6. Da equidade
Ao tratar da equidade (Capítulo 10 do Livro V), Aristóteles assevera:
“O que faz surgir o problema é que o equitativo é justo, porém não o legalmente justo, e sim uma correção da justiça legal. A razão disto é que toda lei é universal, mas a respeito de certas coisas não é possível fazer uma afirmação universal que seja correta. Nos casos, pois, em que é necessário falar de modo universal, mas não é possível fazê-lo corretamente, a lei considera o caso mais usual, se bem que não ignore a possibilidade de erro. E nem por isso tal modo de proceder deixa de ser correto, pois o erro não está na lei, nem no legislador, mas na natureza da própria coisa, já que os assuntos práticos são dessa espécie por natureza (p. 118).
Portanto, quando a lei se expressa universalmente e surge um caso que não é abrangido pela declaração universal, é justo, uma vez que o legislador falhou e errou por excesso de simplicidade, corrigir a omissão — era (sic) outras palavras,17 dizer o que o próprio legislador teria dito se estivesse presente, e que teria incluído na lei se tivesse conhecimento do caso (p. 118).
Por isso o equitativo é justo, superior a uma espécie de justiça — não justiça absoluta, mas ao erro proveniente do caráter absoluto da disposição legal. E essa é a natureza do equitativo: uma correção da lei quando ela é deficiente em razão da sua universalidade” (p. 118) (acrescentamos a nota de fim de texto).
No trecho supratranscrito, o filósofo está ciente de que a norma jurídica geral e abstrata é construída a partir de casos concretos que se deseja sejam por ela regulados de certo modo. No entanto, nesse difícil trabalho de generalização e de síntese – a quantidade de normas jurídicas gerais e abstratas sobre o tema deve ser a menor possível –, quando a matéria é complexa, sempre surge caso concreto mal regulado ou simplesmente não regulado por norma geral e abstrata. No mal regulado, o juiz deve se socorrer da equidade, para fazer justiça;18 no não regulado, deve, ele próprio, construir a norma jurídica aplicável (integração), como se fosse o legislador.19
Com fundamento na regra do inc. IV do art. 172 do Código Tributário Nacional – CTN –,20 há na legislação do ICMS do Estado de São Paulo norma que “permite” que o órgão julgador administrativo aplique a equidade, desde que preenchidas as condições descritas na hipótese de referida norma.21
7. As multas por infrações à lei do ICMS
O exame das multas previstas para infrações à lei do ICMS do Estado de São Paulo (6,374/1989) mostra que o legislador estadual paulista as graduou da seguinte forma:
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infrações menos graves: “base de cálculo da multa” igual ao valor do imposto não pago;
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infrações mais graves, com dolo evidente: “base de cálculo da multa” igual ao valor da operação ou da prestação;
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infrações de natureza semelhante: mesma “base de cálculo da multa” e “percentagem da multa” proporcional à gravidade de cada tipo de infração.
Fixado o valor do imposto ou o da operação como base de cálculo da multa (parte do critério quantitativo do consequente da norma geral e abstrata sancionadora), se a gravidade de cada tipo de infração (descrita no antecedente dessa norma) pudesse ser mensurada em escala aritmética, a “percentagem da multa” (parte do critério quantitativo do consequente dessa norma) deveria ser “diretamente proporcional” ao valor da gravidade naquela escala. Suponhamos que tipos de infração 1, 2, ..., n têm gravidades de valores g1, g2, ..., gn e percentagens da multa pm1, pm2, ..., pmn. A grandeza ou variável “pm” será “diretamente proporcional” à grandeza ou variável “g” se:
pm1/g1 = pm2/g2 = ... = pmn/gn = C (constante)
O Direito, porém, não é uma ciência exata. Assim, fixada a “base de cálculo da multa” para cada tipo de infração, o legislador atribui “percentagem da multa”, de modo que esta cresça “à medida que” aumente a gravidade, por ele estimada, do tipo de infração. Ante o exposto: é subjetiva a atribuição de percentagem da multa para cada tipo de infração; o uso da locução conjuntiva proporcional “à medida que” não significa que a percentagem da multa é “diretamente proporcional” à gravidade do tipo de infração.
Duas infrações têm “gravidades diversas” quando:
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uma é dolosa e outra culposa;
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embora se subsumam à mesma conduta em abstrato, uma implica falta de pagamento do imposto e outra não;
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uma é praticada com falsificação de documento e outra sem.
Logo, para a mesma “base de cálculo da multa”, não haverá proporcionalidade quando:
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idêntica “percentagem da multa” for aplicada a dois tipos de infração com gravidades claramente diversas;
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tipo de infração com menor “percentagem da multa” for tão ou mais grave do que tipo de infração com maior percentagem.
8. Autos de infração relativos a impostos de competência da União e a contribuições para a seguridade social
Para infrações às legislações de impostos de competência da União e de contribuições para a seguridade social, a Lei Federal 9.430/1996 prescreve multa:22
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“de 75% (setenta e cinco por cento) sobre a totalidade ou diferença de imposto ou contribuição nos casos de falta de pagamento ou recolhimento, de falta de declaração e nos de declaração inexata” (inc. I do art. 44);
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de 150% (cento e cinquenta por cento) sobre o valor referido na letra “a”, quando, nos casos nesta descritos, tiver ocorrido sonegação, fraude ou conluio, definidos nos artigos 71, 72 e 73 da Lei 4.502/196423 (§ 1° do art. 44 da Lei 9.430);
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de 112,5% (cento e doze e cinco décimos por cento) sobre o valor referido na letra “a”, quando, nos casos nesta descritos, o sujeito passivo não atender, no prazo marcado, intimação para: prestar esclarecimentos; apresentar arquivos ou sistemas de processamento eletrônico de dados para registrar negócios e atividades econômicas ou financeiras, escriturar livros ou elaborar documentos de natureza contábil ou fiscal; apresentar documentação técnica do sistema de processamento de dados (incisos I, II e III do § 2º do art. 44 da Lei 9.430, combinado com o inc. I do caput do art. 44);
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de 225% (duzentos e vinte e cinco por cento) sobre o valor referido na letra “a”, quando, nos casos nesta descritos, tiver ocorrido sonegação, fraude ou conluio e o não-atendimento à intimação para providência descrita na letra “c” (incisos I, II e III do § 2º do art. 44 da Lei 9.430, combinado com o inc. I do caput e o § 1° do art. 44).
Ante o exposto, a autoridade fiscal deve acusar o sujeito passivo de:
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não ter pagado ou recolhido imposto ou contribuição;
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não ter entregado declaração;
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ter entregado declaração inexata.
A autoridade fiscal deve provar,24 se for o caso, que:
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a declaração é inexata;
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houve sonegação, fraude ou conluio por parte do sujeito passivo;
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o sujeito passivo não atendeu a intimação fiscal.25
Conforme se vê, poucas e sucintas são as condutas descritas na hipótese da norma geral e abstrata sancionadora: falta de pagamento ou de recolhimento do imposto ou contribuição, falta de declaração ou declaração inexata. As multas são agravadas em caso de dolo do sujeito passivo e/ou não-atendimento a intimação, no prazo marcado.
9. Auto de Infração e Imposição de Multa (AIIM) do Estado de São Paulo
Diferentemente da lei federal, em maior número e mais circunstanciadas são as condutas descritas nas hipóteses das normas gerais e abstratas sancionadoras da Lei 6.374/1989, que instituiu o ICMS no Estado de São Paulo. Com efeito, o legislador estadual optou por graduar as percentagens das multas por infrações à legislação do ICMS de acordo com a natureza da infração26 e a gravidade da conduta do infrator em infrações de mesma natureza. O objetivo foi fazer justiça, mas, conforme veremos, isso nem sempre ocorre.
Há na lei do ICMS tipos de infração em que o dolo é ínsito. Na maioria desses casos, a base de cálculo da multa é o valor da operação ou da prestação, o que eleva sobremaneira o valor da multa. São exemplos as infrações de:
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crédito de imposto, decorrente de escrituração não fundada em documento e sem a correspondente entrada de mercadoria no estabelecimento ou sem a aquisição de propriedade de mercadoria ou, ainda, sem o recebimento de prestação de serviço (alínea “b” do inc. II do art. 85 da Lei 6.374/1989);
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emissão de documento fiscal que consigne declaração falsa quanto ao estabelecimento de origem ou de destino da mercadoria ou do serviço; emissão de documento fiscal que não corresponda a saída de mercadoria, a transmissão de propriedade da mercadoria, a entrada de mercadoria no estabelecimento ou, ainda, a prestação ou a recebimento de serviço (alínea “b” do inc. IV do art. 85);
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emissão ou recebimento de documento fiscal que consigne importância inferior ao valor da operação ou da prestação (alínea “e” do inc. IV do art. 85).
A maior parte das infrações descritas em alíneas de inciso do art. 85, porém, podem ser praticadas tanto de forma culposa quanto dolosa. Desse modo, para duas infrações com mesma conduta, uma praticada de forma culposa, outra, de forma dolosa, se idêntica percentagem de multa aplicada à infração:
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culposa for adequada, aplicada à infração dolosa será insuficiente;
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dolosa for adequada, aplicada à infração culposa será excessiva.
Contrariamente à posição adotada por muitos cultores do direito, entendemos que o disposto no art. 136 do CTN não significa a adoção da responsabilidade objetiva nas infrações tributárias apuradas por autoridade administrativa.27 Segundo lição de Luciano Amaro (2016, p. 475- 476):
“O art. 136 pretende, em regra geral, evitar que o acusado alegue que ignorava a lei, ou desconhecia a exata qualificação jurídica dos fatos, e, portanto, teria praticado a infração de “boa-fé”, sem intenção de lesar o interesse do Fisco. (...), subjaz à responsabilidade tributária a noção de culpa, pelo menos, stricto sensu, pois, ainda que o indivíduo não atue com consciência e vontade do resultado, este pode decorrer da falta de diligência (portanto, de negligência) sua ou de seus prepostos, no trato de seus negócios (pondo-se, aí, portanto, também a culpa in eligendo ou in vigilando). Sendo, na prática, de difícil comprovação o dolo do indivíduo (salvo em situações em que os vestígios materiais sejam evidentes), o que preceitua o Código Tributário Nacional é que a responsabilidade por infração tributária não requer a prova pelo Fisco, de que o indivíduo agiu com o conhecimento de que sua ação ou omissão era contrária à lei, e de que quis descumprir a lei”.
Em resumo, não evidenciado o dolo, não precisa o fisco demonstrar que o sujeito passivo agiu com culpa para dele exigir a multa, o que não impede este de provar que não se houve com culpa, ou seja, que tomou todas as cautelas possíveis para evitar que a infração fosse praticada. Demonstrada a ausência de culpa, de rigor o cancelamento da multa imposta, mas entendemos deva continuar a ser exigido o tributo que deixou de ser pago em razão de o sujeito passivo ter realizado conduta cujo relato se subsome ao que está descrito no antecedente da norma geral e abstrata sancionadora, que implicou falta de pagamento do imposto. Isso porque, para o Estado, tributo é bem indisponível.
Exemplo emblemático do que falamos no parágrafo precedente é o caso do contribuinte acusado de creditar-se de imposto decorrente de escrituração de documento que não atenda às condições previstas no item 3 do § 1º do art. 36 da Lei 6.374/1989 (conduta descrita no antecedente da norma geral e abstrata sancionadora que está na al. “c” do inc. II do art. 85 da lei). O item 3 do § 1° do art. 36 define “documento fiscal hábil” como “o que atenda a todas as exigências da legislação pertinente, seja emitido por contribuinte em situação regular perante o fisco e esteja acompanhado, quando exigido, de comprovante do recolhimento do imposto." O item 4 do mesmo parágrafo define “situação regular perante o fisco” como “a do contribuinte que, à data da operação ou prestação, esteja inscrito no cadastro de contribuintes, se encontre em atividade no local indicado, possibilite a comprovação da autenticidade dos demais dados cadastrais apontados ao fisco e não esteja enquadrado nas hipóteses previstas nos artigos 20 e 21”.
Nesse caso, o crédito de ICMS escriturado pela adquirente da mercadoria é glosado pela autoridade administrativa porque a emitente do documento não estava em situação regular perante o fisco na data de emissão. O consequente da norma sancionadora prescreve a imposição, ao adquirente, de multa de 35% (trinta e cinco por cento) do valor indicado no documento como o da operação. A autoridade administrativa aplica multa à adquirente e dela exige o imposto creditado indevidamente. Ocorre, porém, que a adquirente pode ter agido dolosa ou culposamente, ou sem culpa. Dolosamente, quando participou da simulação para adquirir as mercadorias por preço inferior ao de mercado; culposamente, quando agiu de boa-fé, mas não procurou saber da existência e da idoneidade da empresa vendedora; sem culpa, quando agiu de boa-fé e procurou antes saber da existência e da idoneidade da empresa vendedora. Para o Superior Tribunal de Justiça (STJ), há boa-fé quando: a operação ocorreu antes de declarada a inidoneidade dos documentos; a adquirente consultou a situação da vendedora no SINTEGRA (Sistema Integrado de Informações sobre Operações Interestaduais com Mercadorias e Serviços) e exibiu comprovante de pagamento do preço em favor da emitente do documento.
Quando a autuada não apresenta comprovante de pagamento em favor da emitente do documento, a autoridade julga procedente o auto de infração; quando o comprovante é apresentado, geralmente a autoridade julga improcedente o auto, o que leva ao cancelamento da multa e do imposto. No que concerne à intensidade da sanção aplicável a cada caso, a adquirente que agiu com dolo deveria ser punida com maior severidade do que a que agiu com culpa. No entanto, não é isso o que ocorre em razão de o legislador paulista não ter distinguido, para efeito de punição, condutas dolosa e culposa.28
Apresentado comprovante de pagamento, entendemos que somente a multa deveria ser cancelada, mas não o imposto indevidamente creditado. Quando há prova robusta de que a suposta vendedora simulava sua existência, o fato de a adquirente ter tomado cautelas para se resguardar de possível autuação fiscal não apaga a natureza espúria do crédito por ela apropriado. No entanto, essa solução, mais justa, não é a adotada pela jurisprudência do STJ e não pode ser aplicada quando o ICMS é exigido no próprio Auto de Infração e Imposição de Multa do Estado de São Paulo, em que falta de pagamento de imposto decorre do descumprimento de pelo menos 1 (um) dever instrumental: no exemplo, a apropriação de crédito indevido de imposto. Por essa razão, para exigir ICMS não declarado ou declarado a menos, lavra-se auto de infração com exigência de multa por descumprimento de dever instrumental, e com exigência do imposto que deixou de ser pago em razão do descumprimento.