No dia 8 de janeiro de 2023, o Brasil e o mundo assistiram com perplexidade a tentativa de golpe de Estado levada a efeito por seguidores extremistas do ex-presidente da República Jair Messias Bolsonaro, que invadiram a sede dos três Poderes em Brasília/DF, e empreenderam toda sorte de vandalismo contra o patrimônio público, desrespeitando as instituições democráticas e vilipendiando os representantes desses poderes, desferindo maior ódio e fincas de destruição contra o Supremo Tribunal Federal, lugar onde nem a imagem de Cristo escapou ilesa.
Afirmando estarem acobertados pelo sagrado manto do direito constitucional de livre expressão do pensamento, os golpistas, que não aceitam a vitória democrática de Lula nas eleições de outubro de 2022, penetraram às dependências do Congresso Nacional, do Palácio do Alvorada e Supremo Tribunal Federal, defecaram, urinaram, quebraram e arremessaram a mobília pelas janelas, danificaram os instrumentos de trabalho, destruíram obras de arte de valor histórico, assaltaram os prédios, e pincharam paredes e vidraças, externando o comportamento mais primitivo de ira e assolação que nada tem a ver com o direito de manifestação do pensamento.
Com efeito, o ordenamento jurídico deve ser interpretado como um sistema e não isoladamente, de sorte que, havendo conflito entre o direito à livre manifestação do pensamento (art. 5º, IV da CF/88) e à própria ordem democrática que o sustém, deve prevalecer esta última.
Nesse sentido, Pablo Buogo, citando Mario Sbriccoli e Rousseau, giza que:
“Os eventos que iniciaram ainda nas eleições de 2022, levam à reflexão do chamado paradoxo da liberdade, expressão difundida pelo falecido historiador do Direito, e professor da Universitá di Macerata, Mario Sbriccoli. A discussão reside na oposição ao bem político que é a segurança dos cidadãos (segurança pública), e o inalienável direito do indivíduo à sua liberdade inviolável.
Em suma: todos desejamos liberdade, mas ao mesmo tempo, almejamos ordem. Imaginemos um cenário onde todos exercem sua liberdade da forma que lhes parecer mais apropriado. Onde ficaria a ordem? Logo, a liberdade do indivíduo encontra limitações pela necessidade de imposição de ordem pelo Estado.
Pode o Estado reduzir ou suspender as liberdades dos cidadãos para conservar a si mesmo, ou seja, para conservar a ordem? (SBRICCOLI, 2011).
A resposta tende a ser positiva.
Rousseau, em sua obra O Contrato Social escreveu que o homem nasceu livre e por toda parte está agrilhoado, defendendo, de um lado, a relevância da liberdade, mas ao mesmo tempo, deixando claro que a ordem social é um direito sagrado fundado nas convenções sociais (ROUSSEAU, 1999, p. 09). O pacto social de Rousseau aborda a necessidade de abrir mão de algumas liberdades em nome da ordem, para que seja possível a convivência em sociedade”.1
Uma simples pesquisa on line no dicionário, é suficiente para ver-se que o termo “manifestar” significa “tornar(-se) manifesto ou público; declarar(-se), divulgar”.
Tem-se que o direito de manifestação do pensamento não se protrai no tempo ad aeternum, mas se esgota com o seu exercício público e notório, especialmente quando ressoa evidente que a invocação de tal direito se presta, na verdade, para acobertar condutas antijurídicas.
No momento em que o indivíduo ou o grupo de indivíduos declara, divulga e torna público o seu ponto de vista acerca de determinado assunto, ali se esgota a manifestação do seu pensamento, sendo que “eventuais abusos porventura ocorridos no exercício indevido da manifestação do pensamento são passíveis de exame e apreciação pelo Poder Judiciário, com a cessação das ofensas, direito de resposta e a fixação de consequentes responsabilidades civil e penal de seus autores”.2
Todos passam a ter conhecimento de suas ideias, convicções e opiniões, entretanto, ninguém é obrigado a acatá-las e a elas se curvar. Caso se faça necessário reforçar tais ideias, poder-se-ia até pensar num prazo razoável para torná-las públicas, o que não se admite, é o alojamento quase que permanente de pessoas na frente de instituições públicas, tentando, a qualquer custo, fazer prevalecer a sua vontade, utilizando-se inclusive da força e da violência. Esse prazo razoável seria, portanto, aquele que pudesse impedir que acampamentos ou invasões de locais públicos se estabelecessem.
É dizer: a manifestação do pensamento não admite continuidade indefinida no tempo, não é o mesmo que insurreição, tomada à força, imposição ou bagunça, notadamente em um Estado Democrático de direito. Não se pode admitir que o direito à livre manifestação do pensamento se converta em direito à livre manifestação antidemocrática. Certo é que a liberdade de expressão e da manifestação do pensamento, deve ser exercida em harmonia com os demais direitos e valores constitucionais, notadamente a ordem, que antecede o progresso.
Nada justifica a permanência de acampamentos com escaladas antidemocráticas, sob a justificativa de se estar exercendo um direito constitucional, especialmente quando se sabe no que isso pode acabar desaguando. De igual forma é inaceitável que insultos públicos em aviões, aeroportos, órgãos públicos e instituições privadas, xingamentos (como os que ocorreram recentemente contra uma Ministra do STF), e até atos agressivos que evoluem para vias de fato sejam alegados como direito de se manifestar.
Admitir aquartelamentos nos quais se pede intervenção militar, prisão e destituição de membros do STF e violação ao resultado das urnas, ou mesmo, tolerar bloqueio de rodovias, invasão de prédios públicos e uso de redes sociais para não esbarrar no direito à liberdade de pensamento são posturas que devem ser evitadas pelo Poder Público. O Estado não pode ter medo de fazer valer a ordem entre as pessoas. É uma questão de sobrevivência democrática.
Nem toda manifestação pode ser controlada apenas a posteriori. As que são publicamente antidemocráticas devem ser imediatamente rechaçadas, porque, tais como a que ocorreu no dia 8 de janeiro de 2022, ou mesmo aquela que foi cognominada como movimento "300 do Brasil", tem como único propósito abalar a democracia. Todos sabem onde esses movimentos acabam. O direito não socorre a condutas criminosas.
Nenhum dispositivo da Constituição Federal pode servir de escudo à comportamentos golpistas que atentam contra o resultado das eleições democráticas, contra as instituições públicas e seus agentes, contra os Poderes da República, e, portanto, contra o seu próprio texto, sobretudo considerando serem vedados comportamentos contraditórios em nosso ordenamento jurídico (venire contra factum proprium).
Conforme já assentou a Suprema Corte, “Todas as limitações passíveis de serem opostas à liberdade de manifestação do pensamento, pelas suas variadas formas, ante a peremptoriedade dos textos indicados, hão de estar estabelecidas de modo explícito ou implícito, na própria Constituição”.3
E nesse sentido, a CF/88 é expressa ao estatuir que “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito” (art. 1º); “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário” (art. 2º); “A lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais” (art. 5º, XLI); “A lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura , o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem” (art. 5º XLIII); “Constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático” (art. 5º, XLIV); “A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos” (art. 14); etc.
Esclareça-se que ao falar em “grupos armados” a Constituição não especifica quais os tipos de arma, se letais ou não letais. Um porrete, uma faca ou um canivete podem perfeitamente ser utilizados para depredar o patrimônio público, e guarnecer grupos que atentam contra a ordem constitucional e o Estado Democrático.
Assim, é preciso repensar o direito à manifestação do pensamento, estudando-o com maior profundidade. Ele é livre, conforme dispõe a Constituição Federal, mas uma vez manifestado, ali se aperfeiçoa, não havendo que o protrair por tempo indeterminado, notadamente quando a ordem, e portanto, o próprio Estado Democrático de Direito, em razão do exercício indiscriminado de tal direito, acaba ficando em perigo, e “Isto quer dizer que não se pode proibir (censurar) a manifestação da liberdade de pensamento ou de expressão; mas, uma vez que se as utilize, ou seja, uma vez que se exerça a liberdade de pensamento ou de expressão, o uso desse direito não pode extrapolar o limite do razoável (...)”.4
O fato é que a liberdade de expressão não pode amparar comportamentos delituosos que tenham, na manifestação do pensamento, um de seus meios de exteriorização, notadamente naqueles casos em que a conduta praticada pelos agentes encontra repulsa na própria Constituição (conforme os dispositivos citados acima) ou no ordenamento positivo nacional (arts. 155, § 4º, I e IV, 163, par. único, II, 359-L e 359-M, do Código Penal), que não admitem atos que ofendam, inclusive em sede penal, valores fundamentais que a todos assistem.
O direito de se manifestar não significa “ficar se manifestando” indefinidamente, mas de exteriorizar o descontentamento ou a aprovação, condutas que se esgotam quando há publicidade e notoriedade da exposição, e que não admitem violação à ordem democrática, que, por sua importância, vem antes do progresso.
Notas
BUOGO, Pablo. O paradoxo da liberdade: garantia de liberdade ou manutenção da ordem pública?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7133, 11 jan. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/101948. Acesso em: 12 jan. 2023.
Supremo Tribunal Federal. Reclamação nº 44244 AgR, Relator Ministro: Alexandre de Moraes, Primeira Turma, DJe de 11-1-2021.
STF. ADI 869, Relator(a): ILMAR GALVÃO, Relator(a) p/ Acórdão: Ministro Maurício Corrêa, Tribunal Pleno, DJ de 4-6-2004.
MAZZUOLI ,Valerio de Oliveira (“Direito Penal – Comentários à Convenção Americana sobre Direitos Humanos”, vol. 4/136, obra conjunta escrita com LUIZ FLÁVIO GOMES, 2008, RT).