4 DO EQUÍVOCO HERMENÊUTICO NA DECISÃO DO RERCURSO ESPECIAL Nº. 1120676/SC.
O Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial nº. 1120676/SC, julgado no dia 7 (sete) de dezembro de 2010, em oposição às determinações do Código Civil de 2002, entendeu por bem aplicar a doutrina concepcionista, quanto a aplicação de personalidade jurídica ao feto com 35 (trinta e cinco) semanas completas de gestação, e ignorar as peculiaridades do seguro obrigatório DPVAT, desvirtuando a sua finalidade.
O Ministro Relator do acórdão Paulo de Tarso Sanseverino assim decidiu:
Tenho que a interpretação mais razoável desse enunciado normativo, consentânea com a nossa ordem jurídico-constitucional, centrada na proteção dos direitos fundamentais, é no sentido de que o conceito de "dano-morte", como modalidade de "danos pessoais", não se restringe ao óbito da pessoa natural, dotada de personalidade jurídica, mas alcança, igualmente, a pessoa já formada, plenamente apta à vida extra-uterina, embora ainda não nascida, que, por uma fatalidade, acabara vendo a sua existência abreviada em acidente automobilístico. (...) A ciência cuja missão é a investigação da vida - a biologia - coadjuvada pela medicina, racionalizando as fases da vida intra-uterina, do zigoto ao feto, externara a pré-viabilidade fetal desde a 22ª semana de gravidez e a sua viabilidade desde a 27ª (...) Note-se que a filha dos postulantes encontrava-se na 35ª semana de vida, nono mês de gestação, ou seja, era plenamente hábil à vida pós-uterina, autônoma no seu desenvolvimento, apenas não independente, porque necessitava, ainda, por mais alguns dias, da "alimentação" que lhe provia sua mãe (alimentação aqui compreendida como o sustento para a sua sobrevivência no ambiente intra-uterino). (...) Se é certo que a lei brasileira previu como aptos a adquirirem direitos e contraírem obrigações, os nascidos com vida, dotando-os de personalidade jurídica, não excluiu do seu alcance aqueles que, ainda não nascidos, remanescem no ventre materno, reconhecendo-lhes a aptidão de ser sujeitos de "direitos".[16]
O fato de que o nascituro tinha, ao tempo do acidente, 35 (trinta e cinco) semanas de gestação, sendo hábil, segundo entendimento médico, de vida extra-uternina, foi fator determinante para aplicação da personalidade jurídica a este pelo Ministro Paulo de Tarso Sanseverino. A partir de uma interpretação dedutiva, este entendeu que os direitos atribuídos ao recém-nascido deveriam ser igualmente garantidos ao feto viável.
Data vênia, em oposição ao entendimento supramencionado, conforme amplamente explanado no tópico 2 deste trabalho, o nascituro não é portador de personalidade jurídica, ainda que a vida deste seja plenamente viável fora do corpo da mãe. O legislador, ao determinar o início da pessoa natural, não adotou o requisito da viabilidade, mas sim o do nascimento com vida.
O doutrinador Clóvis Beviláqua, ao analisar a doutrina da viabilidade, chega a seguinte conclusão:
Finalmente a doutrina da viabilidade não oferece a necessária segurança às relações jurídicas. O direito precisa de saber quando começa a existência das pessoas, para que o movimento da vida social não se interrompa ou fique indeciso. Mas a inviabilidade não há de ser declarada arbitrariamente, deve ser o resultado de um exame pericial, aliás impossível nas regiões do interior. E, enquanto se não profere o laudo, as relações jurídicas, em que o recemnascido é sujeito, ficam suspensas, o que é altamente incoveniente.[17]
Dessa forma, indubitável se evidencia que não se pode ampliar o marco inicial da personalidade jurídica, atribuindo ao feto viável os mesmos direitos garantidos ao recém-nascido, já que o próprio legislador regulamentou a existência do “direito do nascituro” em separado. A doutrina denominada Clássica, adotada pelo ordenamento jurídico brasileiro, é clara ao afirmar que ao nascituro somente cabe a perspectiva de direitos, os quais somente se efetivarão com o nascimento com vida do feto.
A questão apresentada pelo Ministro Relator do acórdão compreende-se, em suma, em quais direitos decorrentes do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana podem ser atribuídos ao feto ainda dentro do útero materno, ou seja, quais são os verdadeiros direitos do nascituro.
A resposta para esta discussão não pode se valer somente das regras interpretativas clássicas, tais como a teleologia, historicidade ou literalidade da lei, mas sim das regras da nova hermenêutica constitucional, em que não se concebe a exclusão total de um direito em face de outro, uma vez que a exclusão de qualquer dos direitos em choque, significaria o ferimento do próprio ordenamento, já que possuem a mesma essência nuclear.
Os “direitos do nascituro” são direcionados a garantir a sua potencialidade de existência, resguardando desde já tanto seu patrimônio quanto a sua dignidade. Ocorre que tais direitos não podem se confundir com os direitos garantidos aos que já possuem personalidade jurídica, ou seja, os seres que nasceram e respiraram.
Dessa forma, acertada se mostra a fundamentação apresentada pelo Ministro Massami Uyed, nos autos do mesmo Recurso Especial quando assim se posicionou:
O nascituro, pois, como realidade jurídica distinta da pessoa natural, não titulariza os mesmos direitos desta, nem com ela se confunde. O nascituro, como assinalado, titulariza todos os direitos imprescindíveis para que este ente venha, em condições dignas, a nascer vivo. A diversidade destas realidades jurídicas (nascituro e pessoa natural), no que se refere a sua proteção jurídica, é revelada pelo artigo 2º do Código Civil que adota, expressamente, como marco definidor para a aquisição da personalidade civil, o nascimento com vida. É, pois, pessoa natural aquele que sobreviveu ao parto, nasceu com vida, adquirindo, com isso, personalidade civil.
O Ministro, ante exposto, segue aduzindo que
com exceção dos direitos da personalidade que são conferidos ao nascituro com o desiderato único de assegurar o surgimento da Pessoa Humana (e, por isso, decorrem, reflexamente, ressalte-se, do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana), este ente, por opção legislativa que não comporta alargamento, não titulariza direitos disponíveis/patrimoniais, bem como não detém capacidade sucessória. Na verdade, sobre os direitos patrimoniais, o nascituro possui mera expectativa de direitos, que somente se concretizam (é dizer, incorporam em seu patrimônio jurídico) na hipótese de este ente vir a nascer com vida.[18]
Diante disto, é de se observar que a natureza jurídica do seguro obrigatório por acidente de trânsito não se enquadra em nenhuma destas nos direitos atribuídos ao nascituro, os quais caracterizam-se por terem a finalidade de garantir o desenvolvimento do feto. A dignidade humana do feto em formação, desta forma, surge apenas para impedir que este, após tornar-se pessoa humana, seja prejudicado por atos ocorridos durante seu desenvolvimento, a fim de garantir uma potencial existência digna deste.
Assim, o nascituro não pode ser considerado sujeito de direitos, porque, como dito anteriormente, não há titular respectivo para atribuí-los. Embora, no caso em comento, a vida do feto com 35 (trinta e cinco) semanas seja por completo viável fora do útero materno, o Código Civil é claro quanto ao marco inicial da personalidade jurídica. Sem nascimento com vida não há pessoa natural.
Como no caso em comento o nascituro não chegou sequer a nascer com vida, inexistindo desta forma pessoa natural, a indenização do seguro DPVAT foge dos direitos atribuídos ao feto. Não há que se falar em indenização por morte oriunda de acidente automobilístico terrestre no caso em apreço, já que não há mais potencialidade jurídica de pessoa a ser protegida.
Neste contesto se apresenta a lição do professor Carlos Roberto Gonçalves:
Não pode o nascituro, todavia, ser titular de pretensão indenizatória, ainda que por dano moral. Já decidiu o Superior Tribunal de Justiça que o “direito de ação por dano moral é de natureza patrimonial e, como tal, transmite-se aos sucessores da vítima”[19]. Desse modo o nascituro, como titular de direito eventual (CC, art. 130), só poderá propor medidas de conservação de seus direitos, por seu representante legal, sob a forma de cautelares inominadas, não se podendo sequer falar em antecipação de tutela, que exige a titularidade da pretensão, titularidade esta que só será adquirida se o nascituro nascer com vida.[20]
O mesmo raciocínio que se aplica ao instituto da herança, que da mesma forma que a indenização do seguro DPVAT também é um direito patrimonial. Nessa hipótese, não se admite que a herança deixada pelo pai morto enquanto a esposa está grávida seja transmitida para o nascituro, pois se assim pudesse e o feto viesse a não nascer a herança seria da gestante, pois é a sua herdeira direta e natural.
O que ocorre é ao contrário, o nascituro somente terá direito à herança se vier a nascer com vida, mesmo que logo depois morra, o que faria de sua mãe a herdeira da herança deixada pelo pai. Enquanto não nasce o feto tem apenas perspectiva de direito à herança. Portanto, se não nascer a parte que lhe caberia será transmitida aos seus avós (ou a outros herdeiros do pai do nascituro).
Nesse ponto, a moderna doutrina constata que:
a proteção a certos direitos do nascituro encontra, na legislação atual, pronto atendimento, antes mesmo do nascimento, leva-nos a aceitar as argutas ponderações de Maria Helena Diniz sobre a aquisição da personalidade desde a concepção apenas para a titularidade de direitos da personalidade, sem conteúdo patrimonial, a exemplo do direito à vida ou a uma gestação saudável, uma vez que os direitos patrimoniais estariam sujeitos ao nascimento com vida, ou seja, sob condição suspensiva. [21] (Destaque nosso).
Esse mesmo entendimento deve ser aplicado quanto a indenização pelo seguro obrigatório, pois se trata de um direito patrimonial, que não possui nenhuma relação com os direitos fundamentais à vida e à saúde que possibilitariam a mitigação da teoria clássica ou naturalista. Assim, o recebimento da indenização do seguro DPVAT pelos genitores de nascituro morto em acidente automobilístico terrestre se mostra descabida diante dos limites dos “direitos do nascituro” quanto aos direitos patrimoniais deste.
Ademais, importante se faz lembrar que o seguro obrigatório possui finalidade especial de cunho de suma relevância social, qual seja minimizar os gatos surgidos em decorrência de acidente automotivo, atendendo aos gastos repentinos e inadiáveis.
Neste sentido, acertada é o entendimento do Ministro Massami Uyed.
Inicialmente, sobreleva ressaltar o caráter especial do seguro obrigatório DPVAT que assume, indiscutivelmente, relevante finalidade social, tendente a minorar os deletérios danos pessoais causados às vítimas do sinistro, inesperados, como sói acontecer nos acidentes automobilísticos (...) Como bem ponderado pelas Instâncias ordinárias, indiscutível a dor e o sofrimento suportados pelos autores, em especial pela autora, que, em razão do acidente automobilístico, teve a sua gestação, em estado já avançado, interrompida. Entretanto, os fatos delineados nos presentes autos, tal como postulados (morte do nascituro), não dão ensejo, a indenização do seguro DPVAT. Nessa perspectiva, eventual pretensão de obter a reparação do apontado (e inegável) sofrimento pode ser veiculada pela via indenizatória própria contra o causador do acidente.[22]
O seguro obrigatório DPVAT, conforme demonstrado, possui finalidade específica incompatível com a reparação do sofrimento suportados pelos pais que tiveram interrompida a gravidez em qualquer fase de sua gestação.
5 DA CONCLUSÃO.
A decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça, nos autos do Recurso Especial n.º 1120676/SC, está eivado de evidente equívoco hermenêutico. Limitando-se ao uma análise legal do assunto, sem adentrar nas argumentações religiosas e morais que envolvem tal discussão, incontestável é adoção pelo ordenamento jurídico brasileiro da teoria natalista, ao delimitar o surgimento da personalidade jurídica ao nascimento com vida.
Pela análise do acórdão, destaca-se que o voto vencedor do Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, além de estar fundamentado na teoria concepcionista, adotou o requisito da viabilidade do feto, o qual, conforme demonstrado, não possui qualquer segurança jurídica. Desta forma, para ele, o feto, por ser dotado dos mesmos direitos do recém-nascido, possui personalidade jurídica, podendo este fato vir a ser indenizado pelo seguro obrigatório DPVAT.
Ocorre que o nascituro, conforme demonstrado, não é pessoa natural pela inocorrência do parto, o que impossibilita, pelos preceitos expressos no art. 2º do CC, atribuí-lo, por meio de uma interpretação dedutiva, os mesmos direitos garantidos aquele que já nasceu, conferindo a este mera expectativa. Assim, ante a inexistência de pessoa natural capaz de morrer, segundo o art. 6º do mesmo diploma, inexiste fato gerador que dê supedâneo ao requerimento do seguro obrigatório.
Diante das peculiaridades do seguro obrigatório DPVAT, criado especialmente com o fim de atender as primeiras necessidades decorrentes de um acidente envolvendo veículo automotor, capaz de originar despesas repentinas e inadiáveis, indubitável se evidencia que esta modalidade especial de seguro é incompatível quanto a indenização por “morte” de nascituro.
O sofrimento dos pais diante da interrupção da gravidez de um feto com 35(trinta e cinco) semanas é incontestável. Mesmo que para o direito este não seja considerado pessoa natural, os pais já possuem uma relação de afeição com o feto. Todavia, o seguro obrigatório DPVAT, por ser um instituto criado em caráter especial, não é o responsável por reparar tal dor, mas sim aquele que deu causa ao acidente.
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