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Ilegalidade de presumir-se o enriquecimento ilícito.

Necessidade de ato comissivo ou omissivo no exercício da função pública

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Agenda 20/05/2011 às 10:22

V - AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA ENSEJA O ARQUIVAMENTO DO PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR:

A atual Constituição Federal estabelece limites à atuação do Estado, conferindo ao cidadão direitos e garantias fundamentais, extensivos aos servidores públicos.

Em sendo assim, quando do juízo de admissibilidade da instauração do Processo Administrativo Disciplinar, é dever da Administração Pública demonstrar que existe uma suposta materialidade e autoria, reveladas por provas diretas. Em outras palavras, é dever demonstrar que houve a prática de ato ilícito, em tese, no exercício do cargo ou da função do servidor público, consistente em ato comissivo ou omissivo.

Em se tratando de servidor público lotado na Secretaria da Receita Federal do Brasil, deverá ser imputada a prática de um ato, que tenha beneficiado determinada pessoa, quer através de uma ação, ou de omissão, ainda mais quando se tenta provar a prática de possível enriquecimento ilícito.

Em situação similar à presente, onde o Ministério Público Federal do Rio de Janeiro-RJ ingressou com respectiva ação penal contra determinada Juíza Federal onde a imputação consistia em recebimento de vantagens ilícitas, capazes de ensejar enriquecimento ilícito, sem contudo apontar qual a solicitação de vantagem, que tipo, e se em espécie, quanto, bem como qual foi o valor da oferta e o seu autor, o Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, em sede de despacho interlocutório nos autos do HC nº 201.924, com precisão excepcional, destacou: [30] "(...) 7. A increpação de que a Juíza teria exigido ou recebido vantagens financeiras, em razão do desempenho da função judicante, embora se trate - sem dúvida - de fato de comprovação dificílima, precisa ser devidamente evidenciada na sua materialidade e cercada de indícios veementes quanto à sua autoria, o que os votos vencidos no julgamento do recebimento da denúncia do TRF2 ausente neste caso. 8. Na verdade, em crime deste jaez, como em outros em que a demonstração factual é áspera, deve o recebimento da denúncia ser avaliado e sopesado com peculiar rigor, para não se permitir o trâmite de Ação Penal sem o atendimento daquele seu requisito conspícuo, sem o qual essa iniciativa não pode ser exercida e, se exercida, não deve ser acatada, ou seja, a justa causa; dessa forma, para se ter maior segurança na apreciação do pedido de liminar, faz-se indispensável que o doutro TRF2 informe, com precisão, os seguintes pontos: (a) a quem a Magistrada teria feito a solicitação de vantagem? (b) quem teria feito a oferta de vantagem ilícita? (c) quando teriam ocorrido esses eventos? (d) quais os elementos indiciários que os comprovam? 9. Dessa forma, abstenho-me, por ora, de apreciar o pedido de tutela liminar neste HC, até que a douta Corte de origem preste as informações sobre os pontos relevantes acima relatados, requerendo urgência. 10. Publique-se; intimações necessárias."

Da mesma forma, indaga-se na hipótese da figura típica do enriquecimento ilícito de servidor público lotado na Receita Federal do Brasil:

a)a quem o servidor teria feito a solicitação de vantagem?

b)qual o contribuinte teria feito a oferta de vantagem ilícita?

c)qual foi o ato praticado no exercício da função (atuação comissiva ou omissiva) que tenha gerado indício de que o servidor prejudicou o erário, em prol do contribuinte?

d)quando teriam ocorrido esses eventos?

e)quais os meios de prova direta que os comprovam.?

Isso porque, sem a demonstração de uma acusação certa, plausível, fundamentada em fatos concretos e em provas diretas, não há como justificar-se a justa causa para a admissibilidade da persecução disciplinar.

Nesse sentido, ao justificar a necessidade dessa ponderação (justa causa) para a instauração do Processo Administrativo Disciplinar, o Ministro Arnaldo Esteves Lima, ao relatar o já citado MS nº 10.442/DF, baseando-se na doutrina vigente, assim se expressou: "Nesse sentido transcrevo a lição de MAURO ROBERTO GOMES DE MATTOS (Lei nº 8.112/90 Interpretada e Comentada, 1ª ed., Rio de Janeiro, América Jurídica, 2005, p. 745): ‘A boa fé e a segurança jurídica retiram do administrador público a faculdade da instauração do procedimento administrativo genérico, sem que haja aparente transgressão aos princípios disciplinares que regem a vida funcional. Não funciona o processo disciplinar como uma ‘caixa de surpresas’ onde a ausência de materialidade de uma possível falta funcional poderia proporcionar a instauração de inquérito administrativo para devassar a vida do servidor, no afã de se encontrar algo que possa ser usado contra ele. Não é assim que funciona." –[Itálico nosso]-.

Em outro expressivo julgado, a 5ª Turma do STJ, no RMS nº 11.587 [31] anulou uma punição levada a efeito contra um servidor público militar, exatamente por não haver ficado caracterizada a justa causa que deveria embasar o processo administrativo disciplinar, verbis: "Constitucional. Administrativo. Militar. Atividade Científica. Liberdade de expressão independente de censura ou licença. Garantia Constitucional. Lei de hierarquia inferior. Inafastabilidade. Processo Administrativo Disciplinar. Transgressão Militar. Inexistência. Falta de justa causa. Punição Anulada. Recurso Provido. I - A Constituição Federal, à luz do princípio da supremacia constitucional, encontra-se no vértice do ordenamento jurídico, e é a Lei Suprema de um País, na qual todas as normas infraconstitucionais buscam o seu fundamento de validade. II - Da garantia de liberdade de expressão de atividade científica, independente de censura ou licença, constitucionalmente assegurada a todos os brasileiros (art. 5º, IX), não podem ser excluídos os militares em razão de normas aplicáveis especificamente aos membros da Corporação Militar. Regra hierarquicamente inferior não pode restringir onde a Lei Maior não o fez, sob pena de inconstitucionalidade. III - Descaracterizada a transgressão disciplinar pela inexistência de violação ao Estatuto e Regulamento Disciplinar da Polícia Militar de Santa Catarina, desaparece a justa causa que embasou o processo disciplinar, anulando-se em conseqüência a punição administrativa aplicada. III - Recurso conhecido e provido."

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Consagrado tal princípio para o Direito Administrativo Disciplinar, o Superior Tribunal de Justiça decidiu: [32] "Configura-se admissível o trancamento do Processo Administrativo Disciplinar em face da manifesta e inequívoca ausência do elemento subjetivo da conduta."

Sem a demonstração do elemento subjetivo da conduta (prevista no tipo legal), como destacado no aresto acima citado, situação idêntica que ora defendemos, deve estar presente uma justa causa para a instauração e desenvolvimento do processo administrativo disciplinar - PAD.

Isso porque sem a demonstração da prática do ilícito funcional, com a descrição dos elementos objetivos, subjetivos e normativos (se houver), viola-se o próprio plasmado do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, como decidido pelo TRF - 2ª Região: [33] "Agravo de Instrumento. Direito Processual Civil. Antecipação dos efeitos da tutela. Art. 273, CPC. Processo Administrativo Disciplinar. Indícios de ausência de justa causa. Violação á ampla defesa e ao contraditório. Improvimento. 1. O agravo de instrumento interposto pela União Federal tem por objeto o requerimento de reforma da decisão que, nos autos da ação anulatória de ato administrativo, deferiu requerimento de antecipação de tutela para o fim de "determinar a suspensão dos efeitos da Portaria n. AGU 785/2008, em relação ao AUTOR". 2. A referência, em tese, da ausência de assiduidade e, consequentemente, de recebimento indevido de valores de ajuda de transporte, com efeito, viola as garantias do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, eis que impede que a pessoa a quem são apontados determinadas fatos amoldados à figura típica de infração funcional, de exercer plenamente sua defesa. 3. Não houve apreciação do recurso administrativo interposto pelo Agravado e, mesmo assim, pretendeu-se dar início ao processo administrativo. 4. Em se tratando de hipótese de aplicação do art. 273, do Código de Processo Civil, deve ser prestigiada a decisão do juiz de 1º. grau, autoridade judiciária que mais próxima se encontra dos fatos narrados na petição inicial e na contestação e, por isso, somente em casos de decisão teratológica, manifestamente ilegal ou fora da razoabilidade jurídica, deve ser possível a alteração do que foi julgado. Do contrário, deve-se manter a decisão, como ocorre no caso em questão. 5. Agravo de instrumento conhecido e improvido."

De igual modo decidiu o TRF - 1ª Região, verbis: "Administrativo e Constitucional. Instauração de Processo Administrativo. Justa Causa. Inobservância das garantias constitucionais do Devido Processo Legal, da Ampla Defesa e do Contraditório. Anulação das Portarias. 1. O dever-poder da Administração Pública para sindicar eventuais ilícitos administrativos não prescinde das garantias individuais do devido processo legal, ampla defesa e contraditório. 2. A instauração de processo administrativo pressupõe justa causa, consubstanciada ao menos em indício de que tenha o impetrado cometido irregularidades no exercício de atribuições (art. 143 da Lei 8.112/90). 3. A instauração de processo administrativo para satisfação de interesses alheios à Administração Pública constitui desvio de finalidade e justifica a intervenção judicial para recomposição da finalidade e moralidade públicas. 4. Anulam-se as Portarias 1.035/97, 159/98, 160/98, 066/98, 189/989 e 291/98, que instauraram Processo Administrativo Disciplinar contra o impetrante, por ausência de suporte fático que evidencie indícios de irregularidade no serviço público. 5. Remessa oficial a que se nega provimento" [34]; "(...) 1. A instauração de processo administrativo pressupõe a existência de justa causa, consubstanciada ao menos em indício de que tenha o servidor cometido irregularidades no exercício de suas atribuições (art. 143 da Lei 8.112/90). 2. É cabível o trancamento do procedimento administrativo instaurado quando há falta de justa causa (contingente mínimo de elementos probatórios sobre a existência do ato ilícito e da autoria) em face da prova pré-constituída (...)." [35]

Assim sendo, em respeito ao mandamento constitucional da inviolabilidade da intimidade, da vida privada, honra e da imagem do servidor público, só deverá ser instaurado o Processo Administrativo Disciplinar quando haja um fundamento razoável, plausível e prova direta, pois não havendo justa causa, a instauração do mesmo é indevida, ilegal e contrária ao direito.

De modo bastante direto, o servidor público investigado não tem como se defender plenamente da acusação formal posta em Processo Administrativo Disciplinar – PAD.

A incompletude da acusação, obsta o exercício da defesa, visto que se não for descrito de modo detalhado o fato praticado ou indicado o elemento subjetivo do tipo legal, cuja prática do ato ilícito (conduta do servidor investigado), é imputada ao referido servidor no exercício de sua função pública, não estará presente a justa causa para a instauração da persecução disciplinar.

A ausência de fato concreto justifica, data venia, a inépcia da imputação, como decidido pelo STJ: [36] "Criminal. Resp. Peculato e corrupção passiva.. Trancamento da ação penal. Inépcia da denúncia. Ocorrência. Acusação baseada na qualidade de Delegado de Polícia do acusado. Ausência de fatos concretos. Recurso desprovido. I.  inepta a denúncia que deixa de descrever o modo, o lugar, tempo e circunstâncias em que perpetradas as condutas delitivas, limitando-se a referir genericamente o recebimento de supostas vantagens indevidas em razão da função pública que ocupava o acusado, sem qualquer especificação de valores eventualmente recebidos, ou mesmo de quais teriam sido os atos praticados com infringência do dever funcional. II. Não é suficiente, à acusação pelo delito de peculato, a mera referência de que o acusado desviara, de forma continuada, valores que teriam que ser recolhidos pelo Estado, sem qualquer especificação do fato delituoso em si, ou mesmo da quantia supostamente desviada. III. Não se admite acusação baseada, unicamente, na qualidade de delegado regional de polícia do acusado no período apontado. IV. A imprecisão dos fatos atribuídos ao agente, lançados de maneira vaga e genérica, impede a exata compreensão da acusação formulada e dificulta o exercício da ampla defesa, razão pela qual deve ser mantida a decisão que reconheceu a inépcia da denúncia formulada contra o recorrido. V. Recurso desprovido."

Por ser subjetiva a responsabilidade do servidor público, torna-se imperiosa a demonstração inequívoca do elemento subjetivo de sua conduta (previsto no tipo legal), na forma da Lei nº 8.429/92, pois nem todo ato tido como ilegal é ímprobo.

Por isso é que o STJ não admite a responsabilidade objetiva do servidor público para fins de improbidade administrativa, verbis: "Administrativo. Improbidade. Lei 8.429⁄92. Licitação. Necessidade de configuração do dolo do agente público. Reexame de matéria fática. Súmula 07⁄STJ. 1. Nem todo o ato irregular ou ilegal configura ato de improbidade, para os fins da Lei 8.429⁄92. A ilicitude que expõe o agente às sanções ali previstas está subordinada ao princípio da tipicidade: é apenas aquela especialmente qualificada pelo legislador. 2. As condutas típicas que configuram improbidade administrativa estão descritas nos arts. 9º, 10 e 11 da Lei 8.429⁄92, sendo que apenas para as do art. 10 a lei prevê a forma culposa. Considerando que, em atenção ao princípio da culpabilidade e ao da responsabilidade subjetiva, não se tolera responsabilização objetiva e nem, salvo quando houver lei expressa, a penalização por condutas meramente culposas, conclui-se que o silêncio da Lei tem o sentido eloqüente de desqualificar as condutas culposas nos tipos previstos nos arts. 9.º e 11. 3. É vedado o reexame de matéria fático-probatória em sede de recurso especial, a teor do que prescreve a Súmula 07 desta Corte. 4. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, improvido." [37] ; "(...) 3. A interpretação do art. 5º, da Lei nº 8.429/92 permite afirmar que o ressarcimento do dano por lesão ao patrimônio público exige a presença do elemento subjetivo, não sendo admitido a responsabilidade objetiva em sede de improbidade administrativa. (...)" [38]

Nesse sentido a Ministra Eliana Calmon, [39] aduziu: "1 - (...) para configurar-se como ato de improbidade, exige-se conduta comissiva ou omissiva dolosa, não havendo espaço para a responsabilidade objetiva. 2. Atipicidade de conduta por ausência de dolo. 3. Recurso Especial improvido."

Com efeito, não sendo descritas as práticas de ato de improbidade administrativa que estiverem ao alcance da Lei nº 8.429/92, baseando-se a Administração Pública em variação patrimonial, sem qualquer descrição da prática de ato ilícito funcional, haverá a responsabilidade objetiva, em total afronta ao ordenamento jurídico e à lei de Improbidade Administrativa que somente admite a responsabilidade subjetiva.

Cabendo ressaltar que o parágrafo único do artigo 144, da Lei nº 8.112/90 estabelece que, quando o fato narrado não configurar evidente infração disciplinar ou ilícito penal, a denúncia sobre irregularidade funcional será arquivada por falta de objeto.

Sobre o autor
Mauro Roberto Gomes de Mattos

Advogado no Rio de Janeiro. Vice- Presidente do Instituto Ibero Americano de Direito Público – IADP. Membro da Sociedade Latino- Americana de Direito do Trabalho e Seguridade Social. Membro do IFA – Internacional Fiscal Association. Conselheiro efetivo da Sociedade Latino-Americana de Direito do Trabalho e Seguridade Social. Autor dos livros "O contrato administrativo" (2ª ed., Ed. América Jurídica), "O limite da improbidade administrativa: o direito dos administrados dentro da Lei nº 8.429/92" (5ª ed., Ed. América Jurídica) e "Tratado de Direito Administrativo Disciplinar" (2ª ed.), dentre outros.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MATTOS, Mauro Roberto Gomes. Ilegalidade de presumir-se o enriquecimento ilícito.: Necessidade de ato comissivo ou omissivo no exercício da função pública. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2879, 20 mai. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/19150. Acesso em: 23 nov. 2024.

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