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Fiança policial, violência doméstica e a Lei nº 12.403/2011

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Agenda 08/06/2012 às 13:11

Com a Lei Maria da Penha, a concessão de liberdade provisória pela polícia mediante fiança é possível, se a vítima for vulnerável, apenas nos crimes sujeitos a ação penal privada e nas contravenções penais, em respeito ao princípio da proporcionalidade.

Índice: 1. Introdução 2. A fiança: breve notícia histórica 2.1. Origem da fiança policial: a confusão entre as funções de juiz e de delegado 3. O Código de Processo Penal de 1941: a fiança policial e a necessidade da prisão num regime de exceção 3.1. A “desmoralização” da fiança com a reforma de 1977 3.2. A fiança concedida pela autoridade policial e a Lei 12.403/11 4. A impossibilidade de concessão de fiança policial após as inovações introduzidas pela Lei Maria da Penha, reforçadas pela Lei 12.403/11 4.1. A Lei Maria da Penha, a prisão e a liberdade no contexto constitucional 4.2. Os motivos da Lei Maria da Penha e os requisitos das cautelares na violência doméstica 4.3. Casos concretos que demonstram a incompatibilidade da fiança policial perante o novo sistema legal 5. Crimes de ação penal privada e contravenções penais 6. Conclusão


1. Introdução

Após a edição da Lei Maria da Penha, a fiança concedida pela autoridade policial passou a ser vedada na violência doméstica contra a mulher. Somente o juiz, senhor constitucional da prisão e da liberdade, pode fixá-la, “posto que esta só pode ser concedida quando ausentes os requisitos da prisão preventiva (art. 324, IV, do CPP), análise a ser feita pelo judiciário no caso concreto”, conforme recomendação do Conselho Institucional das Câmaras Criminais do Ministério Público do DF, de 13/5/2010.

A Lei 12.403, de 4/5/2011, que sistematizou o uso das cautelares penais no CPP, não só ratificou aquele entendimento, como também o reforçou. Tal diploma ainda ampliou as hipóteses de proibição de concessão de fiança pela autoridade policial para abarcar os crimes de violência doméstica praticados contra o homem-vulnerável: menor, idoso, enfermo ou pessoa deficiente. Por isso, os Promotores de Justiça de Violência Doméstica do Brasil, na 2º reunião nacional da categoria (18 e 19/8/2011), concluíram por unanimidade:

A fiança e as novas alterações do Processo Penal. Os participantes entenderam que é incompatível a fiança policial nos crimes praticados em situação de violência doméstica e familiar contra a mulher, em razão de haver necessidade de o Juiz analisar imediatamente os requisitos da prisão preventiva nos termos do art. 310, inciso II, do CPP bem como da impossibilidade de concessão de fiança quando presentes os requisitos da prisão preventiva (CPP, Art. 324, IV).

Por fim, a COPEVID (Comissão Permanente de Promotores da Violência Doméstica do Brasil)[1], emitiu o seguinte enunciado:

Enunciado nº 6: Nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, é vedada a concessão de fiança pela Autoridade Policial, considerando tratar-se de situação que autoriza a decretação da prisão preventiva nos termos do artigo 313, III, CPP.

Considerando a resistência de algumas unidades da Federação em cumprir a lei, seguem algumas considerações esclarecendo os motivos de o legislador ter optado por submeter os flagrantes dos crimes mais graves (identificados como aqueles em que se autoriza, em tese, a prisão preventiva) ao crivo exclusivo do juiz, como corolário da cláusula de reserva jurisdicional determinada na Constituição da República.


2. A fiança: breve notícia histórica

Em sua origem, a concessão da liberdade era feita mediante uma garantia, chamada caução. Esta podia ser real (caução em sentido estrito) ou fidejussória, que seria a fiança propriamente dita. Aquela consistia em bens e esta num compromisso pessoal.

A primeira modalidade de garantia exigida pelo Estado – assim em Atenas como em Roma – foi a caução fidejussória, consistente na apresentação de fiadores, que assumiam a obrigação de apresentar o réu no dia do julgamento (ALMEIDA JÚNIOR[2]).

No Brasil-colônia (1500-1822), desde as Ordenações Afonsinas, havia a concessão da liberdade por meio das Cartas de Seguro, da homenagem (menagem[3]) e da palavra de fiéis carcereiros, geralmente mediante compromisso de comparecimento ao julgamento. Era prevista também a fiança, como caução real prestada por fiador.[4]

Vê-se que o termo fiança utilizado não apresentava técnica jurídica, pois se referia ao depósito em dinheiro, metal precioso, etc, verdadeira modalidade real de caução, e não de fiança. Tal denominação, porém, foi mantida no sistema processual brasileiro. Explica Tourinho Filho[5]:

“Ao tempo do império, a liberdade provisória podia ser concedida por meio de caução ou de um compromisso pessoal, como a palavra dos fiéis carcereiros ou a homenagem. Com o passar dos anos, desapareceu a caução pessoal, a fiança propriamente dita, e subsistiu a caução real, que, a rigor, não é fiança, embora sempre tenha sido chamada assim, e até hoje ela tem, no Processo Penal, a mesma denominação.”

Apesar da impropriedade técnica, o termo “fiança”, como sinônimo de prestação em dinheiro, foi mantido pelo atual Código de Processo Penal.

2.1. Origem da fiança policial: a confusão entre as funções de juiz e de delegado

Durante o Império (1822-1889), os Poderes Legislativo e Judiciário não gozavam de independência, pois o Poder Executivo subjugava os demais, através do denominado Poder Moderador[6]. “Disso resultou uma concentração de atribuições nas mãos do Imperador. Pelos princípios constitucionais do Poder Moderador, a pessoa do Imperador foi considerada inviolável e sagrada, não estando sujeita a responsabilidade alguma”, constata Boris Fausto[7].

Por isso, cabia exclusivamente ao Imperador nomear os magistrados. Para manter a subordinação dos juízes, determinou-se que o Monarca poderia “suspendel-os por queixas contra elles feitas”[8].

Nesse contexto, aos juizes de direito, escolhidos dentre bacharéis, competia exercer a chefia da polícia, nos termos do Código de Processo Penal de 1832. Estes podiam menos que os juízes de paz, que, eleitos levando em conta o desejo dos grandes latifundiários, efetivamente tinham poderes no dia-a-dia das pessoas[9]. Posteriormente, os chefes de polícia passaram a exercer as funções dos juízes de paz, para processar e julgar as contravenções e os crimes punidos com prisão, degredo ou desterro até seis meses, como lembra o Procurador de Justiça Rogério Schietti Machado Cruz[10].

Por isso, tinham os chefes de polícia, escolhidos entre os juízes, poderes judiciais. Conhecido como “policialismo judiciário”, esse sistema traduzia “uma estrutura e funcionamento da justiça criminal em que a Polícia prendia, investigava, acusava e pronunciava os acusados de certos crimes sem importância”[11]. Referido autor lembra o elucidativo art. 54 da Lei nº 261, de 1841:

“as sentenças de pronúncia nos crimes individuais proferidas pelos Chefes de Polícia, Juízes Municipais, e as dos Delegados e Subdelegados, que forem confirmadas pelos Juízes Municipais, sujeitam os réus à acusação, e a serem julgados pelo Jury”

Assim, era natural que a polícia concedesse a liberdade mediante fiança, porque tinha poderes judiciais até para condenar. Tanto que o “promotor público”, por Decreto datado de 1871, devia ser ouvido antes de a polícia prestar fiança[12], fato que comprova o status judicial do investigador (ou o status policial do juiz).

A subordinação judicial tinha origem nas monarquias absolutistas vigentes na Europa. Os juizes e os policiais faziam parte do mesmo braço armado, subservientes aos interesses dos reis. Tal situação não era exclusiva das Ordenações de Portugal, que vigoraram no Brasil por mais de 3 séculos. Outro exemplo ocorreu durante o domínio holandês no nordeste brasileiro (1630-1654). Aplicando os “usos, ordenações e costumes imperiais da Holanda, Zeelândia e Frísia Oriental”, instituiu-se em Pernambuco o cargo de “escolteto”, misto de promotor público e policial, para exercer a atividade executiva e escolher os juizes, que eram denominados “escabinos”. Eram os “escoltetos” que presidiam as câmaras de magistrados (“escabinos”). Não havia distinção entre fase policial e fase judicial[13].


3. O Código de Processo Penal de 1941: a fiança policial e a necessidade da prisão num regime de exceção

O Código de Processo Penal (CPP) instituiu, em 1941, um sistema processual em que a regra era a prisão. Somente em raros crimes podia o preso em flagrante ser solto, mediante pagamento de fiança, consistente em dinheiro ou outros bens (art. 330). Essa concessão era exclusividade da polícia, que decidia se, como e quando fixar a fiança (art. 332), pois, durante o inquérito, o preso ficava “à disposição da autoridade que o autuou”[14]. O juiz só podia soltar, mediante fiança, após o término das investigações (ou, sem fiança, quando verificasse situação excludente de antijuridicidade ou culpabilidade, nos termos do art. 310, caput).

Nessa situação, o delegado podia até cassar a fiança concedida por ele próprio, quando julgasse conveniente, conforme decisão do Tribunal do Distrito Federal, datada de 13/04/1944[15]. Assim, a polícia prendia, soltava e prendia novamente, sem interferência judicial.

Para frisar o indiscutível poder policial, determinou-se que, quando o delegado se recusasse a fixar a fiança, o juiz deveria ouvi-lo antes de decidir se a recusa era justa (art. 335). O delegado, porém, podia decidir sobre a fiança sem ouvir sequer o Ministério Público (art. 333). Portanto, o juiz estava vinculado à oitiva prévia da polícia, porém esta não precisava consultar os órgãos da Justiça.

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Essa hipertrofia da função policial, em detrimento da Justiça, era fruto do “Estado Novo”, regime de exceção vigente à época (1937-1945). Adotado pelo ditador Getúlio Vargas, o CPP bebeu na fonte do Código de Processo Penal italiano de 1930, de cunho fascista. A opressão ao cidadão devia ser feita pelo Poder Executivo, com a mínima interferência dos juízes. Em plena República (proclamada em 1889), mantiveram-se os princípios do Império e das monarquias absolutas do passado.

3.1 A “desmoralização” da fiança com a reforma de 1977

Com a reforma operada em 1977, pela Lei nº 6.416, o CPP foi substancialmente alterado, de modo que a liberdade provisória, independentemente do pagamento de fiança, passou a ser regra.

De fato, acrescentou-se parágrafo único ao art. 310, dispondo: “quando o juiz verificar, pelo auto de prisão em flagrante, a inocorrência de qualquer das hipóteses que autorizam a prisão preventiva, poderá, depois de ouvir o Ministério Público, conceder liberdade provisória”.

Assim, a prisão somente poderia ser mantida se comprovada sua imperiosa necessidade, analisando-se os requisitos da prisão preventiva (fumus boni iuris e periculum in mora). Estes requisitos transformaram-se no esteio central do sistema cautelar criminal ou, nas palavras de ROGÉRIO SCHIETTI[16], no “epicentro do sistema de prisões cautelares”. Nenhuma prisão provisória pode ser mantida na sua ausência; nenhuma liberdade pode ser concedida na sua presença. “Passa-se, então, de lege ferenda, a exigir explícita fundamentação também na decisão – hoje implícita – de manter a prisão provisória do autuado, já agora sob outro título”[17].

Com isso, o juiz tornou-se o guardião absoluto da liberdade e o responsável pela prisão estritamente necessária, antevendo-se os princípios do Estado Democrático de Direito forjado pela Constituição de 1988 (é um paradoxo que o dispositivo de 1977 tenha sido promulgado pelo General Ernesto Geisel, ditador que previu uma abertura política “lenta, gradual e segura” do regime militar imposto em 1964).

Desse modo, a fiança perdeu importância, “desmoralizou-se” [18], segundo a doutrina majoritária.

Mitigada a importância da fiança para os crimes passíveis de prisão preventiva, procurou o legislador de 1977 uma saída para a concessão de liberdade imediata àqueles que cometeram infrações criminais que, por exclusão legal, não comportavam prisão preventiva. Para tanto, concedeu à polícia o poder de soltar, mas com a cautela de não permitir a invasão da função judicial, entendimento reforçado pela Lei 12.403/2011, como veremos a seguir.

3.2 A fiança concedida pela autoridade policial e a Lei 12.403/11

Como vimos, a reforma do CPP 1977 instituiu que é o Poder Judiciário o guardião da prisão e da liberdade do cidadão. Porém, concedeu à autoridade policial o poder de concessão de fiança nos crimes apenados com pena de detenção ou prisão simples, e a reforma de 2011 ampliou essa possibilidade para toda infração punida com até 4 (quatro) anos de prisão, verbis:

Art. 322.  A autoridade policial somente poderá conceder fiança nos casos de infração cuja pena privativa de liberdade máxima não seja superior a 4 (quatro) anos.

Verifica-se que tal dispositivo se contradiz com o art. 324, IV (também acrescentado pela reforma de 1977 e mantido pela de 2011):

Art. 324. Não será, igualmente, concedida fiança:

IV -quando presentes os motivos que autorizam a decretação da prisão preventiva (art. 312).

De fato, a análise dos requisitos da prisão preventiva é matéria de alçada da autoridade judicial. À polícia, e também ao Ministério Público, cabe requerer a prisão ao magistrado, nos termos do art. 311 do CPP. Portanto, jamais poderia a polícia arbitrar fiança, uma vez que sua concessão está vinculada à ausência dos requisitos da prisão preventiva, cuja apreciação compete ao juiz (a Constituição de 1988 reforçou esse entendimento, conforme veremos no item 4.1).

Essa contradição, porém, apresenta uma lógica no sistema instituído. É que não se admite a prisão preventiva para os crimes punidos com pena até 4 (quatro) anos de prisão, a não ser em restritas hipóteses. Portanto, nem mesmo o juiz pode manter preso o acusado por infração cuja pena máxima não ultrapasse 4 (quatro) anos, nem decretar sua prisão.

Assim, permite-se ao delegado conceder a liberdade provisória, mediante fiança, apenas nos casos em que não cabe, em tese, prisão preventiva, ou seja, quando o Poder Judiciário deve obrigatoriamente soltar. A polícia, portanto, libera os presos antes da apreciação judicial, considerada desnecessária. Expliquemos:

Por força do atual art. 313 do CPP, a prisão preventiva é sempre cabível nos crimes punidos com pena máxima superior a quatro anos. Os demais crimes, considerados menos graves, não são passíveis de prisão preventiva.

Portanto, o legislador concedeu à autoridade policial o poder de fixar a fiança apenas nos casos em que é incabível a prisão preventiva, ou seja, quando sequer o juiz pode manter a prisão.

Verifica-se que, apesar da manutenção do anômalo poder conferido à autoridade policial, não há prejuízo em tal disposição. É que a permissão refere-se a casos incompatíveis com a prisão provisória (preventiva), sendo indiferente qual autoridade liberará o preso. A situação é estranha, mas tem sua lógica sistemática.


4. A impossibilidade de concessão de fiança policial após as inovações introduzidas pela Lei Maria da Penha, reforçadas pela Lei 12.403/11

A Lei nº 11.340, de 2006, denominada Lei Maria da Penha (LMP), revogou a Lei nº 9.099/95 e, em consequência, restaurou as disposições do CPP para os crimes praticados contra a mulher em violência doméstica, conforme seu art 41. Pela Lei revogada, os crimes mais comuns praticados em violência doméstica não eram passíveis de prisão em flagrante, muito menos de prisão preventiva. A LMP, reforçada pela Lei 12.403/11, alterou esse quadro, de forma que é cabível a prisão em flagrante e a liberdade provisória voltou a ser matéria privativa da alçada judicial, sem exceções, pelo menos no que se refere à violência doméstica.

De fato, a LMP estabeleceu a possibilidade de prisão preventiva para todos os crimes cometidos em violência doméstica contra a mulher, inclusive aos apenados com pena inferior a quatro anos. A Lei 12.403/11 ampliou essa possibilidade quando a vítima da violência doméstica for do sexo masculino e vulnerável, conforme o seguinte dispositivo do art. 313 do CPP:

Art. 313.  Nos termos do art. 312 deste Código, será admitida a decretação da prisão preventiva: (…)

III - se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência; (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

E, de forma redundante e eloqüente, a LMP determinou que a prisão preventiva pode ser decretada ou revogada, pelo juiz, quantas vezes forem necessárias, atentando-se para as razões justificadores (art. 20).

Assim, o dispositivo previsto no art. 322 do CPP, que permite a concessão de fiança pelo delegado nos crimes punidos com pena até quatro anos, não se aplica à violência doméstica, em face das inovações introduzidas no próprio CPP pela LMP e pela Lei 12.403/11.

Com efeito, todos os crimes punidos com pena até quatro anos de prisão estão agora sujeitos à prisão preventiva, nos termos do aludido art. 313, inc. IV, CPP. Logo, não será concedida a fiança se presentes os requisitos da prisão preventiva (art. 324, IV, CPP), apreciação que deve ser feita pelo juiz, nos termos do art. 311 do CPP. Na ausência desses requisitos, somente o magistrado deve soltar o acusado, independentemente da fixação de fiança, nos termos do art. 310, parágrafo único, do CPP, na redação de 1977. A Lei 12.403/11 reforçou esse entendimento, pois alterou referido art. 310 para esclarecer, em seus incisos, o papel do juiz ao receber o auto de prisão em flagrante:

I - relaxar a prisão ilegal; ou (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).

II - converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; ou (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).

III - conceder liberdade provisória, com ou sem fiança. (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).

Ao determinar que o juiz deve converter o flagrante em preventiva, o legislador se refere a todos os crimes em que a lei autoriza a prisão preventiva, em tese, inclusive os praticados em violência doméstica, de forma que, se o delegado conceder fiança, por exemplo, num crime de ameaça, estará impedindo o livre exercício jurisdicional. Como o juiz converterá um flagrante em prisão se o agente já foi solto com o mero pagamento de fiança na delegacia?

Portanto, o legislador conferiu ao juiz o poder exclusivo de decidir sobre a manutenção da prisão na violência doméstica contra a mulher e o homem-vulnerável. A nova Lei repudiou tanto o sistema de 1977, que permitia à polícia arbitrar fiança nos crimes mais comuns (lesão e ameaça, por exemplo), quanto o de 1995 (JECrim), que garantia a liberdade com o simples compromisso de comparecimento. Ambos não se preocupavam com a integridade das vítimas de violência domestica, até porque alijavam o juiz do poder cautelar de decidir se a soltura era conveniente ou temerária.

Assim, o legislador frisou que a prisão preventiva ou a liberdade provisória é matéria afeta ao Poder Judiciário, como sói acontecer num Estado Democrático de Direito. Oportuna a advertência do Promotor de Justiça Jorge Romcy Auad Filho, analisando a Lei Maria da Penha:

“Permitir o arbitramento de fiança pela autoridade policial, no caso em que é possível a decretação de prisão preventiva, além de causar desvirtuamento do ordenamento jurídico, ainda acarretará perplexidade em posicionamentos contraditórios, bem como usurpação da função jurisdicional do juiz”.

Para além disso, se a lei obrigasse a autoridade policial a fixar a fiança nesses casos, criaria uma situação delicada e constrangedora para o delegado de polícia. É que, quando verificada a periculosidade do acusado ou o risco à integridade da vítima, por exemplo, o delegado teria que soltar o agressor, desde que ele tivesse dinheiro para a fiança. Assim, assumiria um ônus e um risco que nem ao Judiciário é conferido, qual seja, o de conceder liberdade quando presentes os requisitos da prisão cautelar. Nem mesmo o legislador de 1977 aceitou essa situação.

Nesse contexto, fácil perceber que a concessão de fiança pela autoridade policial, após o advento da Lei Maria da Penha, além de ilegal, ofende também os ditames constitucionais, como veremos adiante.

4.1 A Lei Maria da Penha, a prisão e a liberdade no contexto constitucional

Determina a Constituição que “ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança”. O dispositivo - previsto na Constituição do Império (1824) e repetido nas demais Constituições da República (com exceção da imposta pelo “Estado Novo” em 1937) -, remete à lei infraconstitucional a definição dos requisitos da fiança. Com a LMP e a Lei 12.403/11, esse função, vedada à autoridade policial, insere-se no contexto constitucional.

Com efeito, o cidadão só pode ser preso em duas hipóteses: em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente (art. 5º, LXI, CF). Conclui-se que qualquer prisão somente pode ser mantida pelo juiz, em face da cláusula de reserva jurisdicional. A prisão em flagrante, faculdade do cidadão e dever do agente estatal, somente se sustenta até a lavratura do auto de prisão em flagrante. Complementa esse entendimento a determinação de que ninguém será privado da liberdade sem o devido processo legal ou sentenciado senão pela autoridade competente (art. 5º, LIV e LIII, CF). Rogério Schietti pontua:

“Sem embargo, a prisão decorrente de flagrante delito se realiza sem a prévia intervenção judicial. É, portanto, medida efêmera, que “somente se aperfeiçoa quando recebe a chancela judicial, primeiramente ao receber (o juiz) a cópia do auto flagrancial e, depois, ao examinar os autos do inquérito policial. Busca-se conciliar, desse modo, a “reserva de jurisdição”, em tema de cerceamento da liberdade individual, com as exigências de segurança pública, a justificarem a modalidade de prisão por quem não detém o poder jurisdicional.”[19]

Nem se argumente que a fiança policial ainda seria útil para livrar imediatamente os acusados da prisão. Ora, a comunicação da prisão em flagrante deve ser feita IMEDIATAMENTE ao juiz e ao promotor de justiça (art. 5º, LXII, da Constituição Federal e art. 10, da Lei Complementar nº 75/93). A Lei nº 11.449/07 avançou e determinou a comunicação também à Defensoria Pública, em 24 horas.

A reforma de 2011 recepcionou tais comandos, ao determinar a comunicação imediata ao juiz e ao promotor e, em 24 horas, a remessa do auto de flagrante ao juiz e ao defensor público, conforme art. 306, caput, e seu § 1º, do CPP.

Assim, os juízes têm a imediata ciência da prisão de qualquer cidadão acusado de violência doméstica. Compete aos magistrados, exercendo o múnus constitucional, manifestar-se sobre a necessidade ou não da continuidade da prisão, art. 310 e incisos do CPP. Ao promotor de justiça e ao defensor público cabe requerer imediatamente o que entender de direito, para garantia dos direitos fundamentais dos acusados e das vítimas.

Além disso, o Pacto de São José da Costa Rica impõe o dever de condução da pessoa presa, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais. Sobre o tema, instiga ROGÉRIO SCHIETTI[20]: “Para obviar eventual e justa crítica de que tal medida (proibição da fiança policial) redundaria em atraso na soltura do autuado, quando cabível, bastaria que se estabelecesse o direito do réu em ser conduzido, tão logo lavrado o auto de prisão em flagrante, à presença da autoridade judicial (...) providência, aliás, já passível de ser colocada em prática, bastando aos juízes darem cumprimento ao disposto no art. 7º, item 5, do Decreto 678/92 (convenção Americana sobre Direitos Humanos)”.

E, apenas para argumentar, a soltura mediante fiança policial não beneficia a maioria dos cidadãos, porque somente os pobres são impedidos de pagá-la, mesmo quando não colocam em risco, por exemplo, a ordem pública ou a instrução criminal. Os economicamente privilegiados, por sua vez, sempre são soltos, mesmo quando sua prisão se mostra necessária. Assim, a fiança não resiste ao crivo do princípio da igualdade (art. 5º CF).

4.2 Os motivos da Lei Maria da Penha e os requisitos das cautelares na violência doméstica

Não é difícil entender os motivos do legislador para alterar o sistema cautelar nos crimes punidos com detenção praticados em violência doméstica. É que, como visto, as principais violências cometidas contra mulheres são tipificadas como crime de lesão corporal ou ameaça, punidos com pena inferior a quatro anos. Impedir a prisão preventiva nesses casos implicaria na aceitação da violação de seus direitos humanos (art. 6º, da Lei Maria da Penha).

Ademais, para apreciar os requisitos da prisão preventiva, deverá o juiz considerar as “condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar” (art. 4º). Tal disposição, que “representa a alma da Lei, sua essência básica, da qual não poderá o Ministério Público (ou o Poder Judiciário) se afastar”[21], exige a análise de diversos fatores de risco e vulnerabilidades, que potencializam a violência doméstica. A literatura especializada sugere cautela nas seguintes situações, dentre outras[22]:

1.                         Indícios de intimidação da ofendida;

2.                         Agressões anteriores, registradas ou noticiadas nos autos;

3.                         Periculosidade do agressor ou crueldade contra animais;

4.                         Agressor possuidor de armas ou integrante da segurança pública;

5.                         Tentativa de separação e inconformismo do agressor;

6.                         Envolvimento com álcool ou drogas;

7.                         Crianças, adolescentes, idosos ou deficientes, vítimas ou presentes nos conflitos;

8.                         Gravidez da ofendida.

Acrescenta-se que o juiz poderá ter o auxílio de equipe multidisciplinar para auxiliá-lo. A Juíza Amini Haddad e a Promotora de Justiça Lindinalva Rodrigues, fundamentando que o novo sistema legal de proteção à mulher é incompatível com a fiança policial, explicam: “entendemos que, de imediato, o melhor é que o Delegado de Polícia não arbitre fiança ao agressor (...) deve a autoridade policial remeter o inquérito policial ao magistrado, para que este analise o caso, e, diante dos fatos ou de até mesmo uma avaliação psicológica do agressor, bem como de parecer ministerial, manter ou não a segregação do agente”.[23]

Além disso, a Lei Maria da Penha dispõe sobre as medidas protetivas, que são verdadeiras cautelares alternativas à prisão (afastamento do lar, proibição de aproximação, etc.), a serem apreciadas pelo juiz em 48 horas (art. 18). Isso significa que, para além de proteger as vítimas, visa o legislador garantir a própria liberdade dos acusados, quando as protetivas se apresentem suficientes. Inéditas no ordenamento brasileiro, tais cautelares se situam entre a prisão e a liberdade, numa tentativa de garantir a integridade das vítimas, sem a necessidade de submeter os acusados às mazelas do sistema prisional. A critério judicial, pode-se até manter a prisão num primeiro momento, desde que presentes seus requisitos, e substituí-la posteriormente por medidas protetivas.

Pois bem, caso a Lei permitisse a concessão de fiança policial, a atuação cautelar do juiz tornar-se-ia inócua. Ora, antes mesmo da análise judicial sobre a necessidade e urgência de qualquer medida, o agressor já estaria livre para continuar suas investidas contra a vítima. A esta, que não teve seu pleito apreciado em tempo oportuno, seria negado acesso ao Poder Judiciário. O pronunciamento judicial posterior não lhe supriria este direito.

Portanto, é compreensível que a Lei Maria da Penha tenha conferido somente ao arbítrio judicial a garantia cautelar dos direitos fundamentais nas situações complexas e, não raro, trágicas, geradas pela violência doméstica. As vítimas dos casos relatados no próximo item que o digam.

4.3 Casos concretos que demonstram a incompatibilidade da fiança policial perante o novo sistema legal

A fiança policial na violência doméstica ainda tem sido concedida em algumas unidades da Federação. A situação ilegal tem gerado, diariamente, conflitos insuperáveis entre o direito à liberdade e à segurança. Pincelo os casos abaixo, dentre tantos, apenas para ilustrar:

Caso 1[24]

1.        08/2007: o investigado C.R.S.L. discutiu violentamente com a companheira L.S.C. numa igreja na cidade de Samambaia/DF. O Pastor, sentindo que “o marido estava disposto a matar a mulher, as filhas e quem mais pudesse e depois se matar”, pediu que a vítima aguardasse, para “tentar mudar o comportamento agressivo e ameaçador” dele;

2.        29/09/2007: o acusado foi preso em flagrante por ameaçar com uma faca sua companheira, dizendo “se sair de casa e me deixar eu te mato”. A vítima declarou que estava há muito tentando a separação, mas tinha medo de ser morta;

3.        29/09/2007: no mesmo dia da prisão, o acusado foi solto, mediante o pagamento de fiança arbitrada pelo Delegado, no valor de R$ 150,00; a vítima foge para Goiânia e se refugia na casa dos pais;

4.        07/10/2007: acusado invade a residência de seus sogros e golpeia a vítima com várias facadas. O pai dela tenta interferir, mas é empurrado pelo acusado. Caído, o pai assiste ao assassinato da filha.

Vê-se que o acusado prometeu matar a vítima, caso ela o deixasse, e teve autorização de assim proceder com o ilegal pagamento de fiança na esfera policial. Se fosse obedecida a Lei Maria da Penha, o caso deveria ter sido encaminhado ao juiz, para analisar os requisitos da prisão preventiva.

Na análise judicial, fatalmente seria levado em conta que a tentativa de separação é um momento dramático para as vítimas de violência doméstica, sendo um dos fatores de risco importantes a serem considerados, conforme item 4.2 (a Organização Mundial de Saúde-OMS estima que 70% das mulheres assassinadas no mundo são vítimas de seus próprios companheiros[25]).

Claro que a vítima só foi assassinada pela omissão do Estado, diga-se, juízes, promotores e delegados, que, deixando de observar a Lei Maria da Penha, permitiram a liberdade temerária do acusado, com o mero pagamento de fiança na polícia.

Caso 2[26]

1.                  04/03/08: acusado preso em flagrante por ameaça de morte contra a companheira;

2.                  04/03/08: acusado solto mediante concessão de fiança pelo Delegado, no valor de R$ 500,00;

3.                  Defensoria Pública, que não sabia da soltura policial do acusado, requereu ao 2º Juizado Especial e da Violência Doméstica de Samambaia/DF sua liberdade provisória;

4.                  06/03/2008: aquele d. Juízo indeferiu o requerimento da defesa, com os seguintes fundamentos: “Outrossim, a conduta que se imputa ao requerente, por sua própria natureza, é grave, eis que cometida com grave ameaça contra pessoa (...) Pelo que depreende dos depoimentos prestados na Delegacia de Polícia, o autor do fato vem constantemente ameaçando a vítima, afirmando que a matará. Consta, ainda, que a vítima já registrou diversas ocorrências policiais contra o requerente por fatos semelhantes. Resta suficientemente demonstrado, diante de tais fatos, que a soltura do autor do fato representaria risco à integridade física da vítima, o que é corroborado pela folha de antecedentes criminais juntada aos autos. A garantia da ordem pública se encontra ameaçada, porquanto os fatos narrados no auto de prisão em flagrante demonstram que se o autor do fato for posto em liberdade possivelmente encontrará os mesmos estímulos relacionados com a infração cometida (…) Daí, merece mantida a cautela corporal do autor, à garantia da ordem pública que, na espécie, diz com a expectativa da sociedade sobre o respeito ao direito fundamental de proteção à mulher contra qualquer tipo de violência a ela infringida”;

5.                  a criteriosa e fundamentada atuação judicial, porém, mostrou-se inócua, pois ao acusado já tinha sido concedida liberdade pelo delegado, mediante o simples pagamento de fiança;

6.                  17/05/2008: uma vez solto, o acusado foi atrás da vítima em sua residência, armado de uma faca, visando matá-la. Na ocasião ele avisou aos vizinhos que iria “pegar a vítima quando ela saísse de casa”.

Vê-se que o magistrado cumpriu sua missão constitucional, ao se manifestar de imediato com relação à prisão. Somente o Tribunal superior poderia cassar-lhe a sentença. No entanto, sua decisão foi desautorizada previamente pela autoridade policial, que já havia concedido a liberdade. A polícia impediu a livre atuação judicial, antes mesmo de o juiz se manifestar. Essa inversão de atribuições, ao arrepio do atual CPP, com as modificações da Lei Maria da Penha, quase causou o assassinato da vítima a facadas no dia 17/05/2008.

Frise-se que, por este último fato, a autoridade policial também concedeu fiança (R$ 1.500,00), porém o acusado não pagou por não ter dinheiro. Caso contrário, já estaria livre para continuar suas investidas contra a vítima.

Caso 3[27]

1.                  07/03/2007: a vítima registrou ocorrência por ameaça praticada por seu ex-companheiro, porém, ao invés de prendê-lo em flagrante, a autoridade policial de Cuiabá/MT o manteve solto;

2.                  09/03/2007: a Vara do Juizado de Violência Doméstica teve conhecimento do caso;

3.                  07/2007: o acusado matou a vítima com 75 facadas.

Se o acusado tivesse sido preso em flagrante e o delegado não arbitrasse fiança, tanto a Justiça quanto o Ministério Público teriam analisado os requisitos da prisão preventiva em tempo oportuno, possivelmente evitando o trágico desfecho dos fatos.

Caso 4[28]

1.        11/6/2011: socou a face da vítima, que caiu, e arrastou-a lesionando costas, braços e face. Antecedentes: a) 1/12/02: lesionada nos braços e cabeça; b) 9/7/05: golpeou-a todo corpo, inclusive face, com facão.

2.        11/6/2011: fiança policial de R$ 1.500,00

3.        6/7/2011: matou vítima a facadas. Filhos de 9 e 6 anos encontrados ao lado corpo da mãe.

Sobre o autor
Fausto Rodrigues de Lima

promotor de Justiça do Distrito Federal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Fausto Rodrigues. Fiança policial, violência doméstica e a Lei nº 12.403/2011. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3264, 8 jun. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21962. Acesso em: 24 nov. 2024.

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