5. Crimes de ação penal privada e contravenções penais
Com relação aos crimes de ação penal privada, creio que poderá ser concedida liberdade pela autoridade policial, mesmo quando praticados em violência doméstica contra a mulher.
Ora, em tais crimes, a ação penal é de iniciativa exclusiva da ofendida, ou seja, somente as vítimas podem iniciar o processo, através de uma “queixa”, a ser oferecida por um advogado. Em razão do princípio da disponibilidade, as vítimas podem renunciar ao processo, extingui-lo, mediante o perdão, ou deixar de pedir a condenação, que implicará na absolvição obrigatória (arts. 49, 51 e 60, III, CPP). O Ministério Público, como titular apenas das ações penais públicas, não poderá denunciar e nem promover o arquivamento, pois tal providência é da alçada do particular ofendido.
Nesse contexto, invocando o principio da proporcionalidade[29], expressamente previsto no atual art. 282 do CPP construído em 2011, não é razoável permitir a prisão em flagrante, e sua manutenção, por crime que depende exclusivamente de ação da vítima, que poderá ser exercida em até 6 meses (art. 38, CPP). Frise-se que raramente as vítimas de violência doméstica oferecem queixa. Nas Varas que atuamos em Brasília, por exemplo, pouquíssimas queixas foram intentadas pelas vítimas desde a implementação da Lei Maria da Penha (há mais de 5 anos).
Assim, a autoridade policial deve lavrar o auto de prisão em flagrante e, em seguida, soltar os acusados, nos seguintes crimes de ação penal privada, punidos com detenção: contra a honra (arts. 138, 139 e 140, CP); de dano simples (art. 163, caput, CP); de fraude à execução (art. 179, CP); de induzimento a erro essencial e ocultação de impedimento (art. 236, CP); e de exercício arbitrário das próprias razões, se cometido sem violência (art. 345, parágrafo único, CP).
O mesmo raciocínio não se aplica, porém, aos crimes de ação penal pública condicionada à representação, pois, considerados mais graves, submetem-se a procedimento diferente. De fato, uma vez oferecida representação pelas vítimas, possibilitando a prisão em flagrante, compete ao Ministério Público exercer plenamente sua função persecutória. O princípio da obrigatoriedade impede que o promotor deixe de atuar, quando presentes os requisitos legais. Dessa forma, o preso deverá ficar à disposição judicial, pois se submeterá obrigatoriamente à lei penal, sem depender da vontade das ofendidas.
Quanto às contravenções penais praticadas em violência doméstica, não pode haver prisão em flagrante, em que pese entendimento contrário do STF (HC 106212, de 24/3/2011).
De fato, para tais causas continua em vigor a Lei nº 9.099/95, cujos dispositivos foram afastados pela Lei Maria da Penha apenas para os crimes cometidos em violência doméstica contra a mulher, nos termos de seu art. 41. Não houve ressalva para as contravenções.
Assim, nas contravenções praticadas contra a mulher, como vias de fato ou perturbação de tranqüilidade (arts. 21 e 65 da Lei de Contravenções Penais), a autoridade policial sequer prenderá em flagrante. Os acusados devem ser soltos, mediante simples termo de compromisso, sem pagamento de fiança, nos termos do art. 69, parágrafo único, da Lei 9.099/95.
6. Conclusão
Com a Lei Maria da Penha, reforçada e ampliada pela Lei 12.403/2011, a concessão de liberdade provisória pela polícia mediante fiança:
1. é vedada nos crimes praticados em violência doméstica contra a mulher e contra o homem-vulnerável (menor, idoso, enfermo ou deficiente);
2. é possível, nas hipóteses do item anterior, apenas nos crimes sujeitos a ação penal privada e nas contravenções penais, em respeito ao princípio da proporcionalidade.
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Notas
[1] O enunciado foi aprovado por unanimidade pela COPEVID e também pelas demais Comissões de Direitos Humanos vinculadas ao Conselho Nacional dos Procuradores Gerais de Justiça (CNPG), em 7/12/2011.
[2] Apud Eugênio Pacelli de Oliveira, p. 42.
[3] A menagem, então privilégio dos nobres, é prevista até hoje no Código de Processo Penal Militar, conforme Octaviano Vieira apud Tales Castelo Branco, p.166.
[4] Eugênio Pacelli de Oliveira, idem.
[5] Fernando da Costa Tourinho Filho, p. 507.
[6] Art. 98 da Constituição de 1824.
[7] Boris Fausto, p. 82.
[8] Art. 102, 3º, e art. 154, da Constituição de 1824.
[9] Flávia Lages de Castro, p. 382.
[10] Rogério Schietti Machado Cruz, p. 36.
[11] Rogério Schietti Machado Cruz, idem, p. 35.
[12] Luiz Otávio de Oliveira Rocha e Marco Antônio Garcia Baz, p. 32.
[13] Ruy Rebello Pinho, p. 139, 143, 144 e 167.
[14] Eduardo Espínola Filho, p. 357.
[15] Citada por Eduardo Espínola Filho, idem, p. 513.
[16] Rogério Schietti Machado Cruz, idem, p. 83.
[17] Rogério Schietti Machado Cruz, idem, p. 85.
[18] Guilherme de Souza Nucci, p. 625.
[19] Rogério Schietti Machado Cruz, idem, p. 81.
[20] Rogério Schietti Machado Cruz, idem, p. 170.
[21] Do autor, “O papel do promotor no combate à violência doméstica e na proteção da mulher”.
[22] sobre o assunto, v. do autor “A renúncia das vítimas e os fatores de risco à violência doméstica – Da construção à aplicação do art. 16 da Lei Maria da Penha”.
[23] Amini Haddad Campos e Lindinalva Rodrigues Corrêa, p. 566.
[24] Processo nº 2007.09.1.019007-3, do 3º Juizado Especial de Samambaia/DF, e processo nº 200704405509, do Tribunal do Júri de Goiânia.
[25] Organização Mundial de Saúde, Informe Mundial sobre Violência e Saúde, 2002.
[26] Processo nº 2008.09.1.009166-0, 1º Juizado Especial de Samambaia/DF
[27] Noticiado por Amini Haddad Campos e Lindinalva Rodrigues Corrêa, idem, p. 561.
[28] Proc. 2011.01.1.105885-3, 1º Juizado de Violência Doméstica de Brasília.
[29] “causa lesão à proporcionalidade a exigência de um meio quando é claro desde o princípio que se pode recorrer a outro, igualmente eficaz, porém menos lesivo, ou quando se comprova posteriormente que o mesmo objetivo poderia ter sido alcançado com um meio menos restritivo” (José Laurindo de Souza Neto).