I. INTRODUÇÃO
Acerca dos atentados ocorridos em 8 de janeiro de 2023 contra o Estado Democrático de Direito, é indiscutível que eles demandam responsabilização criminal, administrativa e civil das pessoas que invadiram e vandalizaram as sedes dos Três Poderes, bem como, também, dos indivíduos que, preventivamente e por dever legal, de um modo ou de outro não colaboraram, seja por ação ou omissão, para que isso fosse evitado, agora assegurados a todos o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa.
As próximas linhas, que cuidam do ensaio, pelo qual se conduzirá o que se imagina acerca de como Hermes Trismegistus1 e Karl Marx2 veriam o recente atentado – atos golpistas e antidemocráticos – contra as instituições centrais dos Três Poderes do Estado brasileiro e a reação ou reatividade deste, refletem apenas uma opinião, a qual se sustenta com base na liberdade de pensamento e de expressão3 e visa tão somente contribuir para o fortalecimento da democracia no Brasil.
II. ENSAIO
Esbarraram-se no átrio da Escola dos Grandes Sábios, situada numa esfera distante, Hermes Trismegistus e Karl Marx, este vindo da Ala de Teóricos e aquele a caminho da Ala de Grandes Sábios e Avatares.
Karl Marx, sem hesitar, aborda Hermes Trismegistus e lhe pergunta o seguinte: – Grande sábio, podemos conversar por alguns minutos a respeito do que está acontecendo no Brasil, principalmente sobre os atos antidemocráticos cometidos pelas pessoas que se identificam com ideais de extrema direita e, também, acerca da resposta do Supremo Tribunal Federal a isso?
Por sua vez, Hermes responde: – Claro, Marx, também estou interessado nesses acontecimentos. Vejo tudo isso como uma oportunidade de os brasileiros levarem em conta aquelas sete leis que eu expus para a humanidade, mas, para esse caso, gostaria de destacar especialmente as do ritmo e da causa e efeito. Contudo, em razão do meu compromisso, o nosso diálogo será breve.
Diante da receptividade do Grande Sábio, responde Marx: – Certo! Quanto a mim, sábio Hermes, tenho a expectativa, embora muito remota, de que parcela considerável dos brasileiros que participaram desse atentado, e até mesmo a sociedade como um todo, passem a compreender o que está na essência do meu entendimento sobre o direito, de que ele é um instrumento de dominação de classe.
Ao ouvir isso, afirma Hermes: – Mas, Karl, até o ponto que conheço, você é uma referência muito negativa para aquelas pessoas que se identificam com ideais de extrema direta, visto que as suas lições e as de Engels são a base teórica do comunismo, o qual é muito atacado por elas.
Com relação a isso, diz Marx: – Sim, Mestre, eu sei. Ocorre que a maioria do pessoal que atentou contra os Três Poderes nem mesmo consegue mais discernir a classe à qual pertence, falta-lhe consciência disso. Tenho acompanhado inclusive que vários brasileiros passaram mais de dois meses submersos num oceano obscuro e paralelo em frente a quarteis, passando por inúmeras dificuldades para defender o que nem mesmo eles entendem. Muitos deles, bombardeados a todo instante por informações falsas de medo e de ódio, terminaram por dissociar-se mentalmente da realidade.
Nesse momento, Hermes o interrompe: – O que você espera exatamente com essa abordagem, Marx, afinal esse pessoal não defende reinvindicações que, em tese, dizem respeito a correntes de pensamentos políticos que se alinham com o conservadorismo e liberalismo, embora ambos muito não compreendidos e distorcidos pelo pessoal que postula ideais de extrema direita, indo de encontro ao moderno conservadorismo político teorizado por Edmund Burke4?
Marx o responde: – Tenho receio de que o STF, em resposta aos últimos atentados sofridos pelos poderes constituídos possa agir com bastante rigor, até para suprir em certo grau a inação de quem deveria ter agido diante de fatos ocorridos nos últimos anos. O que me leva a isso é o que se têm dito sobre o enquadramento penal dado aos indivíduos que, violentamente, atentaram contra a democracia, qual seja crime de terrorismo, há uma discordância quanto a isso porque o crime de terrorismo5 demanda um especial motivo de agir e um especial fim de agir, o que não se amolda ao comportamento dos que violaram bens juridicamente tutelados pelo direito penal brasileiro; ademais disso, dizem que para que o crime de terrorismo se afigure é preciso que sejam demonstradas razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião.
Hermes: – Para que esse seu receio não se materialize, sinto-me à vontade agora para lhe mostrar o meu interesse nesse assunto, se me permite.
Marx: – Claro, Magno sábio!
Hermes: – Antes de prosseguirmos nesse assunto, precisamos lembrar dos fatos ocorridos na história recente do Brasil que dizem respeito justamente à Lei Antiterrorismo, que você mencionou antes. Na época em que aprovaram essa lei, ao que parece, a iniciativa tinha também como intenção criminalizar movimentos sociais e manifestações políticas, o que foi objeto de inúmeras críticas feitas por diversos aspectos da esquerda. Essa lei veio num contexto de grandes manifestações que ocorreram a partir de 2013, você se lembra, Marx?
Marx: – Sim, lembro-me disso.
Hermes: – Pois é..., quero com essa abordagem estabelecer uma correlação entre os fatos ocorridos naquela época com os de agora, guardadas as suas devidas proporções, é claro. Sob aquele contexto, aspectos da política, especialmente os ligados aos partidos de esquerda, sofreram fortíssima pressão e até mesmo perseguição, os desdobramentos disso resultaram inclusive na prisão do atual presidente da República, que terminou por ser revogada após o revés da “vazajato”, que deu ensejo à Operação Spoofing6.
Nesse momento, Marx complementa: – Exatamente, sábio Hermes, poucos anos depois revelou-se claramente que havia toda uma engenharia em curso – o que se denominou “lavajatismo”7 – para usar e abusar do ordenamento jurídico brasileiro para, em verdade, alcançar-se fins políticos, por meio de táticas ilegítimas, fenômeno esse ao qual se dá o nome de lawfare8.
Continua Marx: – O que foram esses eventos ocorridos senão a prática confirmando justamente o que eu entendi sobre o direito, que é um instrumento de dominação de classe. Mas prossiga, Mestre.
Hermes: – Retomo meu raciocínio, Marx, para dizer que o que se identifica claramente dos fatos ocorridos naquela época com os ocorridos recentemente é a manifestação das leis do ritmo e da causa e efeito. Preconizei, no Egito antigo, que “tudo flui, influi e eflui; tudo tem a sua maré e vazante; tudo sobe e desce; tudo oscila entre dois extremos, como um pêndulo; a lei do ritmo é a lei da compensação e transmutação”. Isso o STF e a esquerda não podem esquecer. Com base no que conversamos até agora, penso que eu tenho mais a dizer para o STF e para a esquerda, e até mesmo para o centro, enquanto você, Marx, por mais paradoxal que pareça, aos indivíduos extremistas que cometeram crimes. Sobretudo, o que espero é que aqueles percebam que as suas medidas, as quais precisam ser tomadas, também necessitam ser, sobretudo, equilibradas e ritmadas.
Marx: – Douto Mestre, diante desses fatos, o que posso ansiar para a maioria das pessoas que se identificam com a extrema direita é que, embora pareça difícil, a partir de agora elas tomem consciência de que estão defendendo o indefensável e que, nisso, pouca ou nenhuma utilidade há para elas, pelo contrário; é que não se reconhecem, em sua maioria, que são proletariado, manipuladas pelo mercado e sujeitas aos rigores do Estado, dos quais agora querem escapar. Em verdade, elas estão sentindo, ao vivo e a cores, os efeitos de instrumentos postos à disposição do Estado – monstro marinho bíblico (leviatã) – para manter a todo custo o pacto social definido pelo bobbismo9, de inspiração absolutista, para a segurança do povo.
Prossegue Marx: – A verdade é que a massa das pessoas que se filia a ideais de extrema direita defende interesses de uma classe dominante por não se reconhecer como uma classe dominada, e disso decorre a alienação que se apresenta no Brasil, atualmente. O que se espera de parcela considerável dessas pessoas que foram detidas é que, ainda que pela dor e por escolha própria, passe a defender o que sempre deveria ter defendido, o devido processo legal, o contraditório, a ampla defesa, as tolerâncias e intolerâncias positivas para fazer valer os direitos humanos, mas isso para todos, de forma generalizada e abstrata, inclusive tomando consciência da classe social à qual pertencem.
Retoma a palavra Hermes: – Caro, Marx, realmente não pode ser aceito por nenhum aspecto da política que “os fins justificam os meios”, mesmo que seja para defender determinado regime político, e não recomendam isso apenas as leis sobrenaturais do ritmo e da causa e efeito. Logo, entendo a sua preocupação. Quanto a mim, espero que o centro e a esquerda, principalmente, e o STF reflitam sobre os efeitos daquela época e os de agora, cujas causas, se descobertas, os impulsionarão para serem enérgicos e equilibrados ao mesmo tempo, até para também fortalecerem o Estado Democrático de Direito ou mesmo, o que não se acredita, incorrerem em atos que resultem no uso e abuso exasperado do direito e, como você bem lembrou, em lawfare.
Marx: – Muito oportuno encontrá-lo aqui, sábio Hermes, nosso diálogo foi muito proveitoso.
Hermes Trismegistus: – Por fim, Marx, deixo esta última mensagem: “cada causa produz o seu efeito. Cada efeito tem a sua causa. Tudo acontece segundo uma lei. Acaso é o nome de uma lei desconhecida. Há muitos planos de causalidade, mas nada escapa à lei”. Portanto, é sábio o indivíduo que empreende a mesma vibração – não reatividade desarmônica – tanto diante de pessoas, circunstâncias ou coisas adversas, como, também diante de favoráveis. Até uma próxima vez.
Marx: – Até, Mestre!
III. CONCLUSÃO
A partir desse ensaio, embora não se ignore que o Brasil esteja diante de um problema bastante sério e complexo – ameaça à democracia –, é forçoso concluir que a postura do centro e da esquerda, principalmente, e a reação do STF, que é necessária, em face dos graves atos golpistas e atentatórios contra a democracia, precisam levar em consideração a salvaguarda do Estado Democrático de Direito para todos, sem predileção e sem subjetivismo, além de terem que ser coerentes com os fatos de outrora a trilhar para os de doravante; demandam, portanto, manterem-se conscientes e escorreitos a todo tempo disso para não serem reativos e equivocados, e nisso ajudaria muito adotar-se o estado de epoché10 – suspensão do juízo. É que, não por acaso, historicamente há sempre alternância na tomada do poder entre o progressismo e o conservadorismo, embora este tenha sido desvirtuado no contexto atual.
Notas
ROHDEN. Huberto. O Pensamento Filosófico da Antiguidade. Martin Claret; 1ª ed. 2009.
DE ASSIS. Marselha Silvério. Direito e Estado sob a óptica de Karl Marx. Revista Sociologia Jurídica nº 10, pub. Janeiro/junho de 2010. Disponível em: https://sociologiajuridica.net/direito-e-estado-sob-a-optica-de-karl-marx/Acesso em 20 jan. 2023.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948. Disponível em: https://www.unicef.org Acesso em: 23 jan. 2023.
BURKE. Edmund. Reflexões sobre a revolução na França. 1 ed. São Paulo: Vide Editorial. 2017.
BRASIL. Lei n° 13.260, de 16 de março de 2016. Regulamenta o disposto no inciso XLIII do art. 5º da Constituição Federal, disciplinando o terrorismo, tratando de disposições investigatórias e processuais e reformulando o conceito de organização terrorista; e altera as Leis n º 7.960, de 21 de dezembro de 1989, e 12.850, de 2 de agosto de 2013. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/lei/l13260.htm Acesso em 23 jan. 2023.
CNN BRASIL. Tudo Sobre: Operação Spoofing. Disponível em: Acesso em: https://www.cnnbrasil.com.br/tudo-sobre/operacao-spoofing/19 jan. 2023.
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PRERRÔ. Grupos Prerrogativas. Gisele Cittadino: “Não há como separar o bolsonarismo do lavajatismo”. Disponível em: https://www.prerro.com.br/gisele-cittadino-nao-ha-como-separar-o-bolsonarismo-do-lavajatismo/ Acesso em 23 jan. 2023.
POLITIZE. Lawfare: o que esse termo significa? Disponível em: https://www.politize.com.br/lawfare/ Acesso em 23 jan. 2023.
HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. São Paulo: Martin Claret, 2004.
MARTINI, R. da S. A fenomenologia e a epochê. TRANS/FORM/AÇÃO: Revista de Filosofia, [S. l.], v. 21, n. 1, p. 43–51, 1999. DOI: 10.1590/S0101-31731999000100006. Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/transformacao/article/view/800. Acesso em: 27 jan. 2023.