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Sistema prisional brasileiro: as veredas do estado de coisas inconstitucional

Sistema prisional brasileiro: as veredas do estado de coisas inconstitucional

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Reflexões sobre o Estado de Coisa Inconstitucional e a situação do sistema penitenciário brasileiro. Principais problemas, dilemas e desrespeitos aos direitos fundamentais.

Resumo: Este artigo tem como objetivo identificar o que é o Estado de Coisas Inconstitucional e a situação atual do sistema penitenciário brasileiro, apresentando seus principais problemas e desrespeito aos direitos fundamentais. Desrespeitos esses que refletem, sem dúvida alguma, um precário histórico prisional do Brasil, em que, raramente, foi respeitado algum direito dos que estavam por trás das grades. Hoje, esse histórico é exposto com a declaração do Estado de Coisas Inconstitucional nesse meio, evidenciando um Código Penal que tem sua legislação aplicada apenas na teoria, distanciando-se, substancialmente, da realidade. De enfrentamento à violência e à insalubridade, ao mito da ressocialização. Essa é a concretude que, cotidianamente, é sustentada por um Estado que se omite de qualquer responsabilidade com os detentos brasileiros. Assim, denuncia-se aqui algumas das principais veredas da precariedade, visando a conscientização social dessas.

Palavras-chave: Sistema carcerário; Estado de Coisas Inconstitucional; Direitos; Superlotação; Lei de Execuções Penais.


INTRODUÇÃO

Com mais de 730 mil presos, o Brasil é o terceiro país que mais encarcera no mundo, possuindo, ainda, a maior taxa de crescimento da população prisional. Tais números, claramente, não acompanham uma infraestrutura adequada, o que, consequentemente, leva a uma crise nesse sistema carcerário, tão esclarecida recentemente pela declaração do Estado de Coisas Inconstitucional nos cárceres.

Essa crise exacerba diversos problemas históricos e estruturais do Estado e da sociedade, incluindo, sobretudo, um Código Penal que parece não sair do papel. Direitos são palavras totalmente desconhecidas por aqueles estigmatizados pela sociedade (pretos, pobres, mulheres e LGBTQ+), sobretudo aqueles que estão atrás das grades. Oprimidos por todo o estado de violência e insalubridade que enfrentam todos os dias, os detentos, hoje, lutam para garantirem, nas melhor das hipóteses, que saiam com vida daquilo que hoje, sem respaldos, pode se chamar de masmorra medieval, já que, ali, qualquer projeto de ressocialização não passa de mito.

Com isso, esse estudo pretende abordar essa precariedade existente no sistema penitenciário brasileiro, estabelecendo seus principais fundamentos, bem como métodos e recursos utilizados para a minimizar no contexto que se propõe.


DECLARAÇÃO DO ESTADO DE COISA INCONSTITUCIONAL NO SISTEMA PENITENCIÁRIO

Com pouco mais de 20 anos, o Estado de Coisas Inconstitucional é um termo novo no mundo jurídico, sendo originário da Sentença Unificada nº 559 da Corte Constitucional da Colômbia. Surgiu em consequência de uma crise previdenciária dos professores, gerada em 06 de dezembro de 1997, quando 45 deles tiveram seus direitos previdenciários feridos. Essa problemática chegou à Corte Constitucional da Colômbia (CCC), que constatou a quebra dos direitos previdenciários, atingindo os professores como um todo, o que se enquadraria no Estado de Coisas Inconstitucional (ECI).

Tal ECI só pode ser declarado a partir da análise de três pressupostos: violação generalizada dos direitos fundamentais, atingindo uma alta gama de pessoas; omissão prolongada ou comissão das autoridades, garantindo os direitos fundamentais; e intervenção de várias entidades, violando os direitos fundamentais. Assim, quando constatado os três pressupostos, a Corte Constitucional do país teria que requisitar que as demais autoridade públicas adotassem providencias para que seja solucionada ou amenizada a violação generalizada dos direitos fundamentais.

Coexistindo os três pressupostos, a Corte Constitucional da Colômbia reconheceu o Estado de Coisas Inconstitucional, o qual se estendeu para mais duas violações de diretos, além dos previdenciários. Por meio da T-153, de 28 de abril de 1998, foi declarada a violação dos direitos fundamentais no sistema carcerário colombiano e foram determinadas diversas imposições às entidades públicas, como para que, em três meses, fosse criado um plano para a renovação e construção de presídios. Outrossim, a sentença T-025, de 22 de janeiro de 2004, reconheceu a violação no deslocamento de pessoas em razão da violência interna do país, por força de atuação de grupos guerrilheiros e paramilitares, levando, aproximadamente, cinco milhões de pessoas a emigrarem da Colômbia por conta da violência existente. Assim, requisitou-se que fossem elaboradas políticas públicas para que os direitos violados fossem, de alguma forma, amenizados.

Com o estopim dado na Colômbia, o ECI chegou ao Brasil em 2015, quando foi impetrada, pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), a arguição de Descumprimento de Preceitos Fundamental (ADPF) nº 347, no Supremo Tribunal Federal. Tal ADPF alegava que o sistema penitenciário brasileiro estaria em um estado de inconstitucionalidade, não sendo respeitados os direitos fundamentais, os direitos humanos e os direitos presentes na Constituição Federal daqueles que se encontravam presos. Com isso, o partido acusava o Estado de omissão quanto a essa situação, a qual, inclusive, permanece até hoje. Com esse entendimento, o Supremo Tribunal Federal (STF) deferiu o pedido pleiteado e confirmou que os direitos básicos dos presos não estavam sendo respeitados. Não obstante, a decisão confirmou que até mesmo os recursos do Fundo Penitenciário (FUNPEN) estariam deixando de ser repassados aos estados.


BREVE HISTÓRICO DO SISTEMA PENITENCIÁRIO

Apesar de ser recente a denúncia do PSOL quanto aos problemas do sistema penitenciário, esses já são de longa data – desde os primórdios das prisões. Assim, vale dissertar um breve histórico do surgimento, até a consolidação de tal sistema, objetivando encontrar as raízes do que hoje se aflora como graves ilicitudes.

Não raramente, a população é levada a acreditar que o sentimento de medo e de insegurança em relação à escalada do crime urbano é um fenômeno recente. Aparenta-se, às vezes, que, da noite para o dia, transitou-se de uma sociedade pacífica para uma sociedade na qual quaisquer pendências nas relações intersubjetivas tendam a ser resolvidas mediante o emprego da força e da imposição arbitrária da vontade de uns em detrimento da vontade de outros. Apesar da tamanha disseminação de tal senso comum, é fato que a criminalidade sempre existiu, sendo essa, até mesmo, considerada um fenômeno vital para o funcionamento da sociedade desde que ela foi concebida, ao se tratar da evolução do direito.

Célebre por sua análise sociológica no final do século XIX e início do XX, Émile Durkheim organizou a história da sociedade em, basicamente, duas veredas: as sociedades pré-capitalistas e as capitalistas. Nas solidariedades dotadas de menor complexidade, as pré-capitalistas ou mecânicas, as noções de justiça já se faziam presentes com aquilo que o sociólogo alemão chamou de direito repressivo, ligado à formas exemplares de punição, as quais se valiam, sobretudo, de espetáculos públicos de torturas aos marginais à lei. Assim, mesmo nas civilizações mais pretéritas, fica claro que uma noção punitiva sobre àqueles que não corroboram para o bem-estar social sempre esteve presente.

O direito repressivo corresponde aquilo que é o coração, o centro da consciência comum; são normas puramente morais são delas uma parte já menos central; finalmente, o direito restitutivo surge em razões muito excêntricas, estendendo-se muito para além. 2

Apesar de sempre existir um sistema penal, a privação de liberdade entrou em cena apenas no século XVIII, com o gradual banimento das penas cruéis e desumanas, naquilo que Durkheim chamou de direito restitutivo, em que a pena de prisão passou a exercer um papel de punição de fato. Em uma perspectiva foucaultiana, tal mudança veio junto com as mudanças políticas da época, com a queda do Antigo Regime e a ascensão da burguesia, deixando a pena de ser um espetáculo público. Haveria regras rígidas na condenação, mudando-se o meio de se fazer sofrer, deixando-se de punir o corpo do condenado para lhe punir a “alma”.

(...) o que se procura reconstruir nessa técnica de correção não é tanto o sujeito de direito, que se encontra preso nos interesses fundamentais do pacto social: é o sujeito obediente, o indivíduo sujeito a hábitos, regras, ordens, uma autoridade que se exerce continuamente sobre ele e em torno dele (...) 3

Assim, surgiram os primeiros projetos modernos de penitenciárias com John Howard (1726-1790), após seus estudos das prisões da Inglaterra. Em 1777, Howard publicou a primeira edição de “The State of Prisons in England and Wales” (As condições das prisões da Inglaterra e Gales), criticando a realidade prisional da Inglaterra, e propondo um modelo que, de fato, instituísse a ressocialização dos detentos. As prisões deveriam propiciar, aos apenados, um regime higiênico, alimentar e assistencial- médico, capazes de suprir suas necessidades elementares, o que, claro, não foi bem aceito, em um primeiro momento, tanto devido à falta de recursos como à falta de empatia da sociedade, em geral, com os detentos.

Após esse período, vários outros sistemas de prisão foram surgindo, como o panóptico de Jeremy Bentham, tão abordado por Foucault, tanto pelo seu viés de imposição da disciplina aos detentos, como pelos seus rígidos padrões de segurança; o Sistema de Montesinos, na Espanha, que tinha trabalho remunerado e previa um caráter “regenerador” na pena; e o modelo suíço, em que se criou um novo tipo de estabelecimento penitenciário, no qual os presos ficavam na zona rural, trabalhavam ao ar livre, eram remunerados e a vigilância era menor.

No Brasil, foi a partir do século XIX que surgiram as prisões com celas individuais e oficinas de trabalho, bem como arquitetura própria para a pena de prisão. O Código Penal de 1890 possibilitou o estabelecimento de novas modalidades de prisão, considerando que não mais haveria penas perpétuas ou coletivas, como no Código Imperial, limitando-se às penas restritivas de liberdade individual, com penalidade máxima de trinta anos, bem como prisão celular, reclusão, prisão com trabalho obrigatório e prisão disciplinar.

Em 1940, em meio ao Estado Novo varguista, um novo Código foi elaborado, em virtudes das inúmeras falhas do anterior. Unificaram-se, fundamentalmente, as bases de um direito punitivo democrático e liberal. A parte geral do Código teve, por base, o princípio da reserva legal; o sistema de duplo binário; a pluralidade de penas privativas da liberdade; a exigência do início da execução para a configuração da tentativa; o sistema progressivo para o cumprimento da pena privativa de liberdade; a suspensão condicional da pena; e o livramento condicional. Na parte especial, dividida em onze títulos, a matéria se inicia pelos crimes contra a pessoa, terminando pelos crimes contra a administração pública. Não haveria mais pena de morte e nem de prisão perpétua, e o máximo da pena privativa de liberdade seria de 30 anos.

Com algumas mudanças ao longo dos anos, o Código de 1940 é octogenário em 2020. Foram oitenta anos daquilo que é considerado a mais plena justiça na teoria, a qual, sem dúvida alguma, é totalmente desconhecida por milhares de detentos que lutam todos os dias por suas vidas na insalubridade das celas brasileiras. Como tantos outros direitos no Brasil, o direito à dignidade que um detento deveria ter parece não sair do papel quando se analisam as verdadeiras barbáries cometidas, aos moldes do que vigorou até o século XVIII, pela “justiça” brasileira sobre aqueles que estão por trás das grades, o que torna, certamente, factual a existência de um Estado de Coisas Inconstitucional nesse meio.


PRIMEIRAS MEDIDAS PÓS DECLARAÇÃO DO ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL DO SISTEMA PENITENCIÁRIO BRASILEIRO

Com o reconhecimento do Supremo Tribunal Federal (STF) do Estado de Coisas Inconstitucional no sistema penitenciário brasileiro, ficou evidente a sua calamidade. Os encarcerados estavam vivendo em verdadeiras masmorras medievais. Direitos fundamentais dos detentos, como a dignidade da pessoa humana e a vedação à tortura e ao tratamento desumano e degradante, vinham sendo estilhaçados. A superlotação era exacerbante, como foi constatado em 2019, quando o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) mostrou que o Brasil possui cerca de 730 mil pessoas que estão em privação de liberdade, sendo que as vagas disponíveis são de, aproximadamente, 442.349. E, claro, como se não bastasse, foi averiguado que a União estaria contingenciando recursos - cerca de R$ 2.2 bilhões - do Fundo Penitenciário Nacional (FUNPEN), responsável pela manutenção e construção dos presídios.

As prisões brasileiras são, em geral, verdadeiros infernos dantescos, com celas superlotadas, imundas e insalubres, proliferação de doenças infectocontagiosas, comida intragável, temperaturas extremas, falta de água potável e de produtos higiênicos básicos. Homicídios, espancamentos, tortura e violência sexual contra os presos são frequentes, praticadas por outros detentos ou por agentes do próprio Estado. As instituições prisionais são comumente dominadas por facções criminosas, que impõem nas cadeias o seu reino de terror, às vezes com a cumplicidade do Poder Público.4

Diante disso, o STF promoveu medidas cautelares que amenizassem a violação dos direitos dos presos, propondo que, contado o momento da prisão, fosse realizado audiência de custodia em até 24 horas; fossem estabelecidas, sempre que possível, penas alternativas de prisão; fossem revisados os processos para que, caso se encontrem ilícitos estatais, seja feito um abatimento de pena; e fossem liberadas as verbas da FUNPEN.


A PRECARIEDADE DO SISTEMA CARCERÁRIO BRASILEIRO MESMO COM A DECLARAÇÃO DO ESTADO DE COISA INCONSTITUCIONAL

Completando-se cinco anos da declaração do Estado de Coisas Inconstitucional pelo STF, nada além de um sistema carcerário cada vez mais precário tem sido observado. O Estado, tipicamente cego, permanece se eximindo da culpa, alegando que não possui verbas e condições de redirecionar a realidade das penitenciarias, mantendo as mazelas que enquadra o Brasil como um dos piores lugares do mundo para ser preso.

São 730 mil presos, sendo 65% negros, pobres e pardos. Esse levantamento do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) aponta não apenas para a superlotação, como também para a típica desigualdade social brasileira. O criminologista Erwin Goffman já dizia no clássico “Estigma: Notas sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada” que grupo estigmatizados pela sociedade, como negros e pobres, tendem a ser perseguidos e excluídos por aqueles tradicionalmente tidos como “normais”.5Tal teoria é perfeitamente aplicável às terras tupiniquins, em que brancos mais abastados que cometem crimes de “colarinho branco”, certamente, não são penalizados da mesma forma que um negro ou um pobre que cometa igual ilicitude, concretizando-se um ordenamento jurídico que, por trás dos panos, sem dúvida alguma, é preconceituoso.

O preconceito se torna ainda maior quando se observa a maneira como é realizada a abordagem da Polícia Militar, principal braço do Estado na segurança, sobre esses estigmatizados, com a clássica agressão física injustificada, mesmo sem ordem de prisão, e com a mitigação de direitos banais, como a comunicação com familiares e a assistência de um advogado, conforme descreve Fernando Capez.

O advérbio de tempo imediatamente quer dizer logo em seguida, ato contínuo, no primeiro instante após a voz de prisão. Em tese, isso deveria ser feito antes mesmo de se iniciar a lavratura do auto, por qualquer meio disponível no momento, desde que eficaz (telefone, fax, mensagem eletrônica etc.). Na prática, porém, tal comunicação acabará sendo feita somente ao final do prazo de conclusão do auto, que é de vinte e quatro horas. Não foi esse, no entanto, o intuito da lei, devendo o Poder Judiciário e o Ministério Público estruturarem sistema de plantão à noite e aos feriados”.6

Não bastando a violação de direitos mesmo antes de serem presos, grande parte dos estigmatizados não possuem a dignidade sequer de serem julgados, já que dados evidenciam que 29,75% dos detentos estão presos provisoriamente, inclusive convivendo com sujeitos que cometeram verdadeiras atrocidades. Afinal, com o julgamento no Brasil sendo moroso e com o artigo 312 do Código de Processo Penal (CPP) nem mesmo ditando uma quantidade de tempo para prisão preventiva, muitos legisladores não se dão ao trabalho de respeitarem o direito mais básico que um sujeito possui ao ser detido, mesmo quando tudo leva a crer em sua inocência.

A convivência de detentos provisórios com condenados expõe outro grave problema do sistema carcerário: a ausência de critérios de periculosidade nas cadeias. O obstáculo aqui se faz na ressocialização, já que, novamente, nas palavras de Goffman, a cadeia é uma instituição totalizante, em que um presidiário realiza todas as suas atividades diárias ali. No caso brasileiro, tais atividades restringem-se, basicamente, a uma luta pela sobrevivência. Por trás das jaulas tupiniquins, conclui a pena aquele que melhor souber se defender, aos moldes de uma verdadeira seleção natural darwinista. Defesa que não poupa atos bárbaros, como homicídios, lesões corporais e, claro, alianças com facções criminosas. No Ceará, por exemplo, foi relatado que presos jogavam futebol com a cabeça de um de detendo, pois ele era de uma facção rival. Assim, não apenas a ressocialização, tão dita pela Teoria Eclética (equilíbrio das funções retributiva, intimidativa e ressocializadora da pena) do ordenamento jurídico é inibida como a criminalidade é ainda mais acentuada.

A sobrevivência darwinista, todavia, não se faz presente apenas na adaptação à violência, mas também no enfrentamento da insalubridade das cadeias. A falta de higienização, de alimentação e de assistência médica, agravadas pela densidade de detentos por cela e por sua infraestrutura altamente precária, leva, certamente, à convivência com doenças. 8.473 com HIV, 9.113 com tuberculose 6.920 com sífilis, 3.030 com hepatite e 4.156 diagnosticados com outras enfermidades, e isso é apenas o estimado. Sem qualquer assistência, o destino dos doentes está fadado ou à morte ou à sorte da geração de anticorpos quando a enfermidade for curável.

Além de preocupações com a defesa e com a saúde, a pena se torna ainda mais deteriorante para aqueles que sofrem com a estigmatização fora e dentro das penitenciárias. Quanto às mulheres, por exemplo, a lei de Execuções Penais (7020/84) asseguraria a presença de berçários nas penitenciárias, a fim de que fosse promovida a correta amamentação, até os seis meses, dos filhos de detentas gestantes. Mais da metade das carceragens, todavia, não possui berçários, fazendo com que a gestação, quando realizada, seja feita nas piores condições possíveis, dentro das celas, o que, sem dúvidas, acaba trazendo riscos às crianças.

Além de problemas com filhos, elas também sofrem com o flagelo do abandono pelo restante de suas famílias. Cumprem suas penas esquecidas pelos amigos, maridos, namorados e até pelos filhos mais velhos, os quais não lhes provêm sequer absorventes. De fato, a sociedade é capaz de encarar com alguma complacência a prisão de um parente homem, mas a da mulher envergonha, como tão elucidou o médico Dr. Dráuzio Varella, em sua recente obra “Prisioneiras”.

Em onze anos de trabalho voluntário na Penitenciária Feminina, nunca vi nem soube de alguém que tivesse passado uma noite em vigília, à espera do horário de visita. As filas são pequenas, com o mesmo predomínio de mulheres e crianças; a minoria masculina é constituída por homens mais velhos, geralmente pais ou avôs. A minguada ala mais jovem se restringe a maridos e namorados registrados no Programa de Visitas Íntimas, ao qual as presidiárias só conseguiram acesso em 2002, quase vinte anos depois da implantação nos presídios masculinos. Ainda assim graças às pressões de grupos defensores dos direitos da mulher7

Além das mulheres, outro grupo extremamente estigmatizado nas penitenciárias é o que compõe a comunidade LGBTQ+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transsexuais, Queers etc.). Assim como as mulheres, tal grupo é, em sua maioria, abandonado por seus familiares. Dados de 2016 apontam um total de 40% de visitas registradas a essa categoria de detentos, quantidade um tanto quanto ínfima. Sem qualquer auxílio externo, esses indivíduos ainda sofrem com o agravante de terem que conviver com homens heterossexuais, em sua maioria homofóbicos. O preconceito sofrido é tamanho que são excluídos até mesmo do compartilhamento de recursos em suas celas, como evidenciam tantos relatos.

Nós cumprimos duas sentenças aqui: uma imposta pelo juiz e outra imposta pelos prisioneiros. Nós não temos valor para eles. Ninguém presta atenção para a palavra de um homossexual. Eles nos deixam falar com eles até certo ponto. Nenhum deles beberia do meu copo.8

O preconceito fica maior ainda quando se observa que os LGBTQ+ são obrigados a exercerem os mesmos papeis que uma mulher, na sociedade machista, realiza. Delegados aos piores serviços, esses detentos são coagidos a limparem, cozinharem e, até mesmo, terem relações sexuais com aqueles homens que se acham na posição de verdadeiros donos. Isso além de serem considerados as melhores “mulas” possíveis por transportarem, em seus canais anais, drogas, celulares e objetos, o que, sem dúvidas, os expões a enormes riscos de saúde.

Eu era obrigada a ter relação sexual com todos os homens das celas, em sequência. Todos eles rindo, zombando e batendo em mim. Era ameaçada de morte se contasse aos carcereiros. Cheguei a ser leiloada entre os presos. Um deles me ‘vendeu’ em troca de 10 maços de cigarro, um suco e um pacote de biscoitos. Fiquei calada até o dia em que não aguentei mais. Cheguei a sofrer 21 estupros em um dia. Peguei hepatite e sífilis. Achei que iria morrer. Sem falar que eu tinha de fazer faxina na cela e lavar a roupa de todos. Era a primeira a acordar e a última a dormir 9

Destarte, é inquestionável que o Estado de Coisas Inconstitucional no sistema prisional brasileiro é um projeto de exclusão de parcelas da sociedade consideradas indesejáveis, por meio do abandono sistemático do Estado. Superlotado, com condições insalubres de higiene e de circulação de ar e sem transparência sobre o que de fato acontece por trás das grades, tal crise tende ainda a se acentuar, com as carceragens concentrando uma das maiores taxas de infecção e mortalidade derivadas da COVID-19 no país. E o mais grave é que o Estado brasileiro continua praticamente inerte e farisaico diante de tamanha precariedade, sendo covardemente negligente com a aplicação da Lei de Execução Penal, além de tornar a ressocialização um verdadeiro mito nas masmorras medievais brasileiras.


A NECESSIDADE DE REFORMAS PENITENCIÁRIAS ACENTUADA PELA PANDEMIA DO COVID-19

As crises são propulsoras de mudanças. Há ainda quem diga que foi criada uma forte dependência dessas para verdadeiras revoluções institucionais ou estruturais. Aquém de tais dependências, é fato que a busca de soluções é urgente no atual contexto de disseminação do letal Coronavírus. E, no meio dessa premência, talvez como em todas as outras, os presos estão sendo lembrados por conta da precariedade desumana que enfrentam todos os dias nos cárceres brasileiros. Afinal, enquanto o mundo assiste, atônito, ao avanço do novo vírus e a OMS segue recomendando o isolamento social e cuidados de higiene para evitar a disseminação da doença, o Estado continua inerte diante dos milhares óbitos de presos que se anteveem em um espaço perfeito para a disseminação da moléstia e de tantas outras que já, de longa data, assolam as prisões. Assim, mais do que nunca, cabe lembrar da advertência do excelentíssimo ministro Gilmar Mendes, no sentido de que não se pode mais falar da existência do atual sistema prisional como se fosse qualquer reclamação de frio ou de calor, como se não houvesse responsabilidades por trás da lamentável situação que se chegou.

Com efeito, o que se coloca diante do Brasil é cenário inescapável. O genocídio da população carcerária pode, agora, como nunca, virar uma realidade, caso a pandemia seja negligenciada nas cadeias e a superlotação desumana continue. Ora, o Estado tem sim lavado suas mãos e, ainda aos moldes de Pilatos, por mero medo da reação pública (defender direito de presos não dá votos), ou mesmo por suas inclinações pessoais. A soltura dos presos, no contexto da pandemia, de forma excepcional, porém efetiva, é um assunto delicado, mas nunca capaz de receber mais atenção do que a vida em si. A teor dos direitos e garantias fundamentais asseguradas por nada além do que a Constituição Federal, a reavaliação das prisões é imprescindível para que não se faça necessária a valorização das vidas.

Afinal, a vida não pode ser um privilégio de quem cumpre a lei, até mesmo porque os encarcerados estão em regime do caráter retributivo do cumprimento da pena, que garante o retorno ao convívio social para aqueles que a cumprem. A vida é direito de todos. Compreensão que, caso fosse disseminada, teria o poder de criar um marco histórico: a memória do período que o mundo se uniu contra o derramamento de sangue, abdicando da argumentação jurídica distorcida e rompendo com a falta de coragem que prevalece no cuidado estatal das masmorras brasileiras.

Sem qualquer previsão de medidas de desencarceramento, ainda uma grande ironia se faz quando a própria Portaria Interministerial n. 7, assinada pelos ministros da Justiça e da Saúde, prevê a necessidade de isolamento de presos com sintomas suspeitos, com o distanciamento em um raio de dois metros. Ora, isso é inexequível em uma realidade em que detentos têm que dividir colchões e se amontoar em celas insalubres, sem luz solar e ventilação suficiente e, na maior parte das vezes, sem acesso a itens básicos de higiene ou mesmo fornecimento ininterrupto de água. Realidade que se acentua ainda mais vista a já condição de vulnerabilidade dos presos ao vírus, dado que saem dos extratos mais precários da sociedade, trazendo a cabo a carência nutricional, o alto índice de HIV e tuberculose e o histórico comum do uso de drogas.

A vulnerabilidade é tamanha que, mesmo antes da pandemia, prisões, como as de São Paulo, relatavam que, a cada 19 horas, um preso morria. O próprio Ministério da Justiça já chegou a dizer que um detento tem seis vezes mais chances de morrer do que alguém fora do cárcere, e 34 mais vezes chances de contrair tuberculose. Isso, por si só, já justificaria medidas de desencarceramento, o que vem sendo praticado pelos países mais desacreditados, como é o caso do Irã, o qual colocou em meio aberto, aproximadamente, 70 mil detentos.

O desencarceramento racional, a partir de critérios pensados de forma fundamental pelo Conselho Nacional da Justiça, portanto, não é qualquer benesse. É uma forma de proteger toda a população, esteja ela privada de liberdade ou não (o epicentro da doença passará a ser as prisões a esses passos). De modo algum, a segurança da saúde pública pode ser prejudicada por impulsos ideológicos e opiniões isoladas, sem fundamentação científica por parte de quem vem demonstrando desconhecer a dinâmica e a gestão do sistema prisional brasileiro.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Talvez a medida mais eficaz neste momento seja avançar no debate público sobre as condições do sistema prisional brasileiro. Afinal, a pressão de fora para dentro do Estado é a única forma de disputar-se valores democráticos. Garantir direitos fundamentais aos presos e qualificar a discussão sobre o papel e a situação das prisões no país é, necessariamente, o começo para mudanças estruturais, tanto no sistema carcerário quanto em toda política criminal estigmatizante. Em tempos de pandemia, surge a oportunidade de repensar-se a estrutura punitiva, priorizando a dignidade humana e evitando o empilhamento, que aumentou o grau exponencial de sua curva com o COVID-19, o que, de fato, levaria a novas veredas no sistema penal brasileiro.


REFERÊNCIA:

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Notas

2 Durkheim, Émile. Da divisão do Trabalho Social. Lisboa: Presença Ltda, 1989

3 Foucault, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 1987

4 Liberdade, Partido Socialismo- PSOL. Conjur. Em: <https://www.conjur.com.br/dl/psol-stf-intervenha-sistema-carcerario.pdf>. Acesso em: 15 de novembro de 2020

5 Goffman, Erwing. Estigma: Notas sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada. Rio de Janeiro; LTC, 1981.

6 Capez, Fernando. Curso de Processo Penal. 19 ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

7 Varela, Drauzio. Prisioneiras. São Paulo, Companhia das Letras, 2017

8 Whatch, Human Rights. Casa de Detenção. São Paulo, 28 de novembro de 1998

9 Kiefer, Sandra. Homossexuais contam abusos que sofriam em prisões sem separação. Em: <https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2014/11/25/interna_gerais,593189/uma-questao-de-respeito.shtml> acesso em 16/09/2020


Abstract: This article aims to identify what the Unconstitutional State is and the current situation of the Brazilian prison system, presenting its main problems and disrespect for fundamental rights. These disrespects reflect, without a doubt, a precarious prison history in Brazil, in which, rarely, any right of those behind bars was respected. Today, this history is exposed with the declaration of the State of Unconstitutional Thing in this environment, evidencing a Penal Code that has its legislation applied only in theory, distancing itself, substantially, from reality. From confronting violence and unhealthiness to the resocialization myth. This is the concreteness that, on a daily basis, is supported by a state that omits any responsibility towards Brazilian detainees. Thus, some of the main precariousness is denounced here, aiming at social awareness of that.

Key-words: Prison system; State of Unconstitutional Thing; Rights; Overcrowded; Criminal Executions Law.


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