PARECER
PARECER. ATUAÇÃO DO VICE-PRESIDENTE NO EXERCÍCIO DA PRESIDÊNCIA. EDIÇÃO DE DECRETOS DE ABERTURA DE CRÉDITOS SUPLEMENTARES SEM COBERTURA ORÇAMENTÁRIA OU LEGAL. AUSÊNCIA DE RESPONSABILIDADE QUANTO AO SEU CONTEÚDO.
1. O Vice-presidente da República, quando no exercício da Presidência por motivo de viagem internacional oficial do Presidente da República, ocupa a mesma posição jurídica do titular, estando em situação jurídica de coposição.
2. Os atos administrativos praticados pelo Vice-presidente da República quando em coposição, preparados pela assessoria da Presidência e em conformidade com as políticas públicas e econômicas do titular do cargo, são postsincronizados, é dizer, são expressão da vontade do titular por ato expletivo, sem autogenia, praticado pelo copositor derivado.
3. Ausência de responsabilidade. Inexistência de crime de responsabilidade do Vice-presidente da República. Ato presidencial postsincronizado pelo ato do Vice-presidente.
1. Consulta.
Consulta-nos o Deputado Federal, XXXXXXX, do Partido XXX, sobre a responsabilidade jurídica, no capítulo dos crimes de responsabilidade, do Excelentíssimo Senhor Vice-presidente da República, Michel Miguel Elias Temer Lulia, como agente político, pela edição de decretos dispondo sobre a abertura de créditos suplementares solicitados pela assessoria do Gabinete da Presidência, quando estava em viagem internacional a Excelentíssima Senhora Presidente da República, Dilma Vana Rousseff.
Informa o Consulente que a imprensa teria publicado ter o Vice-presidente da República assinado pelo menos três decretos não numerados de crédito suplementar para diversos órgãos do Poder Executivo, estados e municípios, e liberado, sem o consentimento do Congresso, como exigido por lei, cerca de R$ 8 bilhões, conforme noticiado pelo portal do jornal O Globo de 08 de dezembro do ano corrente.
Saliente-se, então, que o objeto da consulta resume-se apenas à questão dos limites da responsabilidade dos atos do Vice-presidente no exercício da Presidência da República, quando da prática de atos administrativos executivos de política econômica ou de gestão estabelecidas pela titular do mandato eletivo, sem ingressar na questão da existência, ou não, de cobertura orçamentária e legal quando da edição de cada um daqueles decretos presidenciais.
2. Precisando conceitos sobre a competência dos atos administrativos.
O agir administrativo é exercício da função pública. Ela, a função pública, é o poder jurídico dirigido a um fim público; um feixe de poderes-deveres que enchem e demarcam o âmbito de atuação legítima do órgão público ou do agente público, é dizer, a sua competência funcional. Os poderes para a realização do interesse público são afetados a entidades existentes na estrutura organizacional da Administração Pública, criados eles e elas por lei, que demarcam materialmente o seu modo de atuação e, formalmente, o campo de atuação. Notem. A competência estabelece fronteiras importantes para delimitar a legitimidade ou não do ato administrativo.
A competência é a parcela dos deveres-poderes da Administração Pública punctualizada em um determinado órgão. É dizer, o ordenamento jurídico prescreve um feixe de atribuições a uma unidade interna ou a um determinado cargo, emprego ou função ocupado ou exercido por agente público e lhe afeta poderes para a realização da finalidade pública colimada. Órgão é, pois, o centro de funções administrativas, que nada mais são do que os poderes-deveres enfeixados para a realização de uma finalidade pública e ocupado/exercido por agentes públicos, que são os seus portadores.
Para a existência do ato administrativo, é preciso que o órgão que o expeça seja parte da Administração Pública. Se, porém, a expedição for feita por quem é parte da Administração Pública, porém não possua competência específica para agir legitimamente, o ato administrativo existe, porém invalidamente. Os casos de incompetência, absoluta ou relativa, devem ser analisados no âmbito do plano da validade, para que se possa pesquisar a sua nulidade ou anulabilidade, é dizer, a sua possibilidade ou não de convalidação.
i. Desconcentração e descentralização.
Os deveres-poderes que enchem o conceito de função pública são distribuídos especificamente para cada um dos órgãos que compõem a Administração Pública. Se eles são repassados para pessoas jurídicas que formam a chamada Administração Indireta, diz-se que houve descentralização das competências originalmente próprias da Administração Direta ou de serviços que, não sendo próprios, interessa sejam prestados por meio de empresas criadas por ela; se, doutra banda, a especificação das competências é delimitada dentro dos órgãos que compõem a Administração Direta, distribuídas pelos cargos que formam a sua estrutura interna, observando-se as várias lâminas de hierarquia, diz-se que há desconcentração.
A desconcentração é afetação de competências pelo ordenamento jurídico para os diversos níveis de hierarquia, cada qual com um espaço próprio de atuação delimitado. Os níveis hierárquicos superiores não podem, sem expressa previsão normativa, invadir aqueles espaços funcionais de escalão mais abaixo na pirâmide da estrutura do órgão. É dizer, o poder de mando conferido ao superior hierárquico não o autoriza a substituir-se ao agente público competente, fazendo em seu lugar o que não está no âmbito da sua atribuição de mais elevado coturno.
ii. Teoria da desconcentração: posição jurídica, lugaridade, esfera jurídica, título legitimário e âmbito de atribuições.
Posição jurídica é a expressão da lugaridade do sujeito de direito no mundo jurídico, involucrada pelos direitos, deveres, situações, que formam a esfera jurídica em que o sujeito se insere e lhe identifica no mundo frente a outros. Denomino lugaridade a qualidade "espacial" da posição jurídica, é dizer, a sua característica de ter um lugar punctual, localizável, no seio de situações e relações jurídicas de que faça parte o sujeito de direitos. Aqui e ali, por comodidade, me referirei à lugaridade posicional quando estiver falando explicitamente sobre esse aspecto importante das posições jurídicas.
Há posição jurídica onde quer que se encontre um sujeito de direito; é mais saliente a sua percepção frente a outras posições, quer estejam inseridas no seio de uma relação jurídica existente, quer não haja relação jurídica entre ela e outras, ou exista, conviva e possa, eventualmente, relacionar-se no seio de situações jurídicas, ainda que apenas indiretamente, como ocorre com as situações jurídicas uniposicionais ou monotópicas. A posição jurídica é produto da subjetivação do ordenamento jurídico; o que está difuso e afina, adelgaça, punctualizando-se em um sujeito de direito como ponto-limite é o que origina a posicionalidade. E o sujeito assume não apenas uma, mas diversas posições jurídicas no tráfego da sua vida jurídica.
Onde haja um sujeito de direito, ainda que não dotado de personalidade jurídica, e haja a sua inserção em uma situação jurídica, há posição jurídica por ele ocupada. Se lhe é conferida titularidade de direitos e deveres, há posição jurídica como termo de uma relação jurídica. A posição jurídica, dessarte, é o espaço punctual que o sujeito de direito ocupa no mundo jurídico e demarca, no âmbito da sua esfera jurídica, a sua lugaridade frente a outras ou, também, em estado relacional com outras. Estar diante de outras esferas jurídicas não é o mesmo que estar em relação jurídica com elas. O ser sócio de uma empresa é ter posição jurídica relacional com os demais sócios, tendo cada um deles os direitos, deveres, pretensões, obrigações, que enchem o conceito de esfera jurídica; ademais, há vínculo relacional também com a própria sociedade da qual faz parte. Diferentemente, ser agente público é ter posição jurídica dentro da estrutura organizacional da Administração Pública por meio de um título legitimário que outorga aquela qualidade jurídica. Trata-se de uma situação jurídica uniposicional, diversamente daquela pluriposicional. Aquele título jurídico legitimário o faz estar frente a outros agentes públicos e a pessoas privadas, não necessariamente dentro de uma relação jurídica, porém sempre com o seu múnus público, atribuições específicas e, quando fazendo parte de uma relação jurídica, com direitos e deveres, formando a sua esfera jurídica. Em cada relação jurídica que ingresse com essa titulação, estará com a sua lugaridade posicional demarcada extensionalmente pelo plexo de poderes-deveres que lhe sejam afetos.
Esfera jurídica é o conjunto dos efeitos que dimanam de fatos jurídicos e envolvem o sujeito de direito; esse, o sujeito de direito, pode ter personalidade jurídica ou ser ente despersonalizado, estando sempre presentes no suporte fático de todas as normas que se refiram a efeitos jurídicos cuja titularidade seja atribuída à pessoa ou ente, demarcando o campo de competências, atribuições e possibilidades jurídicas. O sujeito de direito possui várias posições jurídicas involucradas em sua esfera jurídica. Todos os efeitos jurídicos, sejam eles no seio de uma situação jurídica ou de relação jurídica, que envolvem o sujeito de direito se entrelaçam em um todo que forma a sua esfera jurídica, o seu modo de ser e estar no mundo jurídico.
O conceito de posição jurídica tem sido negligenciado nos estudos jurídicos, nada obstante seja importante para a compreensão do que se passa nas situações jurídicas, nas relações entre relações jurídicas e nas relações internas à composição da relação jurídica. Um sujeito de direito pode ter mais de uma posição jurídica dentro da mesma relação, ora sendo sujeito ativo ora sendo sujeito passivo, como ocorre nas relações de ida-e-vinda, ditas relações conversas, de uns frente a outros com direitos e deveres recíprocos. O servidor público, por exemplo, ao integrar institucionalmente a Administração Pública, ocupa posição jurídica específica na situação jurídica em que se encontra inserido estatutariamente; outrossim, estará ocupando também diversas posições jurídicas, por vezes como beneficiário de direitos subjetivos ou responsável por deveres que lhe sejam afetos.
Ganha em interesse prático o tema quando se pensa que o regime jurídico administrativo possui um estatuto próprio, no qual os agentes políticos e agentes públicos se inserem quando são habilitados e empossados em seus mandatos, cargos, empregos e funções. A posição jurídica do agente público, na qualidade de agente público, notem bem, é definida e regrada por lei e regulamentos, quando aquela os autoriza. A esfera jurídica composta por direitos, deveres, múnus e atribuições é o envoltório em que se metem as posições jurídicas dos sujeitos de direito; aqui, no interior de uma regulação estatutária.
Os atos administrativos têm como pressuposto de validade justamente a adequação da posição jurídica ocupada por quem o pratica às atribuições do cargo que ocupa. O servidor público que pratica um ato estranho ao âmbito das suas atribuições disciplinadas em lei age invalidamente. Ao mesmo tempo, o agente público não pode ser responsabilizado por não ter praticado atos que estejam fora do âmbito da sua competência funcional. O procurador tem a competência de analisar a fase interna de um processo licitatório, por exemplo, emitindo parecer jurídico sobre a sua regularidade formal ou não. Em sua análise não cabe verificar a adequação dos orçamentos apresentados aos preços de mercado. A análise da adequação dos preços cotados na fase interna é responsabilidade do setor de compras; a questão do fracionamento, pertence ao órgão que pediu a aquisição ou ao setor financeiro que cabia controlar os gastos públicos. É dizer, o controle dos atos administrativos apenas pode ser feito, quanto ao agente público, observando-se os limites positivos e negativos (excludentes) da sua esfera jurídica funcional, enchida pela competência que a lei lhe outorga, que diz respeito à posição jurídica ocupada pelo sujeito de direito na situação jurídica institucional em que está inserido.
A lugaridade posicional é, dessarte, fundamental para se observar o âmbito de atribuições funcionais demarcado na intimidade da sua esfera jurídica e, com ela, a abrangência da sua competência funcional no quadro organizacional da entidade pública. Se um deputado federal não foi eleito para compor uma determinada comissão parlamentar, não pode praticar atos jurídicos validamente em nome dela como seu membro, porque a membridade nasce da escolha dos pares, na forma regimental. É dizer, ainda que seja parlamentar como os demais membros da comissão, não tem título legitimário que o habilite para atuar em nome dela, tampouco para atuar com os seus membros como se fosse um deles. O membro tem posição jurídica na comissão perante os que não o são e os demais que são, também, membros com ele, além de poder assumir posições jurídicas dentro da comissão, como presidente, relator e que tais.
É dizer, dentro da situação jurídica em que se encontra o sujeito de direito inserido, é possível que se ocupem diversas posições como lugares irradiadores de poderes-deveres, bem como de direitos, deveres, ou seja, atribuições fixadas pelo direito objetivo. A lugaridade posicional demarca o eixo subjetivo definidor do âmbito de atribuições conferidas por meio do ato legitimário. No direito processual civil, o exemplo mais marcante e puro é o litisconsórcio necessário unitário, em que não apenas as faculdades processuais são comuns, como uniforme será o resultado.
iii. Situações jurídicas uniposicionais ou monotópicas: a "coposição" jurídica.
A monotopia é um fenômeno encontradiço nas relações de direito público, nada obstante exista por igual no direito privado. A compropriedade é exemplo corrente de unitopismo: há uma só posição jurídica ocupada por tantos quantos sejam os proprietários comuns. No direito público, há situações jurídicas em que dois ou mais sujeitos de direito ocupam a um só tempo a mesma posição jurídica, como se dá com o presidente da República em viagem internacional oficial e o seu vice, que fica no país exercendo as funções presidenciais. Não se trata de substituição, dado que ambos estão contemporaneamente ocupando a mesma posição jurídica e praticando atos administrativos afetos exclusivamente ao cargo de presidente da República; tampouco, é evidente, não estamos em face da hipótese de sucessão, que é substituição definitiva. Dado que estão na mesma posição jurídica simultaneamente, é conveniente denominar essa situação monotópica de coposição. Não se compõem os sujeitos; põem-se igualmente, ou seja, co-põem-se, mercê de um título legitimário, ainda que precário, coalescendo momentaneamente as funções públicas exercidas por ambos.
Podemos falar em coposição própria e imprópria. Na coposição própria, o unitopismo plurissubjetivo é da natureza da situação jurídica, como a compropriedade, no direito material, e o litisconsórcio necessário, no direito processual. Assim, os sujeitos de direito que estão em unitopismo plurissubjetivo possuem a mesma extensão e qualidade originária de poderes-deveres, bem como de direitos, deveres; pretensões, obrigações; e ações. De outra sorte, na coposição imprópria há posição ocupada originariamente por um ou mais sujeitos de direito e, por derivação, ocupada temporariamente também por outro ou outros sujeitos de direito, como ocorre com o vice-presidente da República, no direito material, e o litisconsórcio facultativo, no direito processual.
O que merece aqui a nossa atenção é o fato de termos a possibilidade jurídica de que dois ou mais sujeitos de direito ocupem de modo simultâneo a mesma posição jurídica monotópicamente. Não há relação biunívoca entre situação jurídica uniposicional e situação jurídica unissubjetiva, como aqui e ali se vê afirmada. Como demonstramos, um ou mais sujeitos de direito podem ocupar a mesma lugaridade posicional; assim, sendo uma a posição (monotopia), mais de um sujeito podem ocupá-la (unissubjetividade ou plurissubjetividade).
Se, porém, para a prática de um ou mais atos específicos o titular restar impedido e outrem lhe fizer as vezes, não é caso de coposição, mas de simples substituição, ainda que para um único ato. Nesse caso, apenas o substituto pode praticar o ato, estando em situação jurídica monotópica em regime de exclusividade; aqui, nessa hipótese, pode-se falar em unissubjetividade.
Devemos distinguir, desse modo, a situação jurídica uniposicional unissubjetiva da situação jurídica uniposicional plurissubjetiva. Aquela é a espécie mais comum; essa, em casos tarifados pelo ordenamento jurídico. A monotopia unissubjetiva, quando ocorre com pessoa (= sujeito de direito dotado de personalidade jurídica), é o que chamamos de status, vale dizer, qualidade atinente à pessoa globalmente derivada da sua pertença a um núcleo institucional regrado por normas estatutárias que estabelecem situação jurídica uniforme e homogênea. Ser cidadão, servidor público, magistrado, advogado, eleitor, etc., são status conferidos à pessoa por um ato legitimário, que é sempre um ato jurídico lato sensu. Dessarte, o status é efeito jurídico, a qualidade de estar em situação, que é sempre pressuposta para a plena incidência da disciplina normativa homogênea (estatutária).