2020, observaram que, mês após mês, houve uma redução em uma série de crimes contra as mulheres em diversos estados – indicativo de que as mulheres estão encontrando mais dificuldades em denunciar a(s) violência(s) sofridas neste período. A única exceção é o tipo mais grave de violência: a violência letal. Os levantamentos periódicos elaborados pelo FBSP têm mostrado, em todos os meses, aumentos nos índices de feminicídios e/ou homicídios em diversos estados. De forma análoga, os dados também indicam uma redução na distribuição e na concessão de medidas protetivas de urgência, instrumento fundamental para a proteção da mulher em situação de violência doméstica (FBSP, 2020).

A terceira edição desta nota técnica do FBSP 2020 teve como objetivo atualizar os dados sobre violência doméstica durante a pandemia de Covid-19 e a vigência das necessárias medidas de isolamento social impostas em decorrência dela. Desde o início do isolamento social, o FBSP tem publicado, periodicamente, dados sobre registros oficiais de violência contra meninas e mulheres durante o período, com o objetivo de compreender como a pandemia tem afetado a vida de mulheres em situação de violência doméstica e familiar.

A edição do FBSP 2020, que foi analisada no presente estudo, contou com dois tipos de informação sobre o tema: (1) os registros de ocorrência lavrados pelas Polícias Civis; (2) as Medidas Protetivas de Urgência distribuídas e concedidas pelos Tribunais de Justiça. A partir dos registros de ocorrência, foram coletados dados de feminicídios, homicídios dolosos, lesão corporal dolosa, estupro e estupro de vulnerável e ameaça para doze Unidades da Federação: Acre, Amapá, Ceará, Espírito Santo, Maranhão, Mato Grosso, Minas Gerais, Pará, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul e São Paulo. Essas Unidades da Federação foram selecionadas para coleta de dados por conta de sua rapidez e transparência na compilação e divulgação de estatísticas sobre violência contra a mulher.

Para auxiliar a presente análise, e com delimitação ao tema proposto, foram verificados apenas os dados estatísticos sobre feminicídios e homicídios de vítimas do sexo feminino.

No período entre março e maio de 2020, houve um pequeno aumento de 2,2% nos casos de feminicídios registrados em comparação com o mesmo período de 2019 – foram 189 casos este ano, contra 185 no ano passado. No período acumulado, o estado do Acre apresentou um aumento de 400% nos registros, que passaram de 1 em 2019 para 5 em 2020. No Mato Grosso, esse aumento de 157,1% nos registros, passando de 7 para 18. O Maranhão foi de 11 casos para 20, aumento de 81,8% nos registros. Já o Pará teve um crescimento de 75% nos registros – de 8 para 14. Alguns estados, por outro lado, apresentaram reduções nos registros de feminicídios no mesmo período. É o caso dos estados do Amapá (100%), Rio de Janeiro (44%) e Espírito Santo (42,9%).

De acordo com o FBSP 2020, diferente dos meses anteriores, em maio de 2020 houve uma queda de 27,9% nos registros de feminicídios nos estados analisados em relação a 2019 – os dados de março apresentaram 38,9% de aumento nos registros, enquanto os de abril mostraram um crescimento de 3,2%. Os homicídios dolosos com vítimas do sexo feminino, por outro lado, aumentaram 7,1% no mês de maio, passando de 127 em 2019 para 136 em 2020. Os aumentos mais expressivos foram o do Ceará (208,3%), do Acre (100%) e do Rio Grande do Norte (75%). No acumulado entre março e maio, houve apenas um pequeno crescimento nos registros, que foram 382 vítimas em 2019 para 386 em 2020.

Foi constatado também que, nos meses de março e abril de 2020, houve um aumento no percentual de homicídios de mulheres classificados como feminicídios em relação aos mesmos meses de 2019, esse percentual caiu no mês de maio. Em março de 2019, 27,9% dos casos de homicídio com vítimas mulheres foram considerados feminicídios, contra 34,3% no mesmo mês de 2020. De maneira similar, em abril de 2019, 26,6% dos homicídios foram classificados como feminicídios, passando para 31,7% em abril de 2020. Já em maio, essa tendência de aumento na proporção de homicídios femininos classificados como feminicídios se inverte, passando de 33,9% em maio de 2019 para 24,4% em maio de 2020.

Importante ressaltar que, de acordo com conclusão do FBSP 2020, o aumento nos casos de feminicídios apontou para dois possíveis fenômenos: a diminuição na violência letal contra as mulheres motivada por questões de gênero; ou uma piora no registro inicial dos feminicídios no mês de maio de 2020.

O que se pode constatar do estudo da série “Um vírus e duas guerras”, e pelos levantamentos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) 2020, é que, infelizmente, houve um aumento dos casos de feminicídios, tentados e consumados, bem como aumento da violência doméstica e familiar. É o que mostra o estudo criminológico. Assim, por questões de Política Criminal, alertando o legislador, fez-se por bem acionar o Direito Penal, sancionado leis para coibir este tipo de violência, como a recentíssima lei excepcional nº 14.022/2020, que será tratada a partir de agora, com as medidas de enfrentamento à violência doméstica durante a pandemia da Covid-19.


3. LEI 14.022/2020: MEDIDAS DE ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA DOMÉSTICA DURANTE A PANDEMIA DA COVID-19

Como cediço, nesse período de pandemia decorrente do novo Coronavírus, desde março de 2020, foram impostas várias restrições aos cidadãos procurando coibir o alastramento do vírus em território nacional, e, dentre muitas, impostas internacionalmente ou não, está o chamado “isolamento social”. Infelizmente, conforme exposto no estudo anteriormente analisado (PONTE, 2020), por razões sociológicas e criminológicas que ainda precisam ser estudadas, verificou-se que esse confinamento social gerou um aumento no número de casos de violência doméstica e familiar contra as mulheres.

Por questões de Política Criminal, visando a coibir o constatado, foi editada a Lei nº 14.022/2020, que prevê medidas para enfrentamento da violência doméstica e familiar contra as mulheres durante a pandemia da Covid-19 (BRASIL, 2020a). É uma lei excepcional[8] e veio em complementação à lei nacional da pandemia nº 13.979/2020 (também excepcional), que igualmente prevê grandes mudanças na legislação pátria (BRASIL, 2020b).

Elencando algumas mudanças legislativas, podemos citar o art. 3º da Lei nº 13.979/2020, que prevê, em seus incisos, nove medidas para enfrentamento ao Coronavírus, como, por exemplo, isolamento, quarentena, restrição excepcional e temporária da locomoção interestadual ou intermunicipal, requisição de bens e serviços, entre outros. O § 8º do mesmo artigo faz, contudo, uma ressalva, afirmando que essas medidas previstas nos incisos, quando adotadas, deverão resguardar o exercício e o funcionamento de serviços públicos e atividades essenciais (BRASIL, 2020b). Os serviços públicos e atividades essenciais foram listados pelo Decreto nº 10.282/2020.

A Lei nº 14.022/2020 acrescentou um novo parágrafo ao art. 3º da Lei nº 13.979/2020, afirmando que são essenciais os serviços e atividades voltados ao atendimento de:

• mulheres em situação de violência doméstica e familiar;

• crianças e adolescentes vítimas de crimes previstos no ECA ou no CP;

• pessoas idosas vítimas de crimes previstos no Estatuto do Idoso ou no CP;

• pessoas com deficiência vítimas de crimes previstos no Estatuto da Pessoa com Deficiência ou no CP.

Veja-se o dispositivo inserido:

Art. 3º (...)

§ 7º- C. Os serviços públicos e atividades essenciais, cujo funcionamento deverá ser resguardado quando adotadas as medidas previstas neste artigo, incluem os relacionados ao atendimento a mulheres em situação de violência doméstica e familiar, nos termos da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, a crianças, a adolescentes, a pessoas idosas e a pessoas com deficiência vítimas de crimes tipificados na Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), na Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003 (Estatuto do Idoso), na Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), e no Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal).

Para garantir que esse serviço essencial seja mantido, foi acrescentado o art. 5º-A à Lei nº 13.979/2020, prevendo que os prazos processuais, a apreciação de matérias, o atendimento às partes e a concessão de medidas protetivas devem continuar normalmente, e o registro de ocorrências relacionadas com essas infrações penais poderá ser feito por telefone ou meio eletrônico: 

Art. 5º-A Enquanto perdurar o estado de emergência de saúde internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019:

I - os prazos processuais, a apreciação de matérias, o atendimento às partes e a concessão de medidas protetivas que tenham relação com atos de violência doméstica e familiar cometidos contra mulheres, crianças, adolescentes, pessoas idosas e pessoas com deficiência serão mantidos, sem suspensão;

II - o registro da ocorrência de violência doméstica e familiar contra a mulher e de crimes cometidos contra criança, adolescente, pessoa idosa ou pessoa com deficiência poderá ser realizado por meio eletrônico ou por meio de número de telefone de emergência designado para tal fim pelos órgãos de segurança pública;

Parágrafo único. Os processos de que trata o inciso I do caput deste artigo serão considerados de natureza urgente.

É de se constatar, de forma inovadora, que o art. 3º traz o registro do Boletim de Ocorrência eletrônico para casos de violência doméstica (o que já estava sendo preconizado nas Delegacias de Polícia do Estado de São Paulo desde o início da pandemia da Covid-19); esta regulamentação trouxe uma certa segurança jurídica ao registro, um status de ato válido por ser esta lei uma diretriz nacional. A lei trouxe, também, em seu bojo, a possibilidade da vítima de, ela própria, requerer medidas protetivas por atendimento online - pode solicitar online a cautelar - ao registrar o BO eletrônico, a vítima pode fazer o pedido online, falando inclusive com suas próprias palavras, e isso, por certo, traduz com muito mais fidelidade o medo, a angústia, a situação de risco por que está passando.

A Autoridade Policial, ao validar o Registro Digital de Ocorrência, poderá considerar provas coletadas eletronicamente ou por outros meios audiovisuais (áudios, vídeos), em momento anterior à lavratura do boletim de ocorrência e a colheita de provas que exija a presença física da ofendida, havendo ainda a possibilidade de o Poder Judiciário proceder à intimação da ofendida e do ofensor por meio eletrônico.

Importante também direcionar a análise, ainda que muito superficialmente, para a edição, no ano passado, da Lei 13.827/2019, diploma normativo que alterou a Lei nº 11.340/2006para autorizar, nas hipóteses que traz em seu bojo, a aplicação de medida protetiva de urgência, pela autoridade judicial ou policial, à mulher em situação de violência doméstica e familiar, ou a seus dependentes, e para determinar o registro da medida protetiva de urgência em banco de dados mantido pelo Conselho Nacional de Justiça:

Art. 12-C. Verificada a existência de risco atual ou iminente à vida ou à integridade física da mulher em situação de violência doméstica e familiar, ou de seus dependentes, o agressor será imediatamente afastado do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida:

I- pela autoridade judicial;

II- pelo delegado de polícia, quando o Município não for sede de comarca; ou

III- pelo policial, quando o Município não for sede de comarca e não houver delegado disponível no momento da denúncia.

§1º Nas hipóteses dos incisos II e III do caput deste artigo, o juiz será comunicado no prazo máximo de 24 (vinte e quatro) horas e decidirá, em igual prazo, sobre a manutenção ou a revogação da medida aplicada, devendo dar ciência ao Ministério Público concomitantemente.

§2º Nos casos de risco à integridade física da ofendida ou à efetividade da medida protetiva de urgência, não será concedida liberdade provisória ao preso.

O diploma inovou em autorizar a concessão de medidas protetivas de urgência por Delegado de Polícia ou pelo “policial”, quando o município não for sede de comarca e não houver delegado disponível no momento da denúncia. Então, o referido diploma legal autoriza que, de forma subsidiária, o afastamento do agressor seja concedido pelo policial quando o município não for sede de comarca e “não houver delegado disponível no momento da denúncia”. Contudo, a norma penal carece de um complemento, de certo que, seu aplicador poderá se questionar qual policial poderia conceder a medida protetiva, se Policial Civil, Policial Militar, Policial Rodoviário, ou mesmo o Guarda Municipal?

Partindo de uma interpretação sistemática, comunga-se com o entendimento de Sannini Neto (2019), rogando ser apenas o Policial Civil o que teria legitimidade a aplicar a medida protetiva de afastamento, mas desde que haja uma análise do Delegado de Polícia de forma remota, ou seja, nas cidades em que não houver um Delegado de Polícia de plantão in loco, o caso deverá ser apreciado pela Autoridade Policial da cidade mais próxima, em analogia com o artigo 308 do CPP[9]. Ampara este argumento o fato de que, na maioria absoluta dos casos em que se verificar violência doméstica, familiar ou afetiva contra a mulher, haverá crime, e em havendo fato típico, subsumido à norma penal incriminadora, exige-se um juízo de tipicidade, que, em sede inquisitiva, somente pode ser efetivado por autoridade com formação jurídica para tanto, ou seja, o Delegado de Polícia, o que reforça que tal atribuição não pode sair da esfera das Polícias Judiciárias, dirigidas por Delegados de Polícia de carreira, bacharéis em Direito.

A Lei nº 14.022/2020 prevê também que o poder público deverá adotar as medidas necessárias para que, mesmo durante a pandemia, seja mantido o atendimento presencial de mulheres, idosos, crianças ou adolescentes em situação de violência. Isso já ocorre nas Delegacias de Polícia do Estado de São Paulo, em que atendimentos emergenciais e específicos nunca foram interrompidos, mesmo durante a crise sanitária.

Importante também frisar que o §3º do artigo 3º traz a questão do exame de corpo de delito. Mesmo durante a vigência da Lei nº 13.979/2020, ou mesmo durante o estado de emergência de caráter humanitário e sanitário em território nacional, deverá ser garantida a realização prioritária do exame de corpo de delito quando se tratar de crime que envolva violência doméstica e familiar contra a mulher e violência contra criança, adolescente, idoso ou pessoa com deficiência. Nos casos de crimes de natureza sexual, se houver a adoção de medidas pelo poder público que restrinjam a circulação de pessoas, os órgãos de segurança deverão estabelecer equipes móveis para realização do exame de corpo de delito no local em que se encontrar a vítima.

Em sendo o caso, após a concessão da medida protetiva de urgência de forma eletrônica, a autoridade competente, independentemente da autorização da ofendida, deverá:

§ 4º Na hipótese prevista no § 3º deste artigo, após a concessão da medida de urgência, a autoridade competente, independentemente da autorização da ofendida, deverá:

I - se for autoridade judicial, comunicar à unidade de polícia judiciária competente para que proceda à abertura de investigação criminal para apuração dos fatos;

II - se for delegado de polícia, comunicar imediatamente ao Ministério Público e ao Poder Judiciário da medida concedida e instaurar imediatamente inquérito policial, determinando todas as diligências cabíveis para a averiguação dos fatos;

III - se for policial, comunicar imediatamente ao Ministério Público, ao Poder Judiciário e à unidade de polícia judiciária competente da medida concedida, realizar o registro de boletim de ocorrência e encaminhar os autos imediatamente à autoridade policial competente para a adoção das medidas cabíveis.

Ainda, de acordo com a lei, se for necessário, poderá haver a adaptação dos procedimentos estabelecidos na Lei nº 11.340/2006 às circunstâncias emergenciais do período de pandemia. A adaptação dos procedimentos deverá assegurar a continuidade do funcionamento habitual dos Órgãos do Poder Público, descritos na Lei nº 11.340/2006, no âmbito de sua competência, com o objetivo de garantir a manutenção dos mecanismos de prevenção e repressão à violência doméstica e familiar contra a mulher e à violência contra idosos, crianças ou adolescentes:

Art. 5º. Se, por razões de segurança sanitária, não for possível manter o atendimento presencial a todas as demandas relacionadas à violência doméstica e familiar contra a mulher e à violência contra idosos, crianças ou adolescentes, o poder público deverá, obrigatoriamente, garantir o atendimento presencial para situações que possam envolver, efetiva ou potencialmente, os ilícitos previstos:

I - no Código Penal, na modalidade consumada ou tentada:

a) feminicídio (art. 121, § 2º, VI);

b) lesão corporal de natureza grave (art. 129, § 1º);

c) lesão corporal dolosa de natureza gravíssima (art. 129, § 2º);

d) lesão corporal seguida de morte (art. 129, § 3º);

e) ameaça praticada com uso de arma de fogo (art. 147);

f) estupro (art. 213);

g) estupro de vulnerável (art. 217-A);

h) corrupção de menores (art. 218);

i) satisfação de lascívia mediante presença de criança ou adolescente (art. 218-A);

II - na Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha): o crime de descumprimento de medidas protetivas de urgência (art. 24-A);

III - no ECA;

IV - no Estatuto do Idoso.

De acordo com o artigo 5º, as medidas protetivas deferidas em favor da mulher serão automaticamente prorrogadas e vigorarão durante a vigência da Lei nº 13.979/2020, ou durante a declaração de estado de emergência, sendo que o juiz competente providenciará a intimação do ofensor, que poderá ser realizada por meios eletrônicos, cientificando-o da prorrogação da medida protetiva. Obviamente essas medidas poderão ser revistas ou cessadas pelo Poder Judiciário caso se entenda necessário.

O art. 6º traz a obrigação de que as informações sobre denúncias de violência recebidas na esfera federal pela Central de Atendimento à Mulher - Ligue 180 - e pelo serviço de proteção de crianças e adolescentes com foco em violência sexual - Disque 100 - devem ser repassadas, com as informações de urgência, para os órgãos competentes, com prazo máximo de envio de 48 horas, salvo impedimento técnico.

Numa análise geral dessa nova lei, observa-se que há a tendência da flexibilização da prova: na hipótese em que as circunstancias dos fatos justifiquem a medida prevista, a autoridade competente poderá conceder qualquer uma das medidas protetivas de urgência previstas nos artigos 12-B, 12-C, 22, 23 e 24 da Lei nº 11.340/2006, de forma eletrônica, e poderá considerar provas coletadas eletronicamente ou por audiovisual, em momento anterior à lavratura do boletim de ocorrência e a colheita de provas que exija a presença física da ofendida – pode gravar vídeo e enviar eletronicamente, isso vai ser considerado, coletadas eletronicamente ou por outros meios audiovisuais; as intimações podem também ser feitas por meio eletrônico, também se admite como prova laudos médicos e atestados médicos, inclusive particulares.

Em todos os casos, a autoridade de segurança pública deve assegurar o atendimento ágil a todas as demandas apresentadas e que signifiquem risco de vida e a integridade da mulher, do idoso, da criança e do adolescente, com atuação focada na proteção integral.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

O enfrentamento à violência doméstica e familiar não é tarefa fácil. É preciso avançar.

A violência está presente no dia-a-dia de inúmeras mulheres, sendo certo que a pandemia intensificou tais fatos. Dados e diversas pesquisas demonstram a extensão dessa triste realidade no Brasil e no mundo.

Nesse cenário, para a efetividade da Justiça é essencial o acesso da Mulher ao Sistema. É preciso romper as barreiras do silêncio, destruir as amarras da discriminação e do preconceito, como também aumentar sua crença e confiança na Polícia e no Judiciário.

A polícia, em especial a autoridade policial, precisa manter um olhar atento à mulher vítima de violência, sendo indispensável sua afinidade com os instrumentos legais e convencionais existentes envolvendo a temática.

Deve-se enxergar as medidas protetivas de urgência no âmbito não apenas doméstico, mas também inserido no contexto internacional e interamericano, ou seja, realmente como um dever de proteger efetivamente a mulher que está em situação de violência.

Dessa forma, é imprescindível levar em consideração a necessidade adequada e a eficiência da medida protetiva: se a mulher tem que ficar, ou sair do lar; se tem filhos; se o agressor tem arma em casa; se a mulher carece de alimentos, dentre outras especificidades presentes no caso concreto.

Por fim, não podemos esquecer que toda discriminação gera injustiça e violência. Não há democracia enquanto os direitos humanos não forem respeitados. Não se pode aceitar a existência e o aumento da violência contra a mulher, o que, claramente, viola a Constituição e os princípios democráticos. A violência doméstica está em evidência e representa uma oportunidade de buscarmos avanços. Todos os seres humanos devem ser tratados com dignidade e igualdade de direitos para que cada um possa exercer sua forma de felicidade.

A pandemia mostrou uma grande realidade: não estamos no mesmo barco; só no mesmo temporal. Aqueles que são mais vulneráveis, como as mulheres, estão em situação pior. É preciso solidariedade e sororidade.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ACEBES, César Muñoz. “Um dia vou te matar”: Impunidade em casos de violência doméstica no estado de Roraima. HumanRightsWatch . 21 abr. 2017. Disponível em: https://www.hrw.org/pt/report/2017/06/21/305134. Acesso em: 03 ago. 2020.

BRASIL (2020a)Lei 14.022 de 7 de julho de 2020 – altera a Lei n. 13.979 de 6 de fevereiro de 2020, e dispões sobre medidas de enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher e de enfrentamento à violência contra crianças, adolescentes, pessoas idosas e pessoas com deficiência durante a emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019.

BRASIL (2020b).Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020. Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019.

BRASIL (2006). Lei 11.340, de 07 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 08 ago. 2006.

BRASIL (1996). Decreto nº 1973, de 1º de agosto de 1996, promulga a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará).

FBSP - Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Práticas inovadoras de enfrentamento à violência contra as mulheres:experiências desenvolvidas pelos profissionais de segurança pública – Casoteca FBSP. Organizador: Fórum Brasileiro de Segurança Pública.São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2017. – (Série Casoteca FBSP, v. 1). 144p.

FBSP - Fórum Brasileiro de Segurança Pública.Nota Técnica. Violência doméstica durante a pandemia de Covid-19. ed. 3, de 24 de julho de 2020.

IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.  Atlas da Violência 2019. Org. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Brasília: Rio de Janeiro: São Paulo: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada; Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2019.

ONU – Organizações das Nações Unidas. Declaração sobre a eliminação de violência contra a mulher. Proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas na Resolução 48/104 (20/12/1993). Disponível em: http://direitoshumanos.gddc.pt/3_4/IIIPAG3_4_7.htm. Acesso em: 26 jul. 2020.

PONTE. Um vírus e duas guerras: mulheres enfrentam em casa a violência doméstica e a pandemia da Covid-19, Reportagem de 18/06/20 por Amazônia Real, Agência Eco Nordeste, #Colabora, Portal Catarinas e Ponte Jornalismo. Disponível em: https://ponte.org/mulheres-enfrentam-em-casa-a-violencia-domestica-e-a-pandemia-da-covid-19/. Acesso em:19 jul. 2020.

SANNINI NETO, Francisco. Medidas protetivas de urgência podem ser decretadas pelo Delegado de Polícia. Canal Ciências Criminais. 2019. Disponível em:https://canalcienciascriminais.jusbrasil.com.br/artigos/708733355/medidas-protetivas-de-urgencia-podem-ser-decretadas-pelo-delegado-de-policia. Acesso em: 26 jul. 2020.

SEVERI, Fabiana Cristina.  Justiça em uma perspectiva de gênero: elementos teóricos, normativos e metodológicos. Revista Digital De Direito Administrativo, 3(3), 574-601. 2016. Disponível em: https://doi.org/10.11606/issn.2319-0558.v3i3p574-601. Acesso em: 15 mai.  2020.


Notas

[1] Notícia. “Chefe da ONU alerta para aumento da violência doméstica em meio à pandemia do coronavírus”. Disponível em: https://nacoesunidas.org/chefe-da-onu-alerta-para-aumento-da-violencia-domestica-em-meio-a-pandemia-do-coronavirus/. Acesso em: 15 mai. 2020.

[2] Convenção pela Eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres- Adotada pela Resolução n. 34/180 da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 18 de dezembro de 1979 e ratificada pelo Brasil em 1º de fevereiro de 1984. Disponível em: http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2013/03/convencao_cedaw1.pdf . Acesso em 15 mai. 2020.

[3] Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e erradicar a violência contra a mulher, adotada em 9 de junho de 1994 e ratificada pelo Brasil em 27 de novembro de 1995 (Convenção de Belém do Pará.) Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1996/D1973.htm. Acesso em 15 mai. 2020.

[4] Disponível em: https://www.cidh.oas.org/annualrep/2000port/12051.htm. Acesso em 01 maio 2020.

[5] O caso Maria da Penha representa a primeira vez que a CIDH aplicou a Convenção de Belém do Pará. Na CorteIDH, o primeiro precedente em que essa Convenção foi aplicada se encontra no Caso do Presídio Miguel Castro Castro.

[6] Disponível em:https://www12.senado.leg.br/institucional/omv/pdfs/violencia-domestica-em-tempos-de-covid19.

[7] O levantamento faz parte do monitoramento quadrimestral da série de reportagens “Um vírus e duas guerras”, que será publicada ao longo de 2020, e é resultado de uma parceria colaborativa entre as mídias independentes Amazônia Real, sediada no Amazonas; Agência Eco Nordeste, no Ceará; #Colabora, no Rio de Janeiro; Portal Catarinas, em Santa Catarina; e Ponte Jornalismo, em São Paulo. A série monitora os casos de feminicídios e de violência doméstica durante o período da pandemia, com objetivo de visibilizar esse fenômeno silencioso, fortalecer a rede de apoio e fomentar o debate sobre a criação ou manutenção de políticas públicas de prevenção à violência de gênero no Brasil (PONTE, 2020).

[8] De acordo com o art. 3º do CP, “A lei excepcional ou temporária, embora decorrido o período de sua duração ou cessadas as circunstâncias que a determinaram, aplica-se ao fato praticado durante sua vigência”. Excepcional é a lei elaborada para incidir sobre fatos havidos somente durante determinadas circunstâncias excepcionais, como situações de crise social, econômica, guerra, calamidades etc. Temporária é aquela elaborada com o escopo de incidir sobre fatos ocorridos apenas durante certo período de tempo. (ESTEFAM; GONÇALVES, 2020, p. 126).

[9] Artigo 308 do Decreto Lei nº 3.689 de 03 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal) - Não havendo autoridade no lugar em que se tiver efetuado a prisão, o preso será logo apresentado à do lugar mais próximo.


Autores

  • Francini Imene Dias Ibrahin

    Francini Imene Dias Ibrahin

    DELEGADA DE POLÍCIA CIVIL DO ESTADO DE SÃO PAULO. MESTRE EM DIREITO AMBIENTAL E POLÍTICAS PÚBLICAS PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAPÁ. ESPECIALISTA EM DIREITO ADMINISTRATIVO PELA PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO/SP. AUTORA DE ARTIGOS E LIVROS TÉCNICOS E JURÍDICOS. MEMBRO FUNDADORA DA COMUNIDADE DE JURISTAS DE LÍNGUA PORTUGUESA - CJLP.

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  • Amanda Tavares Borges

    Escrivã de Polícia na Polícia Civil do Estado de São Paulo. Mestre em Direitos Difusos e Coletivos pelo Centro Universitário Salesiano de São Paulo. Graduação em Direito pelo Centro Universitário Salesiano São Paulo. Especialista em Direito e Processo do Trabalho e Especialista em Direito Penal. Professora da Academia de Polícia de São Paulo. Professora universitária. Docente Civil na Polícia Militar do Estado de São Paulo.

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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

IBRAHIN, Francini Imene Dias; BORGES, Amanda Tavares. Violência doméstica em tempos de confinamento obrigatório: a epidemia dentro da pandemia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6298, 28 set. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/85555. Acesso em: 28 mar. 2024.