RESUMO
Este artigo trata da importância do ensino superior enquanto forma de acesso à cidadania e ao desenvolvimento por populações indígenas, numa abordagem jurídica, a partir do princípio da igualdade de acesso às oportunidades, dentre as quais se inclui a educação pública e gratuita. Neste sentido é que merece relevo a atuação da Universidade em favor da inserção de indígenas em cursos de graduação e licenciatura com o escopo de contribuir para o desenvolvimento material e intelectual dessas comunidades.
PALAVRAS CHAVES: Universidade, Amazônia, Educação Indígena, Cidadania, Desenvolvimento.
SUMÁRIO: 1.Educação superior na Amazônia e o princípio da dignidade da pessoa humana; 2. Princípio da igualdade jurídica e a questão indígena; 3. Aspectos legais referentes às ações afirmativas enquanto instrumento de desenvolvimento; 4. O papel da Universidade na qualificação de populações indígenas; 5. O acesso diferenciado de indígenas ao ensino superior à luz do direito brasileiro; 6. Educação superior como forma de acesso dos povos indígenas à cidadania plena; 7. Referências bibliográficas.
1. EDUCAÇÃO SUPERIOR NA AMAZÔNIA E O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
A Constituição de 1988[1] dispõe sobre os princípios da igualdade e dignidade da pessoa humana e trata a educação enquanto um direito extensivo a todos, sendo dever do Estado e da família, devendo ser promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
Aliás, no que se refere à dignidade da pessoa humana tem-se que na história do constitucionalismo este princípio tem merecido atenção especial, isto logicamente destaca sua posição central na consolidação do estado democrático de direito. (MENDES, 2008)
No Brasil, a Região Norte se caracteriza por enormes dificuldades e desafios em matéria de educação e exercício da cidadania, isto se dá dentre outras razões pelo vácuo deixado pelo Estado na prestação de serviços públicos essenciais, o que tende a produzir situações que afrontam os dispositivos constitucionais, pelo fato de expor boa parte da população desta região a uma situação de desigualdade econômica e indignidade social, mitigando o exercício pleno dos seus direitos.
Em Roraima, a carência de políticas públicas educacionais, adequadas às necessidades locais, tem contribuído para a manutenção de um nível de escolaridade insatisfatório entre os nativos e de um grande contingente de analfabetos, isto naturalmente gera dificuldades no que concerne à plenitude do exercício da cidadania. Tal realidade se evidencia, por exemplo, pela existência de nativos que sequer contam com o registro de nascimento.
Nessa atmosfera adversa é que o papel da universidade se faz relevante ao contribuir para a formação de profissionais em diversas áreas e professores indígenas de ensino básico e médio para atuarem nas próprias comunidades das quais são provenientes, o que por certo em muito contribuirá para a construção da cidadania e do progresso destas populações, a fim de que a cidadania se torne um atributo político decorrente do direito de participar no governo e direito de ser ouvido através da representação política.’ (SILVA, 2006)
Com efeito, as dificuldades de acesso ao ensino superior público gratuito é um problema que acomete as populações em todas as regiões do País. Esta realidade é ainda mais complexa no Norte do Brasil em virtude de serviços essenciais não supridos ou mal prestados pelo Estado; do número reduzido de universidades; do pequeno quantitativo de mestres e doutores e da baixa escolaridade da população local.
No caso das comunidades indígenas são vários os vetores que mitigam o exercício do seu direito à cidadania, além da pobreza - fator comum à maioria da população brasileira - os índios têm outras amarras que limitam suas possibilidades de concorrer em pé de igualdade com os demais cidadãos brasileiros.
É preciso descartar imediatamente qualquer limitação de ordem intelectual, as dificuldades as quais nos referimos no parágrafo anterior, têm sua origem na péssima educação básica fornecida pelo Estado aos brasileiros e especialmente aos índios, bem como na histórica intolerância racial e preconceito intelectual nutridos contra os nativos. Com efeito, além de extremamente pobres a maioria dos índios brasileiros também é pouco escolarizada. Este diagnóstico ajuda a compreender a enorme dificuldade dos povos indígenas quanto ao exercício de seus direitos.
Em verdade, no Brasil do Séc. XXI há um sentimento de culpa e dívida com relação aos povos historicamente marginalizados, dentre os quais se encontram negros e índios, e isto se manifesta juridicamente, por exemplo, pelo tratamento especial conferido aos nativos pela CF/88 no que se refere, sobretudo, ‘à questão fundiária e à previsão de educação inclusiva que contemple o respeito as suas tradições e valores, com vistas à universalização do acesso à dignidade e à cidadania’. (LENZA, 2010)
“Com a advertência de que são aplicáveis aos indígenas os princípios da ordem social em geral, com o acréscimo, apenas, do que chamaríamos de princípio da proteção da identidade, é de destacar que a maior preocupação do constituinte com esse segmento social concentrou-se na preservação de seu habitat natural, isto é, das terras por eles tradicionalmente ocupadas, como condição necessária, embora não suficiente, para o reconhecimento constitucionalmente assegurado de sua organização social.” (MENDES, 2008)
2. PRINCÍPIO DA IGUALDADE JURÍDICA E A QUESTÃO INDÍGENA
A igualdade jurídica constitui-se em direito fundamental e dispõe que todos devem ser tratados do mesmo modo perante a lei.
"Quanto mais progridem e se organizam as coletividades, maior é o grau de diferenciação a que atinge seu sistema legislativo. A lei raramente colhe no mesmo comando todos os indivíduos, quase sempre atende a diferenças de sexo, de profissão, de atividade, de situação econômica, de posição jurídica, de direito anterior; raramente regula do mesmo modo a situação de todos os bens, quase sempre se distingue conforme a natureza, a utilidade, a raridade, a intensidade de valia que ofereceu a todos; raramente qualifica de um modo único as múltiplas ocorrências de um mesmo fato, quase sempre os distingue conforme as circunstâncias em que se produzem, ou conforme a repercussão que têm no interesse geral. Todas essas situações, inspiradas no agrupamento natural e racional dos indivíduos e dos fatos, são essenciais ao processo legislativo, e não ferem o princípio da igualdade. Servem, porém, para indicar a necessidade de uma construção teórica, que permita distinguir as leis arbitrárias das leis conforme o direito, e eleve até esta alta triagem a tarefa do órgão do Poder Judiciário."(DANTAS,1948)
Ocorre que tratar da mesma forma aqueles que são faticamente desiguais poderá agravar ainda mais esta situação de desigualdade. Assim sendo através do direito é possível tornar juridicamente igual o que é naturalmente desigual.
“Dessa forma, o que se veda são as diferenciações arbitrárias, as discriminações absurdas, pois o tratamento desigual dos casos desiguais, na medida em que se desigualam, é exigência tradicional do próprio conceito de Justiça, pois o que realmente protege são certas finalidades, somente se tendo por lesado o princípio constitucional quando o elemento discriminador não se encontra a serviço de uma finalidade acolhida pelo direito, sem que se esqueça, porém, como ressalvado por Fábio Konder Comparato, que as chamadas liberdades materiais têm por objetivo a igualdade de condições sociais, meta a ser alcançada, não só por meio de leis, mas também pela aplicação de políticas ou programas de ação estatal.” (MORAES: 2010)
Assim sendo, é pela lei que o direito supre deficiências sociais e econômicas atuando de modo a tutelar àqueles que estão naturalmente vulneráveis e carentes da assistência do Estado.
Por este raciocínio, é que diante da exploração do empregado pelo empregador e do consumidor pelo fornecedor, o legislador optou por proteger através do direito àqueles que do ponto de vista econômico são mais fracos. É claro que o conceito de igualdade não se limita apenas à esfera das relações econômicas, devendo também contemplar outras questões sociais igualmente relevantes. “Assim, os tratamentos normativos diferenciados são compatíveis com a Constituição Federal quando verificada a existência de uma finalidade razoavelmente proporcional ao fim visado.” (MORAES, 2010)
Neste diapasão é que se deve atuar em nome do princípio da igualdade jurídica ao tratar diferentemente aqueles que numa perspectiva social e econômica se encontram em degraus diferentes. “Essa tendência está adequada aos ditames fixados no art. 215, §1º da CF/88, que delega ao Estado o dever de proteger as manifestações das culturas populares indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.” (LENZA, 2010)
É certo que em Roraima boa parte dos índios vive em situação de precariedade e miséria, e entre eles o índice de desenvolvimento é tão baixo quanto o do resto da população mais pobre do estado, entretanto há uma agravante contra os indígenas que consiste na tendência de permanecerem agregados em aldeias e malocas distantes da capital, nas quais os serviços públicos chegam com imensa dificuldade, enquanto boa parte da população roraimense não índia, apesar de se encontrar em semelhante situação de miserabilidade, está mais próxima dos serviços públicos ofertados, sobretudo nas cidades.
Com efeito, o isolamento das populações indígenas tem cooperado para a preservação de suas tradições e sua cultura, todavia, também tem produzido marginalização e exclusão no que se refere ao exercício pleno de sua cidadania.
A nosso sentir, no Brasil, não cabe ao Estado o mérito pela preservação das tradições e costumes que formam a cultura indígena, pelo contrário, historicamente o Estado contribuiu para a descaracterização da cultura indígena.
“A questão da igualdade racial inserida no âmbito das políticas públicas remonta no Brasil à década de 1960, quando mais precisamente em 1968 o Governo se manifestou favorável a uma ação afirmativa em prol de uma lei que obrigasse empresas privadas a contratarem uma porcentagem de empregados negros.” (Santos,1999)
Assim é que recentemente o Poder Público tem se esforçado com vistas a proporcionar aos povos indígenas as condições que lhes permitam uma real incorporação ao resto da população brasileira, com acesso as mesmas vantagens e oportunidades.
Neste sentido, a ideia é que a aplicação de políticas educacionais diferenciadas, sintonizadas com peculiaridades da cultura indígena, tenderá a minorar os efeitos das mazelas que os vitimaram ao longo dos últimos séculos, incorporando-os ao conjunto da sociedade brasileira, sem castrar-lhes o direito básico de poderem ser quem realmente são.
Neste ponto é que a igualdade jurídica deve operar em favor dos nativos no sentido de propiciar-lhes pela educação a possibilidade de uma vida digna, com acesso irrestrito às oportunidades oriundas do exercício da cidadania.
3. Aspectos legais referentes às ações afirmativas enquanto instrumento de desenvolvimento
Com efeito, a consciência em prol da elaboração de ações afirmativas nas universidades brasileiras foi formada a partir da atuação dos movimentos sociais que reivindicavam acesso mais igualitário às vagas, numa perspectiva jurídica mesmo, aquela em que a justiça se manifesta pelo tratamento diferenciado dos desiguais. (Guimarães, 1997).
O tratamento privilegiado por cotas raciais no acesso ao ensino superior é uma discussão em pauta em vários Países. “Além do Brasil, já foram experimentadas em países como a Índia, após a independência, os Estados Unidos, no processo de extinção de leis segregacionistas, em países europeus, com relação aos imigrantes de ex-colônias e à população feminina.” (MOEHLECKE, 2004)
Deste modo, o ensino superior tem se apresentado para os indígenas como uma valiosa ferramenta através da qual o princípio da igualdade de acesso ao ensino se materializa, e, neste sentido, a UFRR tem atuado como ferramenta de efetivação da Norma jurídica constitucional.
É imperativo que se promova a integração cidadã das populações indígenas marginalizadas do estado de Roraima mediante a implementação de políticas públicas que viabilizem o acesso ao ensino superior público de qualidade às comunidades econômica e socialmente fragilizadas, contribuindo para sua formação profissional em diversas áreas do conhecimento, bem como a formação de professores indígenas, contribuindo para que se equacione um problema recorrente: a precariedade do ensino fundamental e médio ofertado pelo Estado aos indígenas. “Assim o estado deve garantir às comunidades indígenas, uma educação escolar diferenciada, específica, intercultural e bilíngüe.” ( LENZA, 2010)
Mostra-se urgente a questão de se promover a busca de bases jurídicas sólidas que possam sustentar a oferta diferenciada e privilegiada de vagas no ensino superior aos nativos através de cotas, por isto importa saber se tal oferta se amolda ao rigor da Norma constitucional protegida pelo Supremo Tribunal Federal. Nesta perspectiva, caberá à Suprema Corte estabelecer a melhor interpretação favorável ou não à manutenção do modelo de privilégios ao acesso de populações marginalizadas ao ensino superior no Brasil.
Assim, no aguardo da manifestação do STF, é incontestável o beneficio social proporcionado pela atuação da universidade pública brasileira na inclusão diferenciada de povos indígenas no ensino superior. Os efeitos advindos desta iniciativa são positivos, por concederem oportunidade de qualificação a uma parcela significativa da população.
Vale ressaltar que esta iniciativa tem contribuído para o exercício da plena cidadania das comunidades indígenas locais com benefícios às presentes e futuras gerações de nativos.
4. O papel da Universidade na qualificação de populações indígenas
Cabe ao Estado oferecer aos povos indígenas educação pública gratuita e de qualidade em consonância com sua cultura, tradições e costumes, isto já está positivado em tratados internacionais, bem como no ordenamento jurídico pátrio como já ressaltamos aqui.
Assim é que a atuação do Estado, através de políticas educacionais direcionadas aos índios, deve inserir-se num contexto diferenciado capaz de enxergar o nativo a partir de suas especificidades socioculturais.
Em verdade, a questão indígena tem origem num panorama social, cultural, ideológico e político complexo, demandando por isto soluções que levem obrigatoriamente em consideração os vetores sociais e culturais que caracterizam tais comunidades, sob pena de fiasco na implementação e execução de uma política educacional exitosa.
Roraima, estado situado no extremo norte do Brasil, conta com duas universidades públicas, uma estadual (UERR) criada em 2006 e outra federal UFRR (Universidade Federal de Roraima) surgida a partir da transformação do território de Roraima em estado com a Constituição de 1988. Deste modo, a oferta de vagas no ensino superior público se dá principalmente na capital Boa Vista com uma tímida descentralização, para os demais Municípios do estado, ocorrida nos últimos anos.
Com efeito, Roraima traz todas as dificuldades de um estado amazônico recém-criado (1988) caracterizado por grande extensão territorial, deficiente infraestrutura e população composta, sobretudo, por imigrantes de outros estados e indígenas de várias etnias, dentre as quais merecem destaque: Makuxi; Taurepang; Ingarikó; Y’ekuana; Patamona; Wai-Wai, e Waimiri-Atroari, Wapichana e Yanomami, estes últimos radicados no interior do estado. Além desses, existem aproximadamente doze mil indígenas em Boa Vista, já devidamente adaptados à vida urbana.[2]
A inclusão de indígenas no ensino superior é uma questão relevante para o Brasil e para Roraima, e diante desta constatação insistimos na necessidade de um diagnóstico detalhado e fidedigno acerca do contingente de estudantes indígenas matriculados nas Universidades e Faculdades do estado.
No semestre letivo de 2008.1 a etnia com maior número de matriculados nos cursos de graduação e licenciatura da UFRR foi a Macuxi, com 184 pessoas, seguida da Wapichana, com 88 índios.[3] A licenciatura intercultural na UFRR tem matriculado índios de diversas etnias, dentre os quais se destacam os Ingaricó, Taurepang, Wai wai e Yekuana. [4]
É necessário que a UFRR conheça com precisão o real número de seus alunos indígenas e utilize tais dados na obtenção do perfil de seu alunado indígena, a fim de melhor planejar suas ações na elaboração de políticas educacionais com vistas a cooperar para a permanência deste discente na Universidade, minorando a evasão e propiciando aos indígenas as condições para seu sucesso acadêmico necessário à conclusão do curso escolhido.
Neste sentido, a UFRR implantou um Sistema de informações sobre alunos indígenas, a fim de identificar, cadastrar e diagnosticar a situação socioeconômica de tais alunos, no intuito de que sejam detectadas dificuldades materiais (moradia, alimentação, transporte, etc.) e para que se possa também acompanhar seu desempenho acadêmico. Assim sendo, através dos dados colhidos por este Sistema de Informação a Universidade poderá melhor definir ações em prol da permanência e do desempenho acadêmico de seu alunado indígena.
A UFRR conta com uma estrutura física sobremodo modesta em comparação com as IFES de outros estados, apesar disto tem se diferenciado e se apresentado nos últimos anos como um referencial para instituições congêneres da Região Norte no que tange às ações inclusivas.
Apesar de graves barreiras orçamentárias, a UFRR tem assumido um compromisso com sua missão institucional, dando efetividade à norma constitucional no que se refere à promoção e oferta de educação pública de qualidade, a fim de permitir o exercício de idênticas oportunidades a todos, com base no conceito jurídico de igualdade, priorizando por suas ações as especificidades que caracterizam as comunidades indígenas locais.
Neste sentido, a presença indígena na UFRR tem sido ampliada mediante a instituição de acesso diferenciado, chamado de “Processo Seletivo Específico para Indígenas” (PSEI). Na seleção, são ofertadas vagas exclusivamente para indígenas.[5] Deste modo, a licenciatura intercultural conta com vestibular específico, em sintonia com as reivindicações e necessidades dos povos indígenas locais.[6]
5. O acesso diferenciado de indígenas ao ensino superior à luz do direito brasileiro
Os fundamentos jurídicos sobre os quais se estrutura a oferta de ensino superior indígena na Universidade têm sua origem tanto na ordem jurídica externa, quanto na norma jurídica nacional. Deste modo, faz-se necessário uma análise sobre essas bases que se manifestam pela via dos tratados internacionais sobre educação indígena (norma jurídica supranacional internalizável); da Constituição de 1988 (norma constitucional), da norma legal - Lei 9.394/96 (LDB) e Lei 10.172/2001 (PNE) - bem como de um conjunto de normas administrativas.
A educação indígena no plano internacional é tutelada pela Declaração da Organização das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, documento elaborado pela ONU no ano de 2007 que consagra o direito dos indígenas à educação em consonância com seus métodos culturais de ensino e aprendizagem, bem como assegura o direito a que a diversidade de suas culturas, tradições, histórias e aspirações fiquem devidamente refletidas na educação pública. O referido tratado como norma programática dispõe sobre a necessidade de promoção da tolerância, compreensão e o cultivo das boas relações entre os povos indígenas e a sociedade como meio de superar toda forma de injustiça e preconceito.
Os povos indígenas possuem identidade cultural peculiar manifestada por organização social, costume, cultura, língua, crenças e tradições próprias. A influência da cultura ocidental nas sociedades indígenas tem produzido ao longo dos séculos uma homogeneização em que o elemento cultural indígena tem perdido espaço para a cultura ocidental. Tem-se assim a aniquilação de uma cultura por outra, quando o ideal seria a convivência harmoniosa manifesta pela troca de valores culturais, sem viés predatório.
O fato é que a “ocidentalização” dos povos indígenas não é de todo ruim quando promove a consciência de preservação dos valores culturais dos nativos, por sua inserção na sociedade “civilizada” através do acesso ao exercício de direitos à educação, saúde, trabalho, propriedade, etc.
Com efeito, a tutela constitucional opera em prol de valores materiais e imateriais dos povos indígenas. É no contexto dessas garantias que se enquadra o direito à educação escolar indígena específica e diferenciada.
A Constituição de 1988 reconhece a pluralidade cultural, étnica e religiosa. Isto opera em favor da preservação da cultura indígena, operacionalizando a inserção de tais povos na sociedade civil sem destruir seus valores essenciais.
Assim, a educação tem papel preponderante no desiderato de assegurar aos povos indígenas os direitos fundamentais indispensáveis ao seu desenvolvimento, exercício da cidadania e qualificação para o trabalho.
O conceito de educação "é mais compreensivo e abrangente que o da mera instrução. A educação objetiva propiciar a formação necessária ao desenvolvimento das aptidões, das potencialidades e da personalidade do educando. O processo educacional tem por meta: a) qualificar o educando para o trabalho; e b) prepará-lo para o exercício consciente da cidadania. O acesso à educação é uma das formas de realização concreta do ideal democrático”. (MELL0, 1986)
O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo, com base no que preceitua a CF/88 nos arts. 205 e 208, VII, §2º. A educação como direito de segunda geração, com base na clássica disposição dos direitos elaborada por Bobbio, manifesta-se mediante ação afirmativa do Estado, portanto é atribuição do poder público, em colaboração com a sociedade civil, a missão de fazer cumprir a Constituição no sentido de dar às populações indígenas todas as oportunidades concedidas aos demais brasileiros. “A alteração da igualdade é um desafio à legalidade constituída, assim como a não-observância das leis estabelecidas é uma ruptura do princípio de igualdade no qual a lei se inspira” (Bobbio, 1997)
“A União organizará o sistema federal de ensino e o dos Territórios, financiará as instituições de ensino públicas federais e exercerá, em matéria educacional, função redistributiva e supletiva, de forma a garantir equalização de oportunidades educacionais e padrão mínimo de qualidade do ensino mediante assistência técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios.” (MORAES, 2010)
Enquanto ente pertencente à União é notável a atuação em Roraima da UFRR na formação de professores indígenas e no desenvolvimento da educação superior das populações nativas locais.
As ações afirmativas em prol das comunidades indígenas, realizadas pela UFRR através do Núcleo Insikiran, operam em favor da manutenção da cultura, tradições, crenças e línguas dos nativos locais, assegurando-lhes processos próprios de aprendizagem, com base no art. 210, §2º e art. 231, caput, da CF/88, bem como a Universidade tem cumprido o disposto no art. 210, §2º e art. 231, caput, da mesma Carta Magna e no plano infraconstitucional tem dado efetividade às disposições contidas na LDB.
A propósito, a LDB dispõe sobre a atribuição concedida à União para desenvolver programas integrados de ensino e pesquisa destinados aos povos indígenas, levando em consideração a valorização de sua língua, identidade étnica e memória histórica. O art. 79 da LDB versa sobre o dever da União de apoiar técnica e financeiramente os sistemas de ensino que valorizem a educação intercultural voltada às comunidades indígenas, desenvolvendo programas integrados de ensino e pesquisa, dentre outros objetivos. Deste modo, fica claro que cabe à União manter programas de formação de pessoal especializado, destinado à educação escolar nas comunidades indígenas.
No caso do Estado de Roraima, a criação de um núcleo específico destinado à formação de professores indígenas de nível superior, somada à oferta de condições especiais de acesso aos cursos de graduação e licenciatura regulares para indígenas fazem da Universidade Federal de Roraima uma instituição de vanguarda, sensível à realidade cultural local.
Neste contexto, o Núcleo Insikiran da UFRR implementa uma licenciatura para formação intercultural para professores índios, a fim de melhorar o nível escolar nas comunidades indígenas locais, sem mutilar sua identidade cultural. Entretanto, é preciso dizer que isso não é exclusividade de Roraima, pois em todas as regiões do Brasil existem ações afirmativas e de licenciaturas interculturais voltadas ao acesso de minorias às universidades públicas.[7]
Até o início da década de 1990, as políticas públicas referentes à educação indígena no Brasil eram executadas pela Fundação Nacional do Índio, isto mudou com a transferência de tal atribuição, pelo Dec. n. 26/91, para o Ministério da Educação através das secretarias de educação dos estados e municípios, ouvida a FUNAI. (LENZA, 2010)
Agora, neste ponto, cabe um questionamento: A previsão constitucional de utilização de processos próprios de aprendizagem seria por si só suficiente para fundamentar e justificar a imersão de alunos indígenas no ensino superior em condição privilegiada através de cotas no vestibular?
A resposta está com o STF, entretanto, enquanto o Supremo não se manifesta sobre essa matéria, os juristas têm sem posicionado de modo divergente, ora defendendo, ora atribuindo vício de constitucionalidade ao tratamento diferenciado a partir da instituição de cotas baseadas em critérios étnicos.
Como já frisado, esta questão inevitavelmente chegará às barras do Supremo Tribunal Federal, ocasião em que a tese em prol do acesso privilegiado de alguns grupos (indígenas, estudantes oriundos de escolas públicas, portadores de deficiência, integrantes de minorias étnicas, filhos de policiais civis, militares, bombeiros militares e de Inspetores de segurança e administração penitenciária mortos em razão do serviço, etc.) à Universidade pública mediante reserva de vagas ou cotas, será submetida ao fogo constitucional.
Destarte, é pelo princípio da isonomia que se tem tentado justificar o acesso diferenciado de indígenas ao ensino superior em Universidades Públicas brasileiras sob o argumento de se compensar injustiças históricas.
“Para que as diferenciações normativas possam ser consideradas não discriminatórias, torna-se indispensável que exista uma justificativa objetiva e razoável, de acordo com critérios e juízos valorativos genericamente aceitos, cuja exigência deve aplicar-se em relação à finalidade e efeitos da medida considerada, devendo estar presente por isso uma razoável relação de proporcionalidade entre os meios empregados e a finalidade perseguida, sempre em conformidade com os direitos e garantias constitucionalmente protegidos.” (MORAES, 2010)
É possível que a instituição de acesso diferenciado à graduação e licenciatura seja um instrumento utilizado pelas universidades, a fim de democratizar o acesso ao ensino superior. Entretanto, é igualmente possível que o privilégio de acesso ao ensino superior produza distorções no preparo acadêmico dos nativos, pondo-os em desvantagem em comparação com os demais alunos. Com efeito, as deficiências observadas no ensino fundamental e médio poderão acarretar dificuldades no que se refere ao desempenho acadêmico dos indígenas inseridos de modo privilegiado na Universidade.
É preciso refletir mais sobre isto, e submeter essa questão ao rigor científico através de pesquisas e estatísticas baseadas na vida acadêmica dos indígenas, com análise comparativa (quantitativo/qualitativa) elaborada a partir dos dados obtidos pela análise do desempenho de alunos não indígenas nos cursos de graduação e licenciatura.
Dentre os objetos de investigação da referida análise sugerimos que conste: o conhecimento sobre o modo de acesso dos alunos, a diretriz curricular empregada na formação de professores indígenas (licenciatura intercultural), a recepção e real adesão das comunidades indígenas ao projeto da UFRR, modo de funcionamento do Núcleo Insikiran, as estatísticas referentes aos alunos indígenas admitidos, o quantitativo dos professores indígenas formados, os reflexos da formação acadêmica no âmbito das comunidades indígenas locais, a formas de apoio do governo estadual e da sociedade civil, a análise de dados socioculturais dos estudantes indígenas, a experiência de outros estados da federação na oferta de ensino superior indígena em IES, etc.