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A Lei Maria da Penha e a problemática da prisão preventiva decretada de ofício na fase de inquérito no contexto do sistema acusatório de processo

Agenda 15/12/2011 às 09:44

A Lei Maria da Penha inovou ao prever a decretação da prisão preventiva, de ofício, pelo Juiz, ainda na fase de inquérito policial. Mas tal previsão é possível em nosso ordenamento jurídico?

Sem dúvida, a lei nº 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, expressa o compromisso do Estado brasileiro no sentido de responder à problemática da violência contra a mulher no contexto familiar. Constitui, pois, verdadeiro despertar para a real vulnerabilidade vivenciada pela mulher no âmbito do núcleo familiar, numa situação de violência. É preciso compreender que a lei significa um movimento no sentido de questionar toda uma cultura fundamentada numa base discriminatória e patriarcal, a qual engendrou um núcleo familiar desigual, com o estabelecimento de papéis históricos, sendo reservado à mulher aquele secundário, o qual, em realidade nunca se justificou.

Mais que isso, a Lei Maria da Penha significa a inciativa do Estado brasileiro no sentido de dar cumprimento, de um lado, aos comandos constitucionais, sobretudo expressos no artigo 5º da Carta Política, que aponta a igualdade de todos perante a lei, assim como no artigo 226, § 8º, o qual impõe a assistência à família e a criação de mecanismos para coibir a violência no seio familiar; e de outro aos comandos convencionais, que obrigam os Estados signatários a adotar medidas para promover a proteção aos direitos humanos e expresso, entre outros, na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher e a Convenção de Belém do Pará. Ademais e em última análise, a lei Maria da Penha constitui o resultado da recomendação ao estado brasileiro, promovida pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Simplificando, constitui uma lei legítima e que legitimamente se presta a assistir uma determinada parcela da sociedade que se encontra em situação de absoluta vulnerabilidade.

Todos esses aspectos conferem à lei algumas particularidades, como a previsão de um rito processual especial, o afastamento de institutos despenalizadores previstos na lei nº 9.099/95, bem como o estabelecimento de medidas específicas de proteção à mulher. Pelo exposto, percebe-se que a lei nº 11.340/2006 constitui-se em verdadeira lei de política criminal, porquanto voltada especificamente para a proteção da mulher vítima de violência por parte daqueles com quem mantém vínculos afetivos domésticos.

Nessa perspectiva, a lei Maria da Penha inovou ao prever a decretação da prisão preventiva, de ofício, pelo Juiz, ainda na fase de inquérito, conforme dispõe seu artigo 20. Mas tal previsão é possível em nosso ordenamento jurídico? A questão suscita grande controvérsia doutrinária. E tal previsão, ao que parece, mostra-se inadequada.

O Estado brasileiro, desde a Constituição da República promulgada em 1988 elegeu o sistema acusatório de processo penal. Se não o fez expressamente, implicitamente o fez, por exemplo, quando separou as funções de acusar e julgar a ação penal, esforçando-se por fazer deste último um órgão imparcial de aplicação da lei. Ademais, o artigo 129, inciso I, da Constituição Federal delega ao Ministério Público a promoção da ação penal pública, isto é, alça o Ministério Público à condição de dominus litis, órgão a quem cabe o ônus de promover toda a acusação. A defesa mobiliza-se alimentando o contraditório, devendo ser exercida amplamente, tendo ao seu lado a presunção de inocência do acusado que se encontra sob o seu pálio. Ao Juiz, enquanto instituição imparcial e equidistante relativamente aos pólos do processo, cabe a função de julgar, aplicando o direito ao caso concreto. Nessa perspectiva, cria-se o actum trium personarum, ou seja, o ato de três personagens: juiz, autor e réu [01]. No sistema acusatório de processo o juiz não mais inicia ex officio a persecução penal [02]. Além da separação das funções, o sistema acusatório rege-se pelo princípio da publicidade, contraditório, ampla defesa, e livre convencimento motivado das decisões. Todos esses princípios são assegurados pela Constituição da República, o que assegura, estreme de dúvidas, a escolha do sistema acusatório de processo penal pelo legislador pátrio. Dessa forma, o poder do Juiz é restrito, não podendo ter a iniciativa de proceder, senão quando provocado e decidir conforme restou demonstrado juridicamente.

Assim sendo, é impossível a atuação de ofício do juiz num procedimento que antecede ao estabelecimento do processo, qual seja, o inquérito policial. Vale ressaltar que a existência de uma etapa preliminar não descaracteriza o sistema acusatório, porquanto voltado simplesmente à formação da opinio delicti do titular da ação penal [03]. Entender de forma diversa, ainda que por questões de política criminal significa, a um só tempo, ferir de morte o sistema acusatório de processo, que orienta o sistema processual penal do Estado, e afrontar a Carta Magna brasileira.

Não fosse o bastante, após a edição da lei nº 12.403/2011, a hipótese de decretação de prisão preventiva pelo Juiz, de ofício, na fase de inquérito policial restou definitivamente afastada. Privilegiou-se uma política criminal não intervencionista, de modo que a prisão preventiva passou ao status de extrema ratio da ultima ratio [04]. A lei, que alterou diversos dispositivos do Código de Processo Penal, rechaçou a decretação de ofício pelo magistrado da prisão preventiva, conforme preceitua o atual artigo 311 do diploma processual. Do contrário, o juiz afastar-se-ia de sua posição de imparcialidade, distanciando-se do modelo erigido como ideal pelo legislador pátrio.

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Dessa forma, apesar de se reconhecer que a lei 11.340/2006 insere-se no rol das ações do Estado brasileiro no sentido de promover proteção a grupos de maior vulnerabilidade, assim como já vem sendo feito, há algum tempo, por exemplo, com as crianças, adolescentes e idosos, não se pode conceber a possibilidade de atuação de ofício pelo juiz, no sentido de decretar segregação cautelar do indiciado, ainda que por critérios de política criminal, sob pena de descaracterizar o sistema acusatório de processo penal, o qual, conforme anteriormente apontado, foi edificado pela própria Constituição da República.

Pensar de modo diverso implica admitir que critérios de política criminal possam promover exceções dentro do sistema jurídico brasileiro, quando o ideal é erigir uma política criminal em compasso com o sistema processual adotado, a fim de construir um sistema jurídico-penal constitucionalizado e ideal, ou, ao menos, muito próximo disso.


REFERÊNCIAS:

BIANCHINI, Alice. Rumo à igualdade entre sexos: entre avanços legais e estagnações sociais. Disponível em http://atualidadesdodireito.com.br/2011/04/05/rumo-a-igualdade-entre-os-sexos-entre-avancos-legais-e-estagnacoes-sociais. Acesso em 01 set. 2011.

BRASIL. Códigos Penal, Processual Penal e Constituição Federal. São Paulo: Saraiva, 2010.

GOMES, Luiz Flávio; MARQUES, Ivan Luis (coord). Prisão e Medidas Cautelares: comentários à Lei 12.403 de 4 de maio de 2011. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.

RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. Salvador: Editora Jus Podium, 2010.


Notas

  1. RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 50.
  2. Idem, ibidem.
  3. TAVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de direito processual penal. Salvador: Editora Jus Podium, 2010.
  4. GOMES, Luiz Flávio; MARQUES, Ivan Luis (coord). Prisão e Medidas Cautelares: comentários à Lei 12.403 de 4 de maio de 2011. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.
Sobre o autor
Waldeci Gomes Confessor Júnior

Psicólogo; Bacharel em Direito; Servidor Público do Poder Judiciário do Estado do Rio Grande do Norte

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CONFESSOR JÚNIOR, Waldeci Gomes. A Lei Maria da Penha e a problemática da prisão preventiva decretada de ofício na fase de inquérito no contexto do sistema acusatório de processo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3088, 15 dez. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20656. Acesso em: 8 nov. 2024.

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