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Crimes de guerra: genocídio

Crimes de guerra: genocídio

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Principais aspectos relacionados ao genocídio, um dos crimes de guerra mais antigos da história.

1. Evolução histórica:

A prática genocida, isto é, a intenção deliberada de se destruir um grupo étnico, nacional, racial ou religioso, remonta à Antiguidade, havendo citações bíblicas referentes à destruição de determinados povos na China e na Índia. Florestan Fernandes da Silva sustenta que a prática genocida é tão antiga quanto a própria humanidade, confundindo-se com ela, uma vez que a ideia de exterminar um grupo diverso é inerente à condição humana¹. Para Carlos Canêdo, o genocídio ocorreu ao longo de toda história ao redor do mundo². 

Carlos Eduardo Adriano Japiassú afirma que o termo “crimes contra a humanidade” é conhecido desde a IV Convenção de Haia de 1907, referente às leis e aos costumes de guerra terrestre³.

O Tratado de Versalhes, datado de 1918, celebrado entre as potências aliadas e a Alemanha, foi o primeiro  passo  concreto  dado  no   sentido   de   se   buscar  punir a prática de  crimes  de  guerra 4.  Contudo,  o  resultado  não  foi  satisfatório,  de  modo  que  a comunidade internacional passou a clamar pela criação de um Direito Penal Internacional.

Dentro desse panorama, a Organização das Nações Unidas elaborou um projeto de convenção acerca do crime de genocídio, incorporado na Resolução n. 96, de 11 de dezembro de 1946, que dispunha: “Reconhece que o genocídio é um delito  do Direito das Gentes, condenado pelo mundo civilizado, cujos principais autores e cúmplices, sejam pessoas privadas, funcionários ou representantes oficiais do Estado, devam ser castigados, por terem obrado por razões sociais, religiosas, políticas ou outras”.

Em 09 de dezembro de 1948, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou, por meio da Resolução n. 260-A, a “Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio”.

O conceito de genocídio, nos moldes que conhecemos, apareceu pela primeira vez com o polonês Raphael Lemkin, em 1944, ao término da Segunda Guerra Mundial. Para ele, o genocídio consiste na destruição de uma nação ou de um grupo étnico.

No Estatuto de Londres, constitutivo do Tribunal de Nuremberg, não houve a previsão expressa do crime de genocídio, que teve seu tipo penal inserido dentro dos crimes contra a humanidade 5. De acordo com Carlos Canêdo, “o Estatuto menciona duas espécies de crimes contra a humanidade: os atos inumanos cometidos contra a população civil, tais como assassinato, extermínio, a redução à escravidão e a deportação; e a persecução por motivos políticos, raciais ou religiosos, encontrando-se  aqui o embrião da configuração jurídica do crime de genocídio.” 6

Dessa maneira, o art. 6º do Estatuto do Tribunal de Nuremberg previu que poderiam ser julgados aqueles que cometeram crimes de guerra, crimes contra a paz e crimes contra a Humanidade, devendo a responsabilidade dos autores ser apurada concomitantemente como indivíduos e como membros de organizações, conforme previsão do art. 4º do mesmo Estatuto.

Inegável evolução foi trazida pelo Estatuto de Roma, no art. 6º que tipificou o crime de genocídio: “Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por "genocídio", qualquer um dos atos que a seguir se enumeram, praticado com intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, enquanto tal: a) Homicídio de membros do grupo; b) Ofensas graves à integridade física ou mental de membros do grupo; c) Sujeição intencional do grupo a condições de vida com vista a provocar a sua destruição física, total ou parcial; d) Imposição de medidas destinadas a impedir nascimentos no seio do grupo; e) Transferência, à força, de crianças do grupo para outro grupo.”

    1.1 A Internacionalização dos Direitos Humanos:

Para a doutrina dominante, a internacionalização dos Direitos Humanos, nasce com a promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948 7, surgindo como consequência imediata às barbáries ocorridas durante a 2ª Segunda Guerra Mundial.

O indivíduo passa a ser concebido como sujeito de Direito Internacional e a ter proteção internacional no que atine aos direitos de primeira dimensão, independentemente de sua nacionalidade.

A Declaração de Viena de 1993 também auxiliou na ideia de universalização dos Direitos Humanos, reconhecendo a interdependência entre Direitos Humanos, democracia e desenvolvimento, apontando a democracia como o regime político mais compatível com a proteção dos Direitos Humanos.

Com o reconhecimento da universalização dos Direitos Humanos e a sua consequente internacionalização, surgiu a necessidade de se complementar a compatibilização entre as jurisdições interna e internacional, de modo a se proporcionar a sua eficácia jurídica.

O Brasil só veio a participar mais incisivamente de políticas de proteção internacional dos direitos humanos apenas com o final do regime militar, isto é, em meados da década de 1980, ratificando e incorporando tratados e convenções internacionais sobre o tema.   

1.2  Convenção para Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio:

Datada de 1948, a Convenção para Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio é composta de um preâmbulo, de dezenove artigos e tem como idiomas oficiais o inglês, o chinês, o espanhol, o francês e o russo.

No nosso país, a convenção foi ratificada pelo Decreto n. 30.822, de 1.952 e, em decorrência dela, foi promulgada a Lei n. 2.889/56.

O preâmbulo declara que o genocídio é um crime de direito dos povos e coloca a  cooperação  internacional  como  necessária  para  libertar  a  humanidade  de  “um flagelo tão odioso”.

O primeiro artigo dispõe que os Estados signatários se comprometem a prevenir e a punir o crime de genocídio, que pode ocorrer em tempos de paz ou de guerra.

Consistem em atos genocidas, de acordo com o segundo artigo, os praticados com a intenção de destruir total ou parcialmente um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. Os atos elencados são: a) assassinatos dos membros do grupo; b) atentado grave à integridade física e mental de membros do grupo; c) submissão deliberada do grupo a condições de existência que acarretarão a sua destruição física, total ou parcial; medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; e) transferência forçada das crianças do grupo para outro grupo.

São passíveis de punição o genocídio, o acordo com vista a cometê-lo, o incitamento direto e público ao crime, a tentativa de cometê-lo e a cumplicidade (art. 3º).

Qualquer pessoa pode ser punida pelo crime, eliminando justificativas que retirassem a gravidade e a possibilidade de indivíduos imunes à punição (art. 4º).

O artigo quinto preceitua que as partes contratantes têm de adotar medidas legislativas necessárias a assegurar a aplicação das disposições da Convenção e a prever sanções penais eficazes para os responsabilizados pelo crime de genocídio.

Os julgamentos do genocídio devem ocorrer em tribunais competentes do Estado em cujo território o ato foi cometido ou pelo tribunal criminal internacional  que tiver competência quanto às partes contratantes que tenham reconhecido a sua jurisdição (art. 6º).

O artigo sétimo repudia a ideia do genocídio se tratar de crime político, justamente para evitar a recusa da extradição com base nesse argumento.

No artigo oitavo, consta que os Estados contratantes, em caso de genocídio, podem socorrer-se dos órgãos competentes da Organização das Nações Unidas (ONU) para que tomem estes as medidas adequadas.

O artigo nono prevê a submissão à Corte Internacional de Justiça em casos de divergência entre os contratantes, no que diz respeito à interpretação, aplicação ou execução da Convenção.

Os demais dispositivos tratam de aspectos formais da Convenção.


2. Mandados de criminalização e o crime de genocídio:

O mandado de criminalização referente aos crimes hediondos está previsto no art. 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal: “a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem”. E apenas com o advento da Lei n. 8.072/90 que o genocídio começou a integrar o rol dos crimes hediondos e a receber as consequências relacionadas.

2.1  Bem jurídico:

Para Leila Hassem da Ponte, “partindo-se da concepção – de que o conceito de bem jurídico deve estar atrelado à Constituição Federal –, constata-se que a definição e delimitação do bem jurídico-penal protegido no crime de genocídio não se afigura como tarefa fácil, na medida em que se trata de delito que possui particularidades próprias, podendo ser classificado como crime internacional contra a humanidade, por meio do qual o legislador busca proteger não apenas a vida ou a integridade física ou mental das pessoas atingidas, mas a própria existência de determinado grupo étnico, cultural, religioso ou segmento social. Urge destacar que o crime de genocídio supera a noção de vida em sentido restrito – a vida de um indivíduo –, pois busca punir o ataque à vida de um grupo de pessoas e não a violação à vida do ser humano,  considerado isoladamente, vinculando-se à ideia de limpeza étnica (...) Depreende-se, assim, que as ações que configuram o genocídio não se dirigem, em um primeiro momento, contra a vida ou a integridade do indivíduo, mas sim contra grupo de pessoas na sua totalidade, à qual aquele indivíduo pertence. O bem jurídico protegido, pois seria a vida em comum à qual o indivíduo integra”. 8   

No genocídio, o que se busca é “negar a vida a um grupo”, e no homicídio, “negar a vida a uma pessoa”. 9    

O bem jurídico então tutelado seria um bem jurídico coletivo, isto é, a existência de um grupo nacional, racial, étnico ou religioso.

Há, entretanto, quem discorde disso. João Batista Klautau Leão afirma que são protegidos bens jurídicos individuais, quais sejam, a vida, a integridade física e liberdade, de acordo com o comportamento que se tenha em vista.

Carlos Canêdo, além da vida e da integridade física, cita a humanidade como bem jurídico tutelado.  10     

2.2   Projeto de Reforma do Código Penal:

No Projeto de Reforma do Código Penal, há previsão do Título XVI, Crimes Contra os Direitos Humanos, no qual está inserido o Capítulo I, com a denominação crimes contra a humanidade. Neste capítulo, de forma inovadora, existe a conceituação de crimes contra a humanidade no art. 458:

“São crimes contra a humanidade previstos neste Capítulo os praticados no contexto de ataque sistemático dirigido contra população civil, num ambiente de hostilidade ou de conflito generalizado, que corresponda a uma política de Estado ou de uma organização.

Parágrafo único. Quando presentes as circunstâncias referidas no caput, serão considerados crimes contra a humanidade as condutas descritas nos Títulos dos crimes contra a vida e contra a dignidade sexual”.

E, por sua vez, o art. 459 do Projeto, com o nomen iuris de genocídio:

“Praticar as condutas descritas nos incisos abaixo com o propósito de destruir, total ou parcialmente, um grupo, em razão da sua nacionalidade, idade, idioma, origem étnica, racial, nativa ou social, deficiência, identidade de gênero ou orientação sexual, opinião política ou religiosa:

I-matar alguém;

II-ofender a integridade física ou mental de alguém;

III-realizar qualquer ato com o fim de impedir ou dificultar um ou mais nascimentos, no seio de determinado grupo;

IV-submeter alguém a condição de vida desumana ou precária; ou

V-transferir, compulsoriamente, criança ou adolescente do grupo ao qual pertence para outro:

Pena – prisão, de vinte a trinta anos, sem prejuízo das penas correspondentes aos outros crimes.

Ainda no Projeto, o art. 460 pune com prisão de dez a quinze anos a associação de três ou mais pessoas para o genocídio. No art. 461, há disposição do crime de extermínio, com a privação de acesso a água, alimentos, medicamentos ou qualquer outro bem ou serviço do qual dependa a sobrevivência de grupo de pessoas, visando causar-lhes a morte (prisão de vinte a trinta anos).


3.  O genocídio no Brasil:

No nosso ordenamento, o genocídio está previsto na Lei nº 2.889/56:

“Art. 1º Quem, com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal:  a) matar membros do grupo;

b) causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo;

c) submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial;

d) adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo;

e) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo (...)”.

As penas aplicadas são as dispostas no Código Penal para tipos diversos. A adoção de tais preceitos secundários é duramente criticada pela doutrina, uma vez que representaria afronta ao princípio da proporcionalidade, por tratar com a mesma pena um autor de crime contra a humanidade e um criminoso comum.  

No artigo segundo da lei, é punida a associação de três ou mais pessoas para o cometimento dos crimes mencionados no artigo anterior.  

Já no artigo terceiro, é punida a incitação pública e direta de alguém ao cometimento do crime.

No artigo quarto, consta uma causa de aumento de 1/3 (um terço) em caso de crime perpetrado por funcionário público ou governante.

A tentativa é punida com pena de 2/3 (dois terços) do respectivo crime (art. 5º).

E, por derradeiro, o artigo sexto preceitua que os crimes tratados na lei não serão considerados crimes políticos para efeito de extradição. 

No Código Penal Militar, o crime de genocídio é previsto no art. 208, quando seu cometimento se dá em tempo de paz, e nos artigos 401 e 402, quando em tempo de guerra.

3.1. Direito Estrangeiro:

Em Portugal, o art. 239 do Código Penal Português, de 1982, tratava do crime de genocídio. Todavia, tal dispositivo foi revogado pela Lei n. 31/2004, que procurou adequar a legislação penal portuguesa ao Estatuto do Tribunal Penal Internacional.

O Código Penal espanhol recebeu forte influência da Convenção para a Prevenção e Repressão do crime de genocídio, mas Carlos Canêdo aponta uma diferença fundamental: na legislação espanhola, a redação está no singular. Assim, de acordo com tal legislação, basta que as condutas características do crime se voltem a um único membro do grupo, desde que a finalidade seja destruir, total ou parcialmente, o grupo. 11   

A Argentina ratificou a Convenção para a Prevenção e Repressão do crime de genocídio. Contudo, ao contrário de toda América do Sul, não disciplinou o tema em sua legislação interna. 12

O Código Penal paraguaio, de 1997, tipificou os crimes de genocídio e de guerra em seu próprio texto, mas a crítica que é feita é que não existe uma previsão de pena máxima para esses delitos, tão somente, menciona-se que a pena de prisão não pode ser inferior a cinco anos. Haveria, portanto, um desrespeito ao princípio da legalidade. 13. Ressalva-se que o art. 38 do Código Penal daquele país dispõe, de maneira genérica, que as penas privativas de liberdade terão duração máxima de vinte e cinco anos.

Em Israel, a Lei n. 5.710/50 faz alusão à Convenção para descrever os atos de genocídio. Entretanto, é prevista a pena de morte. 14

Na Alemanha, a previsão do genocídio está em consonância com o disposto no Estatuto de Roma, que criou o Tribunal Penal Internacional. 15

Na França, também houve o socorro à Convenção, sendo que o delito de genocídio é tipificado no Código Penal francês. E, ainda, em referido ordenamento, há previsão de responsabilidade penal objetiva, uma vez que pune a simples participação no grupo, sem a necessidade da prática efetiva de um ato. 16


4. O Genocídio e os Tribunais Penais Internacionais:

   4.1  Tribunal de Nuremberg:

Os julgamentos se estenderam de 20 de novembro de 1945 a 1º de outubro de 1946. Os acusados eram membros de liderança política, militar e econômica da Alemanha nazista, tais como Hermann Göring, Martin Borman (secretário particular do Führer) e Rudolf Hess.

Um dos precedentes mais importantes para a constituição do Tribunal de Nuremberg foi a Declaração de Moscou, datada de 1943 e subscrita por Roosevelt, Churchill e Stalin, uma vez que ela demonstrava a intenção dos Aliados em julgar os integrantes do Eixo após o fim da guerra.

O Estatuto do Tribunal de Nuremberg foi aprovado em 6 de outubro de 1945 e a escolha da cidade de Nuremberg para sediar o Tribunal deveu-se ao fato de que em Nuremberg ocorriam reuniões e eram tomadas decisões importantes do partido nazista. O Tribunal também representa um esforço conjunto dos vencedores da Guerra, os Aliados, compostos por União Soviética, Reino Unido, França e Estados Unidos.

O Tribunal de Nuremberg é um divisor de águas na codificação da lei penal internacional, em especial no que se referia às matérias procedimentais. 17

O artigo sexto do Estatuto dispunha sobre a competência material, definindo que poderiam ser julgados os autores de crimes de guerra, crimes contra a humanidade e crimes contra a paz, devendo a responsabilidade dos acusados ser apurada tanto como indivíduos quanto como membros de organizações.  18

“Art. 6º. O Tribunal estabelecido pelo Acordo ao qual se refere o Art. 1º desta, para o julgamento e punição dos criminosos de guerra principais do Eixo europeu, tem a competência para julgar e punir pessoas que, agindo nos interesses dos países do Eixo europeu, seja como indivíduos ou como membros de organizações, cometeram qualquer um dos seguintes crimes.

Os seguintes atos, ou qualquer um deles, são crimes sob a jurisdição do Tribunal aos quais será atribuída responsabilidade individual:

a) Crimes contra a paz: especificamente, planejar, preparar, iniciar ou mover uma guerra de agressão, ou uma guerra em violação a tratados, acordos ou garantias internacionais, ou a participação em um plano concentrado ou em um complô para a realização de qualquer um dos atos precedentes;

b)    Crimes de guerra: especificamente, violação de leis ou costumes de guerra. Tais violações incluirão, mas não se limitarão a, assassinato, maus-tratos ou deportação para trabalho escravo, ou para qualquer outro propósito, de população civil de um território ocupado, assassinato ou maus-tratos de prisioneiros de guerra ou pessoas ao mar, assassinato de reféns, pilhagem de propriedade pública ou privada, destruição frívola de cidades, vilas ou aldeias, ou devastação não justificada por necessidade militar;

c)   Crimes contra a humanidade: especificamente, assassinato, extermínio, escravidão, deportação e outros atos desumanos cometidos contra qualquer população civil, antes ou durante a guerra; ou perseguições, por motivos políticos, raciais ou religiosos, a fim de executar, ou em conexão com, qualquer crime de competência deste Tribunal, em violação, ou não, das leis domésticas dos países onde perpetrados.”

Embora, não tenha havido previsão expressa, o genocídio é tratado na divisão de crimes contra a humanidade.

No artigo sétimo, consta que a obediência a ordem do governo ou de um superior hierárquico não exime a responsabilidade do agente, mas pode constituir uma atenuante.

Houve previsão de revelia, da aplicação da pena de morte ou de “qualquer outra punição que considerar justa”, de poderes amplos para os juízes para a análise de admissibilidade das provas, retirando-se da acusação o ônus da prova sob determinadas circunstâncias, e a impossibilidade de interposição de recursos para os condenados.

A grande crítica que se faz ao Tribunal de Nuremberg é que consistiu em um tribunal de exceção, tendo sido estabelecido após os eventos e para o julgamento de crimes não tipificados, em afronta aos princípios da reserva legal e da anterioridade penal.

Por outro lado, os elogios ao Tribunal são em relação aos novos conceitos trazidos e a ideia de um Tribunal Penal Internacional.

   4.2  Tribunal Militar Internacional para o Extremo Oriente:

Também conhecido como Tribunal de Tóquio, sua finalidade consistia no julgamento, pelos Aliados, dos crimes de guerra praticados pelos japoneses. Num primeiro grupo, os acusados foram autoridades militares e líderes políticos.      

 Assim como o Tribunal de Nuremberg, também foi um tribunal de exceção. Por conseguinte, violou princípios como da reserva legal e da anterioridade penal.

Ademais, também feriu o princípio da isonomia, uma vez que indivíduos que se encontravam nas mesmas situações, receberam tratamentos distintos. Os grandes exemplos foram o Imperador Hirohito e outros membros da família imperial japonesa, que não receberam qualquer julgamento. 19

4.3  Tribunal Ad Hoc para Ruanda:

Três grupos étnicos formam a população de Ruanda: os hutus, ampla maioria da população, os tutsis, uma parcela menor, e uma parte quase inexpressiva da população é representada por um povo pigmeu denominado twa.

A convivência entre eles nunca foi pacífica, mas a segregação foi agravada no período da dominação belga de Ruanda, pois as políticas adotadas acabaram por favorecer os tutsis.

Embora tenham ocorrido diversos conflitos entre tutsis e hutus durante o século XX, o auge da tensão aconteceu em 1994, após o assassinato do presidente de Ruanda, da etnia hutu, e com a “Radio-Televison Libre des Mille Colline”, propagando o racismo e incentivando o extermínio dos tutsis, culminado na morte de cerca de 800.000 tutsis em um período de três meses.

A ONU, então, como fez para a ex-Iugoslávia, criou um Tribunal Penal Internacional para Ruanda. Mas tal Tribunal fracassou, pois foi desprovido de recursos financeiros para proceder o julgamento dos acusados com celeridade e eficiência. A pena mais severa foi a prisão perpétua, o que desagradou o próprio governo de Ruanda, que almejava a previsão da pena de morte. No entanto, a sentença prolatada contra Jean-Paul Akauesu, ex-presidente do Movimento Democrático Republicano de Ruanda, condenado à prisão perpétua, é considerada a primeira condenação de um Tribunal Internacional pelo crime de genocídio.

   4.4  Tribunal Internacional Ad Hoc para a ex-Iugoslávia:

O Tribunal Internacional para a ex-Iugoslávia foi criado pelo Conselho de Segurança da ONU, em 25 de maio de 1993. Tinha o propósito de responsabilizar os autores dos crimes contra o Direito Internacional dos Direitos Humanos cometidos durante a guerra e que culminou na divisão da ex-Iugoslávia em diversos Estados. A guerra da Bósnia vitimou cerca de 250.000 pessoas. As forças envolvidas foram os sérvios cristãos ortodoxos, croatas católicos e bósnios mulçumanos. A sanção mais grave foi a prisão perpétua. 20

Slobodan Milosevic, ex-presidente da antiga Iugoslávia, e principal responsável pelo massacre, embora tivesse sido processado, não chegou a ser sentenciado, pois faleceu em 2006, no curso do julgamento.

4.5. Tribunal Penal Internacional:

Nos dizeres de Leila Hassem, “realmente, após os Tribunais de Nuremberg e de Tóquio, bem como os Tribunais ad hoc para a antiga Iugoslávia e Ruanda, a comunidade internacional ressentia-se da inexistência de um diploma legal complementar às jurisdições penais nacionais, que tivesse caráter permanente e independente, bem como fosse preexistente ao fato que se pretendia julgar e punir, com jurisdição sobre os crimes de maior gravidade, que atentavam contra a própria existência da humanidade, tendo sido dentro desse espírito de mudança que o Tribunal Penal Internacional foi instituído”.  21

O  Tribunal Penal Internacional é decorrente do Estatuto de Roma, que foi aprovado por maioria de votos em 17 de julho de 1998, vinculando-o à Organização das Nações Unidas. O Brasil foi o 69º país a reconhecer a jurisdição do Tribunal.

Sua sede é em Haia, na Holanda. Tem competência para o julgamento dos crimes contra a humanidade, os crimes de guerra, e genocídio e de agressão, praticados com dolo. Aqui, apresenta-se o chamado princípio da especialidade, já que o TPI possui competência apenas para julgar os crimes que a afetam a humanidade e refletem na comunidade internacional, não sendo admitida a analogia. O princípio da anterioridade, ao contrário do que ocorreu com os outros Tribunais antes citados, também foi prestigiado pelo Estatuto de Roma, mas de forma mitigada, já que se um Estado aderir ao Estatuto após sua entrada em vigor, pode realizar uma declaração consentindo que o Tribunal exerça sua competência em relação a crime antes ocorrido.

Pelo princípio da complementariedade, o Tribunal somente atua se o Estado que detém jurisdição sobre o caso não iniciou o devido processo legal.

Outros dois princípios importantes são o da responsabilidade penal individual, que faz a distinção entre a responsabilização pessoal do acusado e a responsabilização estatal, e o da irrelevância da função oficial.            

O princípio da individualização da pena, entretanto, foi preterido pelo Estatuto de Roma, pois o mínimo e o máximo (até 30 anos) são previstos genericamente para todos os delitos.

A sanção mais grave é a de prisão perpétua, se o elevado grau de ilicitude do fato e as condições pessoais do condenado a justificarem (art. 77). Tal pena, entretanto, pode ser revista com o transcorrer do período de vinte e cinco anos.

Consoante o disposto no artigo 29 do Estatuto de Roma, o crime de genocídio é imprescritível.

O Tribunal é composto pelos seguintes órgãos:

a) Presidência: composta por 18 juízes, com mandato de 9 anos, sendo vedada a reeleição;

b) Gabinete do Procurador: presidido pelo Procurador-Geral, ao qual cabe dirigi-lo e administrá-lo, sendo auxiliado por Procuradores-Adjuntos. A atribuição do Procurador é coletar e examinar informações sobre os delitos de competência do Tribunal, e exercer ação penal junto a este. Exercerão seus cargos por nove anos, vedada a reeleição; e

c) Secretaria: tem função administrativa, presidida pelo Secretário, com mandato de 5 anos, sendo admitida uma reeleição. Há possibilidade de se eleger um Secretário-Adjunto se for necessário. 


5. A teoria do domínio do fato:

A teoria do domínio do fato  foi criada por Hans Welzel em 1939, e desenvolvida por Claus Roxin, em sua obra de 1963, Täterschaft und Tatherrschaft, ganhando projeção na América Latina e na Europa.

Pela teoria do domínio do fato, autor é quem tem o controle da situação, com poder de decidir sobre sua prática ou interrupção, assim como acerca de suas circunstâncias. Por essa corrente, o mandante pode ser considerado autor. Já pela teoria restritiva, adotada pelo nosso Código como regra, o mandante é partícipe, pois não realiza ato de execução.  22

Em relação ao concurso de pessoas, foi adotada pelo nosso Código Penal, como regra, a chamada teoria restritiva, segundo a qual autor é apenas aquele que executa a conduta típica descrita na lei, isto é, quem realiza o verbo contido no tipo penal.

Isso não significa que o mandante não possa ser devidamente sancionado em nosso ordenamento. Pelo contrário, o art. 62, inciso I, do Código Penal, dispõe que a pena será agravada em relação ao agente que promove, ou organiza a cooperação no crime ou dirige a atividade dos demais agentes.

A doutrina do domínio do fato foi consagrada pelos Tribunais de Nuremberg e de Tóquio, assim como pelos Tribunais ad hoc para Ruanda e para a antiga Iugoslávia, pois, caso contrário, poderia implicar na absolvição dos mentores intelectuais das atrocidades, daqueles que proferiram ordens de matança a subalternos e a prepostos.

No Tribunal de Nuremberg, o General Nikitchenko, principal promotor soviético, disse: “sem a autoridade absoluta do bandido chefe, nenhuma quadrilha pode existir”.

O principal promotor americano, Joseph Keenan, na abertura do libelo acusatório no Tribunal de Tóquio, asseverou: “a posição oficial de um homem não pode roubar sua identidade individual, nem exonerá-lo de responsabilidade por suas ofensas pessoais”.


Referências:

  1. SILVA, Florestan Fernandes da. Os refugiados de Kosovo e o crime de genocídio: aspectos do Direito Internacional Penal. Boletim IBCCrim. São Paulo, n. 82, p. 11-12, st. 1997.
  2. CANÊDO, Carlos. O genocídio como crime internacional. Belo Horizonte: Del Rey. 1999, p. 32.
  3. JAPIASSÚ, Carlos Eduardo de Adriano. O Tribunal Penal Internacional: a internacionalização do Direito Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 221.
  4. MONTEIRO, Antonio Lopes. Crimes hediondos: texto, comentários e aspectos polêmicos. 8 ed. São Paulo: Saraiva, 2008 (p. 84).
  5. MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. 12. ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2000,   p. 899.
  6. CANÊDO, Carlos. O genocídio como crime internacional. Belo Horizonte: Del Rey. 1999, p. 86.
  7. Adotada e proclamada pela Resolução n. 217-A (III) da Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, por aprovação unânime de 48 Estados, com 8 abstenções.
  8. PONTE, Leila Hassem da. Genocídio. São Paulo : Saraiva, 2013, p. 58-59.
  9. BARBERÁ FRAGUAS, Maria. Derecho Penal Internacional: el genocídio y otros crimes internacionalidade: autoria e participación: la responsabilid del superior jerárquico, autoria imediata. Actualidad Penal. Madrid, n. 11, 11-17 mar. 2002, p. 25
  10. CANÊDO, Carlos. O genocídio como crime internacional. Belo Horizonte: Del Rey. 1999, p. 186.
  11. CANÊDO, Carlos. O genocídio como crime internacional. Belo Horizonte: Del Rey. 1999, p. 214-215.
  12. PONTE, Leila Hassem da. Genocídio. São Paulo : Saraiva, 2013, p. 78
  13. PONTE, Leila Hassem da. Genocídio. São Paulo : Saraiva, 2013, p. 78
  14. PONTE, Leila Hassem da. Genocídio. São Paulo : Saraiva, 2013, p. 79
  15. PONTE, Leila Hassem da. Genocídio. São Paulo : Saraiva, 2013, p. 79
  16. PONTE, Leila Hassem da. Genocídio. São Paulo : Saraiva, 2013, p. 79
  17. PONTE, Leila Hassem da. Genocídio. São Paulo : Saraiva, 2013, p. 87 
  18. PONTE, Leila Hassem da. Genocídio. São Paulo : Saraiva, 2013, p. 89 
  19. PONTE, Leila Hassem da. Genocídio. São Paulo : Saraiva, 2013, p. 97
  20. PONTE, Leila Hassem da. Genocídio. São Paulo : Saraiva, 2013, p. 113
  21. PONTE, Leila Hassem da. Genocídio. São Paulo : Saraiva, 2013, p. 119-119
  22. GONÇALVES, Victor Eduardo Rios. Direito Penal, parte geral. 17. ed. – São Paulo : Saraiva, 2011. – (Coleção sinopses jurídicas; v. 7), p. 113-115.

Autor

  • Renne Müller Cruz

    Delegado de Polícia em São Paulo. Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Especialista em Direito Penal e Processual Penal pelo Complexo Jurídico Damásio de Jesus. Mestre em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo com a obtenção de Nota Máxima pela Defesa da Dissertação: "O descompasso entre o princípio da intervenção mínima e a Lei das Contravenções Penais".

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CRUZ, Renne Müller. Crimes de guerra: genocídio. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6449, 26 fev. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/88730. Acesso em: 24 abr. 2024.