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A tragédia da Boate Kiss, o dolo eventual e as exceções à presunção de inocência

Agenda 15/09/2022 às 15:40

No dolo eventual o agente prevê o resultado lesivo como possível e concorda com ele. Embora não o queira, aceita-o, ou seja, não se importa.

Em outras publicações fiz rápidas referências à questão do dolo e da culpa ante a teoria finalista da ação. Nestes não há mais o sentido de reprovação da conduta, mas de elemento do tipo penal. Assim, o crime será doloso se o agente quis o resultado. Será culposo se agiu por alguma das formas de culpa: imprudência, imperícia ou negligência.

O fato de querer o resultado, por exemplo, querer matar, não significa que deva ser condenado, porquanto há circunstâncias que podem excluir o crime ou isentar de pena, como na morte em legitima defesa ou na não punibilidade do aborto necessário.

Também a falta do dever de cuidado, caracterizador da culpa, pode redundar em não punição, se não há previsão daquele crime na forma culposa, ou se o resultado lesivo era imprevisível para o cidadão comum.

Há várias formas de se analisar essas condutas e sua classificação, inclusive o crime preterdoloso, quando o agente age com dolo, mas não quer o resultado que era previsível. Por exemplo, um simples soco em pessoa frágil, que cai e bate a cabeça, ou um corte na perna, com hemorragia e morte. O exemplo clássico é o crime de lesão corporal seguido de morte. É um crime agravado pelo resultado. Há dolo no fato antecedente e culpa no consequente.

 Deixei passar a comoção causada pelo julgamento da tragédia da Boate Kiss para me atrever a comentar o assunto que foi a questão central daquele julgamento: o dolo eventual.

Coloquei o tema em linha gerais para tornar acessível ao leitor que logo se dá conta que a questão é muito complexa, pois para decidir o julgador deve buscar elementos concretos para avaliar o íntimo do acusado.

  É fácil entender o querer o resultado, característico do dolo, da falta de cuidado, característica da culpa. No entanto, é muito difícil distinguir o dolo eventual da culpa consciente.

A definição clássica diz que no dolo eventual o agente não quer produzir o resultado, mas aceita o risco de produzi-lo.

E o que seria a culpa consciente?

Para a facilitar a compreensão dos meus alunos eu utilizava um exemplo comparativo examinando o íntimo do acusado.

No dolo direto fica evidente que o agente quer matar, atira e mata a vítima.

No crime culposo o agente atua com falta de cuidado, ou porque não tem o conhecimento técnico, sendo imperito; age com descaso, sendo negligente; ou é afoito, imprudente, descuidado, causando o dano. Exemplo clássico: dá um tiro em local habitado, numa floresta onde caminham pessoas, e sem querer acaba atingindo alguém.

Na chamada culpa consciente, o agente não quer o resultado e não o aceita como possível de ocorrer. Acredita sinceramente que não ocorrerá. Dá o tiro e tem plena confiança em sua pontaria. Tem certeza que não vai errar e não vai atingir ninguém. Se vislumbrasse a possibilidade de atingir uma pessoa, desistiria imediatamente de sua ação.

Ai o ponto central que faz distinguir o dolo eventual da culpa consciente. No dolo eventual o agente prevê o resultado lesivo como possível e anui a ele. Embora não o queira, aceita-o, ou seja, não se importa. Prefere correr o risco do resultado do que desistir da ação.

Parece que foi a essa conclusão que chegou o corpo de jurados ao condenar os acusados, entendendo que, embora não quisessem o resultado, com sua conduta assumiram o risco de produzi-lo. Não queriam, mas o resultado era previsível.

Se o previram como possível e preferiram correr o risco de que viesse a ocorrer do que desistir da ação, essa a caracterização do dolo eventual a que chegaram os jurados, que o distingue da culpa consciente.

O tema é difícil e, no caso de embriaguez ao volante, por exemplo, tem sido ora acolhido, ora rejeitado, decidindo o Superior Tribunal de Justiça recentemente que a embriaguez ao volante não é o único elemento apto a caracterizar o dolo eventual, sendo necessário levar em consideração outros fatores, como por exemplo a velocidade excessiva.

Ao proferir a sentença, que condenou os réus a penas superiores a quinze anos, o magistrado determinou sua prisão com base no art. 492, do CPP, na redação da Lei nº 13.964/2019, que retirou o efeito suspensivo de eventual apelação, ordenando o imediato início do cumprimento da pena.

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Nesse momento aportou decisão proferida pelo Des. Manuel José Martinez Lucas, do Tribunal de Justiça, concedendo liminar em Habeas Corpus impetrado por uma das defesas, para suspender a prisão, tendo o Juiz Presidente do Júri estendido os efeitos aos demais condenados. Na decisão o Relator invoca precedentes do STJ, que aplicam orientação repetida pelo STF de presunção constitucional de inocência, considerando que a prisão só pode ocorrer após o trânsito em julgado da condenação.

Em decisão excepcionalíssima de contracautela, aplicada em raros casos de risco de grave lesão à ordem, à saúde, segurança e à economia públicas no cumprimento da decisão impugnada, o Presidente do STF, Min. Luiz Fux, acolheu pedido do Ministério Público para suspender a liminar, ordenando a imediata prisão dos réus. Na decisão o Ministro invoca precedente de 2016, do saudoso Min. Teori Zavascki, sobre a soberania do Júri, e a recente alteração do Código de Processo Penal pela Lei n. 13.964/2019 (Denominada de Pacote Anticrime) que incluiu no referido diploma o artigo 492, § 4º, possibilitando a imediata prisão nas condenações pelo Júri a penas superiores a 15 anos.

Ressalte-se que em alguns casos expressamente previstos, de razoabilidade do recurso, pode o próprio Juiz Presidente ou o Desembargador Relator do Tribunal, suspender a prisão imediata.

Inobstante a decisão do Presidente do STF tenha causado surpresa, ante a expressa presunção constitucional de inocência, afirmada pela Corte, já na ocasião eu tinha alertado que a decisão do STF não dava o princípio como absoluto e admitia muitas exceções. [1]

No entanto, a aplicação retroativa da lei a fato anterior, certamente será questionada.


Notas

[1] O STF derruba a presunção de inocência | Espaço Vital (espacovital.com.br)

Sobre o autor
Moacir Leopoldo Haeser

Advogado e Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, ex-professor da Faculdade de Direito de Santa Cruz do Sul (UNISC) e da Escola Superior da Magistratura – AJURIS.

Informações sobre o texto

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