5. EVIDÊNCIAS OBJETIVAS DA CONVERGÊNCIA DOS SISTEMAS PROCESSUAIS
Se a expansão da jurisdição constitucional, a politização do Judiciário e a compreensão do conceito de acoplamento estrutural podem fornecer os pressupostos elementares para o magma da convergência entre o processo civil e o processo penal, então deve ser possível identificar objetivamente as manifestações de tal movimento, exatamente para sua eventual confirmação.
A rigor a convergência poderia ser pontuada a partir da inter-relação macro-sistêmica entre a Common Law e a Civil Law, a exemplo do que já se operou com a assimilação da disregard doctrine pelo artigo 50 do Código Civil, a possibilidade da transação penal, por conta do artigo 98, inciso I, da Constituição Federal e da Lei nº 9.099/1995, a regra do stare decisis, inspiradora da súmula vinculante objeto do artigo 103-A, da Constituição Federal, e a recente adoção, pela Lei nº 11.690/2008, da técnica da cross examination no processo penal, possibilitando às partes que formulem perguntas, diretamente, à testemunha, ou seja, sem que elas sejam feitas por intermédio do magistrado. Daí a precisa constatação de Mario Losano de que
O Common Law anglo-americano e o direito europeu continental, que agora regem a maioria da população mundial, tendem a se aproximar. o Common Law está passando por uma extensão dos statutes e das consolidations em detrimento do puro "judge made law", enquanto a jurisprudências vai assumindo importância crescente em muitos países de Civil Law. Por exemplo, naqueles países que têm um tribunal constitucional, o direito constitucional tende cada vez mais a se tornar um direito jurisprudencial (LOSANO, 2007, p. 345).
Cumpre aqui, no entanto, por rigor científico da problemática proposta, limitar a análise sob o viés endógeno do sistema pátrio, notadamente entre o processo civil e o processo penal. Neste trilhar, a convergência entre os sistemas pode se dar tanto sob o aspecto normativo quanto sob o aspecto jurisdicional, já que o fenômeno pode ser destilado em ambos.
A mera interpretação extensiva e a aplicação analógica admitida pelo artigo 3º, do Código de Processo Penal, pelo artigo 4º, da Lei de Introdução ao Código Civil, e pelo artigo 126, do Código de Processo Civil, não dão conta de asseverar a convergência dos sistemas pois representam, quando muito, vasos comunicantes que antes reafirmam a autonomia do que propriamente aproximam os modelos. Já a recente aprovação da Lei nº 11.719/2008, que acrescentou o inciso IV ao artigo 387 do Código de Processo Penal e determinou a fixação, pela sentença penal condenatória, de valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, "considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido", representou inequívoca convergência processual, não apenas na reafirmação da unidade da jurisdição, mas também pela exigência de estabelecimento de determinado montante (o valor "mínimo") que não é objeto da própria instrução criminal.
As medidas assecuratórias do processo penal (seqüestro e arresto) também guardam intensa vinculação e inspiração com suas congêneres do processo civil, tanto assim que autorizam o uso dos embargos de terceiro rigorosamente com fundamento no diploma civil.
O próprio transbordamento do conceito da ampla defesa e do contraditório, tão mais em sua plenitude identificado com o processo penal – seja pela sua concepção garantista, seja por lidar com valores como a liberdade -, mas que avança e se consolida no âmbito do processo civil, remonta à origem comum, constitucional, dos modelos, sendo efetivamente dois pilares básicos da irradiação da combinação entre o due processo of law e o substantive due process.
Em arremate, a convergência pode ser plenamente identificada pela assimilação do simples e genial conceito de Elio Fazzalari do processo como procedimento mais o contraditório, que se afasta do "velho e inadequado clichê pandetístico da relação jurídica processual (...) esquema estático (...) que leva em conta a realidade, mas não a explica" (FAZZALARI, 2006, p. 5), conceito este que se espraia por todo o modelo formal, seja penal, cível ou administrativo, e impõe o reconhecimento da unidade sistêmica decorrente.
6. VANTAGENS DA SUPERAÇÃO DA DICOTOMIA ENTRE O PROCESSO PENAL E O PROCESSO CIVIL
Se é possível o reconhecimento de elementos que apontam para a convergência dos modelos processuais, então cabe ainda identificar as razões pelas quais tal movimento é vantajoso para o sistema, de modo a não repelir sua consolidação.
A primeira e mais importante razão para a utilidade da superação da dicotomia está exatamente na retroalimentação do circuito constitucional, que ao mesmo passo em que irradia sua dimensão normativa, aproximando e não distanciando o processo penal do processo civil, também se reafirma como núcleo duro do ordenamento, na medida em que se serve da ressonância obtida para manter constante a força centrípeta necessária à sua legitimidade, validade e plenitude.
A segunda vantagem na afirmação unitária do sistema está na recíproca possibilidade de aproximação, comparação e fusão dos institutos, nutrindo-se mutuamente de elementos aptos a dar suporte à regulamentação do exercício de uma das funções capitais do Estado moderno, que é o poder jurisdicional.
Se é verdade que o Direito Processual Penal vem recebendo seiva do Direito Processual Civil, não é menos verdade que este encontrou naquele a substância publicística melhor preparada para sua construção sistemática (GIORGIS, 1991, p. 80).
Ora, se a prestação jurisdicional tem como precípuo escopo a garantia da efetividade do exercício dos direitos e deveres inerentes ao Estado Democrático de Direito, então a proximidade dos modelos só tende a revelar a concatenação de esforços em tal sentido, superando o viés autonomista, senão mesmo autista, que se apregoava enquanto em voga o discurso pluralista dicotômico.
A experiência que mantém cada ramo em sua individualidade, tendo o processo penal clara vocação para atuar em relação ao ser, enquanto que o processo civil em relação ao ter, pode ser aproveitada em sua condição de mutualismo, ofertando a cada um, de modo recíproco, a solução para o problema da prestação da atividade jurisdicional, propriamente, garantido a consecução de um processo justo, eficaz e célere.
Por fim, a aproximação dos sistemas numa visão unitária também implica no aumento exponencial das garantias, já que, mais uma vez voltados à matriz constitucional, refutam a construção de teorias que se ignorem ou que se contradigam, de modo a catalisar a assunção de princípios comuns tendentes a prestigiar a dimensão final, humana, da construção do bem comum a partir da jurisdição, num círculo virtuoso que congrega esforços no afã da concretização dos fundamentos da República.
7. CONCLUSÃO
O caminho que o ordenamento trilhou até sua atual constitucionalização não foi em vão. Ele se deu tendo por postulado o reconhecimento de um astro-rei, a Carta Magna, irradiando seus efeitos de modo constante por todo o sistema, e, embora a construção histórica metodológica tenha optado pela especialização e pela autonomia dos modelos processuais, sua releitura embalada pela cantiga constitucional reabre a concreta possibilidade do reconhecimento de que a mecânica da prestação jurisdicional tem fonte comum, e, como tal, não pode implicar em resultados dissonantes.
A tal neocentrismo, com o papel sempre renovado da Constituição como o Sol atraindo os sistemas e exercendo sua influência irresistível, logra aproximar o processo penal do processo civil e vice-versa. O reconhecimento de tal convergência acaba por influir na percepção, ao reverso, das suas próprias divergências, e, como tal, propiciar a atuação da força motriz constitucional na consecução da prestação da jurisdição de modo equânime e equalizada com a operacionalização de seu pleno funcionamento, como células que mantêm a sinapse em atividade e que, com isso, se prestam a reconhecer, ao final, a centralidade do homem e de sua busca pelo bem comum, como móvel de toda a atividade estatal, e de sua precípua contribuição para que o processo atue como ferramental adequado na permanente construção do Estado Democrático de Direito.
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