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Nepotismo com recursos públicos em entidades do terceiro setor

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Parecer defende a edição de norma municipal que vede o nepotismo em entidades sem fins lucrativos que receba recursos públicos oriundos de convênio firmado com o Município.

CONSULTA

Consulta-nos Prefeitura Municipal, após apresentar relato da normatização aplicável aos convênios com o terceiro setor, com foco, em especial naquela localidade, na transferência de recursos financeiros oriundos do Orçamento Fiscal e da Seguridade Social, observado, sempre, o interesse da população: 1) esclarece que pretende editar regra, mediante a edição de decreto, que impeça a entidade sem fins lucrativos de aplicar recursos públicos municipais, oriundos de convênio firmado com o Município, no pagamento, a qualquer título, a cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, de seus diretores e conselheiros; 2) formulaquestão objetiva acerca da regra que pretende editar encontrar amparo na lei e na Constituição Federal.


PARECER

Cuida-se, na presente consulta, de esclarecer acerca da possibilidade de estabelecimento, por normatização local, de vedação da realização de pagamentos, a qualquer título, por entidade sem fins lucrativos com recursos públicos municipais recebidos por aquela em decorrência de convênio firmado com o Município, para pessoas físicas ("cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive") que tenham vínculo de consangüinidade ou afinidade com seus diretores e conselheiros.

Em outras palavras, objetivamente, se busca aclaramento acerca da possibilidade de estender às entidades do Terceiro Setor, no que se refere aos recursos públicos que lhe sejam repassados, as repercussões (pagamentos, a qualquer título) das disposições que vedam o nepotismo, a exemplo do assentado pela Súmula Vinculante 13 do Supremo Tribunal Federal, cujo embasamento são os princípios contidos no artigo 37 da Constituição Federal.

Mesmo não tendo sido mencionada claramente na consulta, a questão traz subjacente a pretensão de se impor restriçõesdecorrentes daquela vedação, que mereceu disposição expressa na Súmula Vinculante 13 [01], do STF, cujo teor é:

"A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada na administração pública direta e indireta em qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal." (grifamos).

Esta conclusão é reforçada pelo fato dos destinatários da percepção dos pagamentos, na proposta da consulente, serem idênticos aos do dispositivo sumular transcrito.

Inicialmente, para enfrentamento do tema, é indispensável tornar assente que o embasamento da vedação reconhecida pela Corte Constitucional é a moralidade administrativa, acerca da qual Hely Lopes Meirelles ensina [02]:

"2.3.2. Moralidade – A moralidade administrativa constitui, hoje em dia, pressuposto de validade de todo ato da Administração Pública (CF, art. 37, caput). Não se trata – diz Hauriou, o sistematizador de tal conceito – da moral comum, mas sim de uma moral jurídica, entendida como `o conjunto de regras de conduta tiradas da disciplina interior da Administração´. Desenvolvendo sua doutrina, explica o mesmo autor que o agente administrativo, como ser humano dotado da capacidade de atuar, deve, necessariamente, distinguir o Bem do Mal, o honesto do desonesto. E, ao atuar, não poderá desprezar o elemento ético de sua conduta. Assim, não terá que decidir somente entre o legal e o ilegal, o justo e o injusto, o conveniente e o inconveniente, o oportuno e o inoportuno, mas também entre o honesto e o desonesto. (...) O certo é que a moralidade do ato administrativo juntamente com a sua legalidade e finalidade, além de sua adequação aos demais princípios, constituem pressupostos de validade sem os quais toda atividade pública será ilegítima." (grifamos).

Prosseguindo, valemo-nos da conceituação de nepotismo utilizada pelo Ministro Ricardo Lewandowski, em voto acolhido por unanimidade e proferido na qualidade de Relator em Recurso Extraordinário 579.951-4 Rio Grande do Norte, apreciado em Sessão Plenária do Supremo Tribunal Federal [03], entre partes o Ministério Público Estadual e Município de Água Nova e outro, e que precedeu a súmula vinculante acima indicada, com reconhecimento de repercussão geral:

"Como se sabe, do ponto de vista etimológico, a palavra `nepotismo´ tem origem no latim, derivando da conjugação do termo nepote, significando sobrinho ou protegido, com o sufixo `ismo´, que remete à idéia de ato, prática ou resultado. A utilização desse termo, historicamente, advém da autoridade exercida pelos sobrinhos e outros aparentados dos Papas na administração eclesiástica, nos séculos XV e XVI de nossa era, ganhando, atualmente, o significado pejorativo do favorecimento de parentes por parte de alguém que exerce o poder na esfera pública ou privada." (grifamos).

Emerge dos votos deste julgado, sem margem para dúvidas, que o embasamento para o posicionamento adotado foi o conteúdo principiológico do caput, do artigo 37, da Constituição Federal, que estabelece:

"Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:" (grifamos).

O entendimento expresso do STF em relação à aplicação, no caso, dos referidos princípios constitucionais, fica evidenciado nos seguintes excertos do acórdão:

"Dentre tais pronunciamentos, ressalto a manifestação do Ministro Gilmar Mendes, nos seguintes termos: `Essa moralidade não é elemento do ato administrativo, como ressalta GORDILLO, mas compõe-se dos valores éticos compartilhados culturalmente pela comunidade e que fazem parte, por isso, da ordem jurídica vigente. (...) A vedação ao nepotismo é regra constitucional que está na zona de certeza dos princípios da moralidade e da impessoalidade."

(...)

"O princípio da moralidade administrativa tem uma primazia sobre os outros princípios constitucionalmente formulados, por constituir-se, em sua exigência, de elemento interno a fornecer a substância válida do comportamento público. Toda atuação administrativa parte deste princípio e a ele se volta. Os demais princípios constitucionais, expressos ou implícitos, somente podem ter sua leitura correta no sentido de admitir a moralidade como parte integrante do seu conteúdo. Assim, o que se exige, no sistema de Estado Democrático de Direito no presente, é a legalidade moral, vale dizer, a legalidade legítima da conduta administrativa." [04]

(...)

"A Constituição de 1988, em seu art. 37, caput, preceitua que a Administração Pública rege-se por princípios destinados a resguardar o interesse público na tutela dos bens da coletividade.

Esses princípios, dentre os quais destaco o da moralidade e impessoalidade, exigem que o agente público paute a sua conduta por padrões éticos que têm como fim último lograr a consecução do bem comum, seja qual for a esfera de poder ou o nível político-administrativo da Federação em que atue."

(...)

"O que estamos a discutir, aqui, eminente Ministro, é se os princípios do artigo 37, caput, são, ou não, auto-aplicáveis e se a proibição do nepotismo se estende a todos os Poderes da República e a todos os níveis político-administrativos da Federação, independentemente de lei formal. Essa é a questão.

Estou afirmando, no meu voto, a partir de um caso concreto que, realmente, os princípios são auto-aplicáveis, que a vedação ao nepotismo decorre exatamente da conjugação desses princípios da Constituição, com o etos prevalente na sociedade brasileira."

(...)

"A SENHORA MINISTRA CÁRMEN LÚCIA – Sim, na fórmula do artigo 37.

(...)

Isto é auto-aplicável, não depende de nada, todo mundo tem de cumprir, vale para todos, vale para o Poder Público e vale para o particular, que também não pode alegar desconhecimento e não ter como dado válido, resolvendo que pode tomar assento a estes cargos. Portanto, quanto a essa fundamentação acolho integralmente." (grifamos).

Merecem destaque, no curso das discussões, os seguintes trechos do voto do Ministro Celso de Mello:

"Sabemos todos que a atividade estatal, qualquer que seja o domínio institucional de sua incidência, está necessariamente subordinada à observância de parâmetros ético-jurídicos que se refletem na consagração constitucional do princípio da moralidade administrativa, que se qualifica como valor constitucional impregnado de substrato ético e erigido à condição de vetor fundamental no processo de poder, condicionando, de modo estrito, o exercício, pelo Estado e por seus agentes, da autoridade que lhes foi outorgada pelo ordenamento normativo. Este postulado, que rege a atuação do Poder Público, confere substância e dá expressão a uma pauta de valores éticos, nos quais se funda a própria ordem positiva do Estado.

É por essa razão que o princípio constitucional da moralidade administrativa, ao impor limitações ao exercício do poder estatal, legitima o controle de todos os atos do poder público que transgridam os valores éticos que devem pautar o comportamento dos órgãos e dos agentes governamentais, não importando em que instância de poder eles se situem.

(...)

Cabe lembrar, neste ponto, Senhor Presidente, o alto significado que o princípio da moralidade assume, em nosso sistema constitucional, tal como esta Suprema Corte já teve o ensejo de enfatizar:

`O PRINCIPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA – ENQUANTO VALOR CONSTITUCIONAL REVESTIDO DE CARÁTER ÉTICO-JURÍDICO – CONDICIONA A LEGITIMIDADE E A VALIDADE DOS ATOS ESTATAIS.

- A atividade estatal, qualquer que seja o domínio institucional de sua incidência está necessariamente subordinada à observância de parâmetros ético-jurídicos que se refletem na consagração constitucional do princípio da moralidade administrativa. Esse postulado fundamental, que rege a atuação do Poder Público, confere substância e dá expressão a uma pauta de valores éticos sobre os quais se funda a ordem positiva do Estado.

- O princípio constitucional da moralidade administrativa, ao impor limitações ao exercício do poder estatal, legitima o controle jurisdicional de todos os atos do Poder Público que transgridam os valores éticos que devem pautar o comportamento dos agentes e órgãos governamentais. (...)´ (RTJ 182/525-526, Rel. Min. CELSO DE MELLO. Pleno)".

(...)

Esta Suprema Corte, ao reconhecer que a vedação à prática do nepotismo incide sobre os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, independentemente de sua previsão em lei formal, estendendo-se tal proibição a todos os órgãos estatais (qualquer que seja a instância de poder em que se situem), reafirma a força normativa da Constituição da República e preserva a supremacia (formal e material) de que se revestem as normas e princípios constitucionais, cuja integridade, eficácia e aplicabilidade, por isso mesmo, hão de ser valorizadas em face de sua precedência, de sua autoridade e de seu grau hierárquico.

(...)

A consagração do nepotismo na esfera institucional do poder político não pode ser tolerada, sob pena de o processo de governo – que há de ser impessoal, transparente e fundado em bases éticas – ser conduzido a verdadeiro retrocesso histórico, o que constituirá, na perspectiva da atualização e modernização do aparelho de Estado, situação de todo inaceitável.

(...)

Torna-se necessário banir, definitivamente, de nossos costumes administrativos, a prática inaceitável do nepotismo, porque, além de infringente da ética republicana, transgride os postulados constitucionais da igualdade, da impessoalidade, da transparência e da moralidade administrativa." (grifamos).

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A ementa do v. acórdão recebeu sua formulação final nos seguintes termos:

"ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. VEDAÇÃO NEPOTISMO. NECESSIDADE DE LEI FORMAL. INEXIGIBILIDADE. PROIBIÇÃO QUE DECORRE DO ART. 37, CAPUT, DA CF. RE PROVIDO EM PARTE.

I – Embora restrita ao âmbito do Judiciário a Resolução 7/2005 do Conselho Nacional da Justiça, a prática do nepotismo nos demais Poderes é ilícita.

II – A vedação do nepotismo não exige a edição de lei formal para coibir a prática.

III – Proibição que decorre diretamente dos princípios contidos no art. 37, caput, da Constituição Federal.

IV – Precedentes.

V – RE conhecido e parcialmente provido para anular a nomeação de servidor, aparentado com agente político, ocupante de cargo em comissão." (grifamos).

Nos referidos autos, o STF, previamente à decisão acima transcrita, acolheu preliminar de repercussão geral, resultando na pronuncia por meio de acórdão com eficácia vinculante, e na configuração, subseqüente, da referida Súmula Vinculante nº 13, cujas discussões de aspectos formais se encontram acessíveis, transcritas nas Atas das 21ª e 28ª Sessões, Ordinária e Extraordinária, daquele Pretório Excelso, realizadas em 20 e 21 de agosto de 2008 [05], respectivamente.

No mesmo julgado, além do anteriormente apontado e que delineia seu firme entendimento, merece destaque a afirmativa esclarecedora do posicionamento daquela Corte em relação à necessidade de disposição normativa infraconstitucional acerca da matéria, no voto do Relator, para sua eficácia:

"De fato, embora existam diversos atos normativos no plano federal que vedam o nepotismo(5), inclusive no âmbito desta Corte(6), tal não significa que apenas leis em sentido formal ou outros diplomas regulamentares sejam aptos a coibir a nefasta e anti-republicana prática do nepotismo. É que os princípios constitucionais, longe de configurarem meras recomendações de caráter moral ou ético, consubstanciam regras jurídicas de caráter prescritivo, hierarquicamente superiores às demais e `positivamente vinculantes´, como ensina Gomes Canotilho.

A sua inobservância, ao contrário do que muitos pregavam até recentemente, atribuindo-lhes uma natureza apenas programática, deflagra sempre uma conseqüência jurídica, de maneira compatível com a carga de normatividade que encerram. Independentemente da preeminência que ostentam no âmbito do sistema ou da abrangência de seu impacto sobre a ordem legal, os princípios constitucionais, como se reconhece atualmente, são sempre dotados de eficácia, cuja materialização pode ser cobrada judicialmente se necessário.

Por oportuna, relembro aqui a conhecida e sempre atual lição de Celso Antonio Bandeira de Mello, segundo a qual `(...) violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório mas a todo sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra. Isto porque, com ofendê-lo, abatem-se as vigas que o sustêm e alui-se toda estrutura nelas esforçada.´(8) [06].

Ora, tendo em conta a expressiva densidade axiológica e a elevada carga normativa que encerram os princípios abrigados no caput do art. 37 da Constituição, não há como deixar de concluir que a proibição do nepotismo independe de norma secundária que obste formalmente essa reprovável conduta,(...)." (grifamos).

Observe-se que em notas de nºs. 5 e 6, indicadas neste trecho transcrito, o Relator reporta-se, exemplificativamente, aos seguintes instrumentos normativos: "Lei 8.112/90", "Lei 9.421/96", "Lei 9.953/00", "Resolução 246 do STF de 18/12/2002, alterada pela resolução 249 de 5/2/2003" e " Regimento Interno do STF", deixando claro que, apesar de inexigível o regramento infraconstitucional, nada o impede.

Acrescentamos a estes, a título também exemplificativo, o Decreto federal nº 7.203, de 4 de junho de 2010, que disciplina a "vedação do nepotismo no âmbito dos órgãos e entidades da administração pública federal direta e indireta" [07], normatizando também alguns aspectos do relacionamento também com pessoas jurídicas de direito privado e entidades do terceiro setor, nos seguintes termos:

"Art. 3º (...)

§ 3º  É vedada também a contratação direta, sem licitação, por órgão ou entidade da administração pública federal de pessoa jurídica na qual haja administrador ou sócio com poder de direção, familiar de detentor de cargo em comissão ou função de confiança que atue na área responsável pela demanda ou contratação ou de autoridade a ele hierarquicamente superior no âmbito de cada órgão e de cada entidade.

(...)

Art. 6º  Serão objeto de apuração específica os casos em que haja indícios de influência dos agentes públicos referidos no art. 3º:

I – (...);

II - na contratação de familiares por empresa prestadora de serviço terceirizado ou entidade que desenvolva projeto no âmbito de órgão ou entidade da administração pública federal.

Art. 7º  Os editais de licitação para a contratação de empresa prestadora de serviço terceirizado, assim como os convênios e instrumentos equivalentes para contratação de entidade que desenvolva projeto no âmbito de órgão ou entidade da administração pública federal, deverão estabelecer vedação de que familiar de agente público preste serviços no órgão ou entidade em que este exerça cargo em comissão ou função de confiança." (grifamos).

Verifica-se nestes dispositivos do decreto a imposição, pelo Executivo da União, de três tipos diferentes de vedação envolvendo especificamente pessoas jurídicas de direito privado ou entidades do terceiro setor:

a) contratações, sem licitação, de pessoas jurídicas que tenham como administrador ou sócio com poder de direção, familiar (ou, tecnicamente mais preciso, com vínculos de consangüinidade ou afinidade) de ocupante de cargo em comissão ou função de confiança no órgão ou entidade contratante;

b) contratações de pessoas com vínculos de consangüinidade ou afinidade com agentes públicos (nos mesmos parâmetros da Súmula Vinculante nº 13) por entidades privadas que desenvolvam projetos no âmbito de órgãos ou demais entidades integrantes da administração pública federal;

c) ficam impedidos parentes de agentes públicos, já empregados de empresas privadas de contratadas para serviços terceirizados ou de partícipes de convênios ou instrumentos equivalentes, de prestar serviços nos órgãos ou entidades em que aqueles ocupem cargos de provimento em comissão ou função de confiança.

O Executivo federal buscou impedir, por entender ofensiva ao princípio constitucional da moralidade administrativa, mediante a indicada normatização própria, a utilização, por agentes públicos, de empresas privadas ou entidades do terceiro setor que estejam sujeitas ao seu poder de influência, de promoverem o nepotismo nas formas que identificou.

Diante da possibilidade de ofensa àquele princípio, incumbe à Administração Pública adotar disciplinamento competente para vedar tal possibilidade, visto que as disposições trazidas pela Súmula Vinculante, por sua própria natureza, não abarcam todas as hipóteses passíveis de previsão.

Importante mencionar-se que a parametrização indicada na consulta, emanada da Egrégia Corte de Contas do Estado, mediante o Comunicado SDG 14/2010 [08], não aponta, diretamente, para a implantação de vedações como as pretendidas, mas prevê, relacionado ao assunto, expressamente, que:

"1. A lei de diretrizes orçamentárias há de estabelecer critérios para repasse financeiro a entidades do terceiro setor,...

...

3- Assim, há de haver certo detalhamento que iniba a má utilização do dinheiro público. Cabem, assim, critérios que ora se exemplificam:

a)...;

e) vedação para entidades cujos dirigentes sejam também agentes políticos do governo concedente." (grifamos).

Portanto não pode ser afirmado que houve recomendação expressa proveniente do TCE/SP relacionada à hipótese da consulta, de entidade fazer ou não pagamentos, a qualquer título, a "cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive" com recursos oriundos de repasses da Administração Pública, mas cabe ao Administrador Público incumbindo da gestão dos recursos públicos avaliar se tal pagamento agride "os valores éticos compartilhados culturalmente pela comunidade" local, "e que fazem parte, por isso, da ordem jurídica vigente", afigurando-se como atentatório ao princípio da moralidade previsto no caput do artigo 37, da Constituição Federal.

Assim estando convencido, deverá adotar as medidas destinadas ao impedimento do nepotismo nesta hipótese, buscando inibir a má utilização do dinheiro público.

Observe-se que a menção à lei orçamentária no texto transcrito decorre do fato de que o Comunicado SDG foi emitido para alertar "... em face do atual processo de elaboração da lei de diretrizes orçamentárias – LDO, devem os jurisdicionados atentar para o que segue", ou seja, atentou àquele momento em que se preparava a tramitação legislativa das LDOs, não sendo impositivo que a matéria seja tratada pela consulente mediante lei.

A escolha do instrumento mencionado na consulta, a exemplo do já transcrito normativo federal, está adequada.

Este entendimento encontra respaldo nas lições dos atualizadores do mestre Hely Lopes Meirelles:

"4.1. Atos gerais ou normativos

Atos administrativos normativos são aqueles que contêm um comando geral do Executivo, visando à correta aplicação da lei. O objetivo imediato de tais atos é explicitar a norma legal a ser observada pela Administração e pelos administrados. Esses atos expressam em minúcia o mandamento abstrato da lei, e o fazem com a mesma normatividade da regra legislativa, embora sejam manifestações tipicamente administrativas. A essa categoria pertencem os decretos regulamentadores e os regimentos, bem como as resoluções, deliberações e portarias de conteúdo geral.

Tais atos, conquanto normalmente estabeleçam regras gerais e abstratas de condutas, não são leis em sentido formal, por isso estão necessariamente subordinados aos limites jurídicos definidos na lei formal. São leis apenas em sentido material, vale dizer, provimentos executivos com conteúdo de lei, com matéria de lei. Esses atos, por serem gerais e abstratos, têm a mesma normatividade da lei e a ela se equiparam para fins de controle judicial, mas quando, sob a aparência de norma, individualizam situações e impõem encargos específicos a administrados, são considerados de efeitos concretos e podem ser atacados e invalidados direta e imediatamente por via judicial comum, ou por mandado de segurança, se lesivos de direito individual líquido e certo. [...]

4.1.1. DecretosDecretos, em sentido próprio e restrito, são atos administrativos da competência exclusiva dos Chefes do Executivo, destinados a prover situações gerais ou individuais, abstratamente previstas de modo expresso, explícito ou implícito, pela legislação. [...]

4.1.1.2. Decreto regulamentar ou de execução: é o que visa a explicitar a lei e facilitar sua execução, aclarando seus mandamentos e orientando sua aplicação. [...]

4.1.5. Resoluções – Resoluções são atos administrativos normativos expedidos pelas altas autoridades do Executivo(mas não pelo Chefe do Executivo, que só deve expedir decretos) ou pelos presidentes de tribunais, órgãos legislativos e colegiados administrativos, para disciplinar matéria de sua competência específica. Por exceção admitem-se resoluções individuais. [09] (grifamos).

Verifica-se, pois, que a recente doutrina aclara quanto à correta escolha do instrumento mais adequado para os fins pretendidos pela consulente.

Assim, respondendo objetivamente à consulta formulada, considerando o exposto, a regra que se pretende editar, mediante decreto, encontra-se em consonância com a normatização vigente.

É o parecer.

GUILHERME LUIS DA SILVA TAMBELLINI


Notas

  1. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=13.NUME. E S.FLSV.&base=baseSumulasVinculantes, acesso em 16/02/2011.
  2. Direito Administrativo Brasileiro, 36ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010, págs. 90/91
  3. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginador/paginador.jsp?docTP=AC&docID=557587, acesso em 16/02/2011
  4. Citando a Ministra, daquele STF, "ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Princípios constitucionais de administração pública. Belo Horizonte: Del Rey, 1994, pp. 213-214"
  5. disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/jurisprudenciaSumulaVinculante/anexo/DJE_11.11.2008.pdf, acesso em 16/02/2011
  6. "(8) MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 25 ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 943".
  7. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Decreto/D7203.htm, acesso em 21/02/2011
  8. Disponível em: http://www.tce.sp.gov.br/publicacoes/comunicados/comunica.shtm, acesso em 14/02/2011
  9. Direito Administrativo Brasileiro, 36ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 182 a 184 e 186.
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Sobre o autor
Guilherme Luis da Silva Tambellini

Graduado em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente é Chefe de Gabinete do Secretário da Fazenda do Estado de São Paulo. Integrou a Assessoria Jurídica do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (Gabinete Conselheiro Sidney Beraldo), foi Gerente Jurídico da Fundação Padre Anchieta (TV Cultura e Rádio Cultura de São Paulo). Foi Dirigente da Controladoria Interna e integrou também o corpo Técnico-Jurídico da Coordenadoria de Assistência Jurídica, e Procurador Jurídico, todos da Fundação Prefeito Faria Lima/CEPAM. Foi Assessor Técnico dos Gabinetes dos Secretários da Fazenda e Transportes Metropolitanos do Estado de São Paulo, Chefe de Gabinete da Secretaria da Habitação do Estado de São Paulo, além de Secretário Executivo e Membro do Conselho de Defesa dos Capitais do Estado-CODEC, da Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo. Foi também Membro dos Conselhos de Administração da CDHU/SP e da EMTU/SP e do Conselho Fiscal da COSESP/SP, assim como Dirigente da Consultoria Jurídica da Banespa - Serviços Técnicos e Administrativos.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TAMBELLINI, Guilherme Luis Silva. Nepotismo com recursos públicos em entidades do terceiro setor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2823, 25 mar. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/pareceres/18753. Acesso em: 18 abr. 2024.

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