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A Súmula nº 231 do STJ e a argumentação contra legem

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Agenda 14/02/2012 às 13:07

As decisões contra legem são uma realidade inegável em ordenamentos jurídicos complexos e dinâmicos. Trata-se de um fenômeno excepcional, que exige o alcance de uma pretensão de justiça no caso concreto. Assim, a cláusula de exceção jamais deveria compor o conteúdo de uma súmula, porque passa a ser considerada generalizadamente, sem qualquer análise de peculiaridade de um caso concreto, e sem a argumentação ampla e fundamentada que esse tipo de decisão exige.

1.  INTRODUÇÃO

Em ordenamentos jurídicos complexos, muitas vezes nos deparamos com casos de conflitos, seja entre regras, entre princípios, ou entre regras e princípios, que já não se resolvem apenas pelos critérios clássicos da hierarquia, da cronologia e da especialidade.

Não raro os casos concretos oferecem nuances impossíveis de serem previstas pelo legislador, casos estes em que a aplicação da regra jurídica pode conduzir a resultados injustos e indesejáveis. A preocupação com a consequência jurídica da aplicação da norma é real. Embora direito e moral não se confundam, é desejável que o resultado da aplicação de determinada norma conduza a resultados moralmente desejáveis, e que satisfaça a uma pretensão de justiça.

There are many interconnections between the law and morals. In many places, the law refers directly or indirectly to moral norms, while the contents of the law are often taken into account in the determination of what ought morally to be done. Given the historical debate between legal positivists and natural law theorists, it is a bit hazardous to re-open the discussion about the precise relationship between law and morals. Our aims are more modest. We simply assume that sometimes moral considerations play a role in legal reasoning and we attempt to give a logical analysis of two related ways in which moral considerations enter the legal picture, namely weighing of reasons based on principles and making exceptions to rules. [01]

Embora uma regra revista-se de uma pretensão de definitividade – já que resulta de uma ponderação já feita pelo legislador diante de princípios colidentes – “essa pretensão nem sempre vai ser resgatada com sucesso, e por isso se pode afirmar que as regras possuem a característica da superabilidade.” [02]

Admitem-se, portanto, decisões contra legem, que Atienza chamou de casos trágicos, porque “não podem ser decididos senão ferindo o ordenamento jurídico.” [03]

“Não é exagero, por conseguinte, dizer que estes estão entre os casos mais difíceis que se pode encontrar na argumentação jurídica.” [04] De fato, para que tal operação seja realizada, exige-se uma carga de argumentação muito mais robusta e contundente, “pois sempre haverá princípios formais (ou, como poderíamos chamar, princípios institucionais) que laboram em favor da manutenção das consequências da regra estabelecida pelo legislador.” [05]

Conforme leciona Alexy, diante de uma decisão que envolva a colisão entre um princípio e uma regra, mormente se o princípio versa sobre direitos fundamentais, surge o impasse entre: a) afastar o princípio em favor da regra, privilegiando o próprio princípio – formal – democrático, que confere legitimidade às regras estatuídas pelo legislador que foi democraticamente eleito; ou b) privilegiar o princípio de direito fundamental, conferindo primazia absoluta a este frente ao princípio formal democrático.

Como consecuencia, la primacía absoluta del principio iusfundamental material implicaría eliminar casi por completo la libertad de acción del Legislador en extensos ámbitos de la vida política. Esto no es aceptable desde el punto de vista de una Constitución que instituye un Legislador y, aún más, que instituye un Legislador democráticamente legitimado de manera directa.

Por lo tanto, es necesario excluir la posibilidad de la primacía absoluta del principio iusfundamental material sobre el principio de la competencia de decisión legislativa. Esta solución no sería compatible con el principio de la separación de los poderes, ni con el principio democrático. [06]

Por outro lado, segundo o próprio Alexy, privilegiar somente o princípio democrático que garante legitimidade às regras postas pelo legislador também levaria a uma consequência indesejada, permitindo ao legislador “llevar a cabo intervenciones extraordinariamente intensas en los derechos fundamentales, aun cuando tan sólo estuviesen basadas en pronósticos elevadamente inciertos”. [07]

Si las dos soluciones extremas deben ser descartadas, es necesario considerar las soluciones intermedias. Estas soluciones pueden exigir que exista un mismo grado de certeza para cada intervención en los derechos fundamentales, o que las diferentes intervenciones en tales derechos tengan varios grados de certeza. Sólo esta segunda solución es compatible con la tesis de que los derechos fundamentales son principios. En cuanto principios, los derechos fundamentales exigen que la certeza de las premisas empíricas que sustentan la intervención sea mayor cuanto más intensa sea la intervenciónen el derecho. Esta exigencia conduce a una segunda ley de ponderación, según la cual: cuanto más intensa sea una intervención en un derecho fundamental, tanto mayor debe ser la certeza de las premisas que sustentan la intervención. [08]

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Com base na teoria alexyana e em sua definição de princípios e regras, pretendemos, no presente trabalho, discutir o conteúdo da Súmula nº 231 do Superior Tribunal de Justiça brasileiro – STJ, que contraria o que expressamente determina a regra jurídica fincada no artigo 65 do Código Penal Pátrio.

 Pretende-se demonstrar que a hipótese da Súmula, que veicula uma decisão contra legem no tocante ao comando do mencionado art. 65, não se enquadra nos pressupostos que permitem decisões desta natureza. Além disso, as decisões baseadas no conteúdo da súmula tampouco trazem a fundamentação robusta e coerente que deve revestir uma decisão contra legem, acarretando uma injustiça flagrante a um grande conjunto de condenados, com explícita violação aos princípios da culpabilidade e da individualização das penas.


2.  A DOSIMETRIA DA PENA      

No estudo do direito penal, assume primordial importância o tópico da dosimetria da pena. Apurada a culpabilidade do autor e esclarecidas todas as circunstâncias da ação criminosa, caberá ao juiz a tarefa de fixar uma pena dentre o intervalo cominado pelo legislador ao correspondente tipo penal.

Como exemplo podemos citar o crime de homicídio simples, tipificado no art. 121, caput, do Código Penal brasileiro. Reza o artigo:

Art. 121. Matar alguém:

Pena – reclusão, de 6 (seis) a 20 (vinte) anos.

Ao aplicar a pena a alguém que, comprovadamente, praticou um homicídio em foi condenado por ele, o juiz deverá fixar um quantum partindo do intervalo de 6 a 20 anos determinado pelo legislador, seguindo a técnica determinada pelo art. 68 do Código Penal, que determina:

Art. 68. A pena base será fixada atendendo-se ao critério do art. 59 deste Código; em seguida serão consideradas as circunstâncias atenuantes e agravantes; por último, as causas de diminuição e de aumento.

A dosimetria da pena, portanto, é realizada em três fases: na primeira, fixa-se a pena base, partindo do valor mínimo cominado pelo legislador – em nosso exemplo, 6 anos. Sobre esse valor fazemos incidir a análise das circunstâncias elencadas no art. 59 do CP [09] – culpabilidade, antecedentes, conduta social, personalidade do agente, motivos, circunstâncias e consequências do crime, comportamento da vítima.

Com o resultado desta operação, partimos à segunda fase da dosimetria, na qual serão consideradas as circunstâncias atenuantes (arts. 65 e 66 do CP) e agravantes (arts. 61 e 62 do CP), chegando à pena provisória.

Por fim, sobre a pena provisória, realiza-se o cômputo das causas de diminuição e das causas de aumento, que completará a operação oferecendo a pena final que será imposta ao condenado.

Da leitura dos artigos 65 e 66 do Código Penal, resta claro que o legislador elegeu, como atenuantes, circunstâncias que podem ter interferido na ação do autor, ou características deste próprio autor que, em todo caso, ou denotam uma menor culpabilidade do agente, ou impõem uma redução da pena por motivos de política criminal:

Circunstâncias atenuantes

Art. 65 - São circunstâncias que sempre atenuam a pena:

I - ser o agente menor de 21 (vinte e um), na data do fato, ou maior de 70 (setenta) anos, na data da sentença;

II - o desconhecimento da lei;

III - ter o agente:

a) cometido o crime por motivo de relevante valor social ou moral;

b) procurado, por sua espontânea vontade e com eficiência, logo após o crime, evitar-lhe ou minorar-lhe as conseqüências, ou ter, antes do julgamento, reparado o dano;

c) cometido o crime sob coação a que podia resistir, ou em cumprimento de ordem de autoridade superior, ou sob a influência de violenta emoção, provocada por ato injusto da vítima;

d) confessado espontaneamente, perante a autoridade, a autoria do crime;

e) cometido o crime sob a influência de multidão em tumulto, se não o provocou. [grifo nosso]

Art. 66 - A pena poderá ser ainda atenuada em razão de circunstância relevante, anterior ou posterior ao crime, embora não prevista expressamente em lei.


3.  O PRINCÍPIO DA CULPABILIDADE

É sabido que, em razão dos princípios que modernamente norteiam o direito penal, não se pode aplicar pena em limite superior à culpabilidade do agente, que é sempre subjetiva. O princípio da culpabilidade é conquista moderna, de origem Iluminista, fruto do clamor com que se passou a criticar penas fundadas numa mera responsabilidade objetiva e que, não raro, ultrapassava a pessoa do réu.

Segundo o princípio de culpabilidade, em sua configuração mais elementar, “não há crime sem culpabilidade”. No entanto, o Direito Penal primitivo caracterizou-se pela responsabilidade objetiva, isto é, pela simples produção do resultado. Porém, essa forma de responsabilidade objetiva está praticamente erradicada do Direito Penal contemporâneo, vigindo o princípio nullum crimen sine culpa. [10]

Isto significa que a pena só será legítima se necessária e suficiente para a reprovação e prevenção do crime, conforme determina o próprio art. 59 do Código Penal. O art. 29 do CP impõe que “quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade.”

O direito penal moderno está moldado segundo princípios liberais, elaborados, lenta e penosamente, através dos séculos. E, até hoje, não se conseguiu encontrar algo melhor para substituí-los. Tentativas e experiências nesse sentido têm sido desastrosas. Dentro desse quadro, o nullum crimen nulla poena sine lege, o direito penal do fato e a culpabilidade do fato alinham-se imponentemente, numa perfeita sequência e implicação lógicas, como colunas de sustentação de um sistema indissoluvelmente ligado ao direito penal de índole democrática. Por isso merecem ser preservados. [11]

Por obediência ao princípio da culpabilidade, podemos defender que toda circunstância que possa ser interpretada de forma favorável ao agente deverá redundar em uma diminuição da pena, como forma de ajuste desta à exata medida da culpabilidade do agente.

Ora, sem dúvida, a reprovação social da conduta do agente que comete um crime por motivo de relevante valor social ou moral – circunstância atenuante prevista expressamente no art. 65, III, “a”, do CP – é menor que a do agente que obra sem esta motivação.

Por este motivo, o legislador, no caput do art. 65 do Código Penal determinou que as circunstâncias atenuantes ali elencadas são circunstâncias que sempre atenuam a pena, conforme grifamos. O comando é cogente, impositivo, não admitindo exceções expressas na lei.

Assim como as circunstâncias agravantes sempre agravam a pena (conforme redação do caput do art. 61), as atenuantes sempre a diminuem, justamente para que o juiz possa fixar a pena na medida exata da culpabilidade do agente.

Interessante ressaltar que, eventualmente, nada obsta que se aplique pena aquém da culpabilidade do agente, por motivos de política criminal. Exemplo disso é a atenuante prevista para o caso em que o agente, no momento da sentença condenatória, tem mais de 70 anos de idade. Ora, seria até mais exigível que uma pessoa idosa se eximisse da prática do crime, uma vez que sua experiência de vida já lhe fez atingir o máximo do discernimento, ao contrário do menor de 21 anos que, embora maior no sentido jurídico, pode ainda não ter atingido o máximo da maturidade para conduzir sua vida. Os danos individuais e sociais que podem advir do encarceramento de um idoso, no entanto, fizeram com que o legislador, por política criminal, fixasse a mencionada atenuante.

O contrário, no entanto, é inadmissível. Não há como justificar uma pena que exceda os limites da culpabilidade do agente, que significaria uma responsabilização penal objetiva, sem lastro em qualquer elemento subjetivo ou anímico do autor. Podemos citar o exemplo de um homem que mata uma mulher grávida de 2 meses. Se ele não tinha conhecimento da gravidez, e nem tinha como atingir tal conhecimento (que seria óbvio em uma gravidez avançada, em razão do crescimento nítido da barriga da mulher), impossível puni-lo também pelo aborto, restando culpabilidade apenas relativa ao crime de homicídio.

Resumindo, pelo princípio em exame, não há pena sem culpabilidade, decorrendo daí três consequências materiais: a) não há responsabilidade objetiva pelo simples resultado; b) a responsabilidade penal é pelo fato e não pelo autor; c) a culpabilidade é a medida da pena. [grifamos] [12]


4.  A SÚMULA 231 DO STJ

A despeito do comando do legislador, a doutrina e a jurisprudência majoritárias entendem que, se a pena base for fixada no mínimo legal – em nosso exemplo anterior, 6 anos de reclusão – a existência de circunstância atenuante na segunda fase da dosimetria não poderá conduzir a pena a valores abaixo deste limite.

Tal entendimento, inclusive, foi consagrado na Súmula nº 231 do Superior Tribunal de Justiça, que dispõe que “a incidência da circunstância atenuante não pode conduzir à redução da pena abaixo no mínimo legal.” Em outras palavras, “perde sentido o exame de atenuantes não aplicadas na sentença, quando a pena já está no mínimo legal” [13]. Assim, se na primeira fase da dosimetria as circunstâncias tenham sido consideradas favoráveis ao réu, de forma que a pena base tenha permanecido idêntica à pena mínima cominada pelo legislador, eventual presença de circunstância atenuante não surtirá efeito algum, pois não poderá ser considerada na segunda fase da dosimetria para conduzir a pena a um valor abaixo do mínimo legal.

Esclareça-se que a circunstância atenuante então desprezada jamais poderá ser computada na terceira fase da dosimetria, própria somente à consideração das causas de diminuição e de aumento (também conhecidas como minorantes e majorantes). Isso resulta em um prejuízo inegável ao réu, que pode representar meses ou até anos a mais de pena a ser cumprida.

De forma absurda, só será beneficiado com o cômputo de eventual atenuante, aquele réu cuja pena base foi superior ao mínimo legal, pelo reconhecimento de circunstâncias desfavoráveis a ele, na primeira fase da dosimetria da pena. Só nestes casos é que haverá um lastro de pena que permitirá ao juíz reduzi-la na segunda fase, considerando a presença de alguma atenuante. Daí já se percebe o contrassenso: um réu cuja culpabilidade é maior (que, em termos simplórios, praticou o crime em circunstâncias mais censuráveis) será beneficiado com o cômputo da atenuante, enquanto que um réu que não apresenta circunstâncias judiciais desfavoráveis não terá sua pena diminuída, ainda que esteja provada nos autos a ocorrência de alguma circunstância atenuante.

O principal argumento apresentado para impedir a redução da pena base aquém do mínimo legal pela presença de uma circunstância atenuante é a de que isto implicaria em uma violação ao princípio da separação dos poderes. Isto porque o legislador fixou o intervalo de pena cominada ao delito (em nosso exemplo do homicídio simples, 6 a 20 anos de reclusão) e determinou que o juiz estabelecesse a pena base (1ª fase da dosimetria) dentro deste intervalo.

Na terceira fase da dosimetria, em que são analisadas as causas de aumento e de diminuição da pena (majorantes e minorantes) para fixação da pena final, o juiz sempre opera norteado por frações ou intervalos de frações previamente fixados pelo legislador. Citemos, como exemplo, a figura da tentativa, prevista no art. 14 do CP. Para o crime tentado, ou seja, para aquele que não se consumou por razões alheias à vontade do agente, o legislador prevê expressamente que a pena seja diminuída de 1/3 a 2/3 (parágrafo único do art. 14). Isso ocorre com todas as majorantes e minorantes. Sempre há uma fração ou um intervalo de fração preestabelecido pelo legislador, que vincula o juiz. Este não poderá aplicar fatores de aumento ou de diminuição que extrapolem o determinado pela lei.

Na segunda fase, porém, isto não ocorre. Não há valores prefixados pelo legislador para que o juiz proceda ao cômputo de atenuantes e agravantes. O comando do art. 65 do Código Penal é de que as circunstâncias atenuantes sempre diminuem a pena. Mas, como não há um parâmetro fixado pelo legislador, entende-se que o juiz deverá ficar adstrito ao intervalo cominado ao tipo penal, sob pena de usurpar a função legislativa, fixando pena fora do intervalo previsto em lei.

Como visto, na terceira fase da dosimetria não haveria este problema, uma vez que é o próprio legislador quem define os intervalos de fração que deverão ser considerados pelo juiz no cômputo das majorantes e minorantes.

Os que defendem a correção da vedação contida na Súmula 231 do STJ afirmam que diminuir a pena aquém do mínimo legal violaria, além do princípio da separação dos poderes, os princípios da reserva legal (estabelecido no art. 5º, XXXIX da CR/88, e que determina que a pena será previamente fixada em lei) e o da pena determinada (previsto no art. 5º, XLVI, da CR/88, segundo o qual a lei regulará a individualização da pena).

Embora já tenha revisado seu entendimento, o ilustre penalista Cezar Roberto Bitencourt inicialmente filiou-se àquele entendimento:

Acompanhamos no passado a corrente tradicional, segundo a qual as atenuantes e as agravantes não podiam levar a pena para aquém ou para além dos limites estabelecidos no tipo penal infringido, sob pena de violar o primeiro momento da individualização da pena, que é legislativo, privativo de outro poder, e é realizado através de outros critérios e com outros parâmetros, além de infringir os princípios da reserva legal e da pena determinada (art. 5º, XXXIX e XLVI, da CF), recebendo a pecha de inconstitucional, por aplicar pena não cominada. Quando a pena base estivesse fixada no mínimo, impediria sua diminuição, ainda que se constatasse in concreto a presença de uma ou mais atenuantes, sem que isso caracterizasse prejuízo ao réu, que já teria recebido o mínimo possível. [14]

 


5. O PROBLEMA SOB A ÓTICA DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA E DA POSSIBILIDADE DAS DECISÕES CONTRA LEGEM

Sob a ótica da teoria de Alexy, que brilhantemente determina uma diferenciação entre regras e princípios, podemos resumir o problema da seguinte maneira:

  • Estamos diante de uma regra, de nível infraconstitucional, que determina que as circunstâncias elencadas no art. 65 do Código Penal sempre atenuam a pena;
  • A despeito desta regra, diversas decisões judiciais vedaram o cômputo de atenuantes em favor de réus, sob o argumento de que isso conduziria a uma pena aquém do mínimo estabelecido pelo legislador. A reiteração de decisões neste sentido foi tão grande que motivou a edição da Súmula nº 231 pelo STJ, vedando a fixação da pena abaixo do mínimo legal;
  • A regra do art. 65 do CP emanou do legislador, que considerou a preponderância dos princípios da culpabilidade e da individualização das penas, de forma a beneficiar os réus que eventualmente contassem com alguma atenuante comprovada nos autos, para que tivessem uma pena menor, na medida de sua culpabilidade;
  • As decisões que negaram o reconhecimento de atenuantes para conduzirem penas aquém do mínimo estipulado pelo legislador baseiam-se também em princípios: o da separação dos poderes e o da reserva legal.

Os casos de colisão entre um princípio constitucional e uma regra infraconstitucional, são exatamente os que podem gerar decisões contra legem, e por isso são casos “excepcionalmente difíceis”. A norma que se pretende excepcionar 

terá sempre ao seu lado os princípios formais como o princípio da segurança jurídica e o princípio democrático, que estabelecem a regra da vinculação do juiz ao legislador positivo. Não obstante, casos anormais ou genuinamente excepcionais podem justificar a criação judicial de uma regra excepcional que derrote a norma [...]. [15]

As decisões que negam a incidência das circunstâncias atenuantes são, portanto, decisões contra legem. Elas contrariam diretamente o comando cogente da regra contida no art. 65 do Código Penal, violando o sentido semântico do vocábulo “sempre”.

Ao contrário do que se pode pensar, não é impossível que decisões contra legem emanem e sobrevivam validamente no mundo jurídico. Por mais cogentes e mandatórias que sejam, as regras jurídicas, pela teoria de Alexy, são superáveis.

É exatamente isso que Alexy tem em mente ao salientar que é incorreto dizer que todos os princípios possuem “o mesmo caráter prima facie” e todas as regras possuem “o mesmo caráter definitivo”, bem como que, por conseguinte, as regras são aplicadas de uma maneira tipo “tudo ou nada”. O modelo de Dworkin é demasiadamente simples, e por isso é necessário construir um sistema mais diferenciado, que seja capaz de dar conta da superabilidade das regras. O modelo mais diferenciado é necessário porque é sempre possível introduzir na motivação de uma decisão jurídica uma cláusula de exceção (em uma das regras). Quando isso acontece, então a regra perde seu caráter definitivo para a decisão do caso concreto. [16]

Não vemos qualquer problema em admitir que, em determinado caso concreto, possa-se argumentar a favor de uma circunstância que excepcione a regra jurídica e da admissão de uma cláusula de exceção.

Em um sistema jurídico de natureza dinâmica, as regras estabelecidas na legislação infraconstitucional não podem ser normas absolutas, ou seja, normas que prevejam uma hipótese de incidência fechada à qual seria impossível admitir exceções. Se a distinção regra/princípio é adotada, então se deve reconhecer que as regras são normas superáveis.” [17]

Esta possibilidade, no entanto, conforme já mencionado na introdução deste trabalho, exige um enorme empenho de argumentação, pois a observância e aplicação da regra será sempre recomendada por princípios basilares do ordenamento, uma vez que, segundo Alexy, as regras, quando racionalmente justificáveis, já são o resultado de uma ponderação de princípios, feita pelo legislador.

Quando o legislador estabelece uma regra, esta pode ser apresentada como o resultado de uma escolha (obviamente dentro de uma margem de discricionariedade deixada pela Constituição) acerca da precedência de determinado princípio constitucional na situação que constitui a hipótese de incidência dessa regra. [18]

Sob a ótica do problema ora exposto, podemos afirmar que, ao estabelecer a regra do art. 65 do Código Penal, o legislador já ponderou entre os princípios colidentes e optou pela precedência dos princípios da culpabilidade e da individualização das penas. Assim, não mais caberia pretender excepcionar esta regra em nome do princípio da separação dos poderes, a não ser que se criasse uma cláusula de exceção extremamente fundamentada e justificada por parâmetros de justiça. É exatamente este o requisito para a sustentação de uma decisão contra legem.

[... ] é possível imaginar uma série de situações em que a aplicabilidade de uma norma pode ser afastada porque o grau de injustiça que adviria da sua aplicação mecânica faria com que o componente substancial (prático-discursivo) da pretensão de correção do direito prevalecesse, no caso concreto, sobre o componente formal (institucional em sentido estrito). [19]

Vê-se que a admissibilidade de uma decisão contra legem passa, inevitavelmente, pela análise axiológica de um caso concreto. O direito é concebido sob uma pretensão de correção moral, ao ponto de podermos afirmar que “Uma decisão judicial que não satisfaça as exigências de uma moralidade procedimental universalista, a qual pressupõe um construtivismo ético à la Habermas, é considerada uma decisão defeituosa por razões conceituais.” [20]

O problema é que, além de não observarem a exigência de ampla fundamentação, as decisões contra legem  que excepcionam a regra do art. 65 do CP não alcançam maior justiça no caso concreto. Ao contrário: em nome de um formalismo, rechaçam a análise da situação individualizada do réu, que, num Estado Democrático de Direito, deve ser alvo de toda a proteção contra arbitrariedades e decisões “massificadas”.

Já há algum tempo revisamos nosso entendimento, acompanhando a melhor orientação doutrinária (e parte da jurisprudência), voltada para os postulados fundamentais do Estado Democrático de Direito, que não transige com responsabilidade objetiva e tampouco com interpretações analógicas in malam partem; assim, acompanhamos o entendimento que sustenta a possibilidade de as circunstâncias atenuantes poderem trazer a pena aplicada para aquém do mínimo legal, especialmente quando, in concreto, existam causas de aumento. [21]

A nosso ver, a cláusula de exceção jamais deveria compor o conteúdo de uma súmula, porque passa a ser considerada mecânica e generalizadamente, sem qualquer análise de peculiaridade de um caso concreto, e sem a argumentação ampla e fundamentada que esse tipo de decisão exige.

No caso específico tratado neste trabalho, a despeito de proteger o princípio da separação dos poderes, o Judiciário usurpa a função legislativa e edita uma súmula com teor de decisão contra legem. Generaliza-se um entendimento que só poderia ser alcançado diante da análise cuidadosa do caso concreto e das consequências que adviriam daquela decisão particular, e somente se houvesse algum benefício de justiça a ser alcançado pela exceção.

we find that law and personal morality can be seen as different norm systems, but are nevertheless dependent on each other because they both aim to provide the final answer to the question what should be done. The finality of such an answer depends on the compatibility of the answer from the one norm system with the answer of the other system. This is why both systems take the norms of the other system into account. As a consequence, the number of conflicts between what one should do legally and what one should do morally is strongly reduced. Nevertheless such conflicts can occur, and in that case the actor must balance her moral and her legal reasons. If this balancing of reasons ultimately is to be a rational matter, internal law or personal morality or both must both be revised in such a way that they form a coherent totality. [22]

Decisões contra legem, para serem admitidas, devem, portanto, guardar um núcleo de justiça inarredável, sob pena de serem utilizadas em prol de interesses escusos, desvirtuando o ordenamento jurídico e minando a segurança jurídica. Apenas a busca por consequências jurídicas mais justas e acertadas no caso concreto, de acordo com princípios morais que indubitavelmente permeiam o ordenamento jurídico, pode legitimar a admissão de uma cláusula de exceção sobre o que já disse o legislador.

Enfim, deixar de aplicar uma circunstância atenuante para não trazer a pena para aquém do mínimo cominado nega vigência ao disposto no art. 65 do CP, que não condiciona a sua incidência a esse limite, violando o direito público subjetivo do condenado à pena justa, legal e individualizada. Essa ilegalidade, deixando de aplicar norma de ordem pública, caracteriza uma inconstitucionalidade manifesta. Em síntese, não há lei proibindo que, em decorrência do reconhecimento de circunstância atenuante, possa ficar aquém do mínimo cominado. Pelo contrário, há lei que determina (art. 65), peremptoriamente, a atenuação da pena em razão de uma atenuante, sem condicionar seu reconhecimento a nenhum limite; e, por outro lado, reconhecê-la na decisão condenatória (sentença ou acórdão), mas deixar de efetuar sua atenuação, é uma farsa, para não dizer fraude, que viola o princípio da reserva legal. [23]

Sobre a autora
Sheyla Cristina da Silva Starling

Delegada da Polícia Civil de Minas Gerais. Professora da Faculdade Batista de Minas Gerais. Mestranda em Direito Penal pela Universidade Federal de Minas Gerais. Ex-professora da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

STARLING, Sheyla Cristina Silva. A Súmula nº 231 do STJ e a argumentação contra legem . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3149, 14 fev. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21074. Acesso em: 23 dez. 2024.

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