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Uma investigação sobre os atrelamentos do juiz ao direito posto

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Por maior precisão que se busque na redação dos textos legais, suas palavras reservam sempre uma margem de porosidade significativa, por meio da qual penetra a atividade interpretativa do juiz.

1. Prolegômenos

Várias são as concepções de justiça, sendo perceptíveis as variações desse conceito, como também evoluiu o conceito de direito. Nessa inesgotável variação, também encontramos tormentosos questionamentos sobre a vinculação do intérprete (juiz, promotor, advogado etc.) à lei. O que deve ele fazer quando se deparar com casos cujos direitos alegados são conflitantes? E quando não há lei para regulamentar o caso? E quando a lei, em um caso prático, possui um conteúdo axiologicamente injusto? Como interpretar uma norma e utilizá-la para embasamento de uma decisão? Essas são algumas das muitas questões que o intérprete e aplicador do direito terá que superar, no momento da subsunção do fato à lei que vinculará sua decisão.


2. A evolução histórica

Da combinação dos pensamentos de Hobbes, Rousseau, e – principalmente – Montesquieu e Beccaria surgiu o ideário racionalista responsável pela identificação do direito com a expressão escrita da norma. Avesso a qualquer forma de arbítrio, o Iluminismo e a concepção do Estado liberal viam na lei a única e suprema garantia da liberdade do cidadão em reação aos desmandos do soberano. A fim de exercer adequadamente esta função garantidora, a lei deveria ser absolutamente clara e maximamente precisa, com vistas a se tornar acessível a todos, os quais nela poderiam, então, pautar sua conduta, definindo e diferenciando de maneira certa os comportamentos proibidos dos permitidos.

Nesta perspectiva liberal-iluminista, a segurança e a certeza do direito em aplicação foram alçadas ao mais alto grau dentre os valores a serem colimados pelo sistema jurídico. Para atingir esse objetivo, era preciso reduzir a quantidade de instâncias produtoras de fontes do direito a apenas uma: a estatal. Tal “enxugamento” está intimamente ligado aos pressupostos de um direito dogmaticamente organizado:

(...) a tendência dos países contemporâneos, bem sucedida ou não, de dogmatizar seu direito, com o Estado arvorando-se progressivamente no monopólio da jurisdição, fixando agrupamentos de normas positivas, pretensamente omnicompreensivas e inequívocas, além de eficazes, com corpo de funcionários específico para decidir o direito etc.[1]

Somente assim seria possível erigir um sistema de normas claro, coerente e coeso. Surgem, assim, os dogmas da completude, da clareza e da coerência, propugnadores de um corpo normativo desprovido de lacunas, antinomias ou ambiguidades. Nesse terreno finca raízes o movimento codificador, surgido na segunda metade do século XVIII, e culminando no bicentenário Código de Napoleão. Com ele, atinge o ápice a ideia da identificação do direito com a lei, única forma de expressão jurídica válida, e assume-se o código como manifestação de um todo normativo sistemático e desprovido de imperfeições.

A referida contribuição desse movimento, isto é, a elevação da produção normativa estatal a condição de única legítima faz parte de um rol de pressupostos sociológicos para modernização do direito, mas não se quer aqui advogar tal corolário como indispensável e necessariamente presente:

não se está aqui a dizer que uma sociedade que apresente tais pressupostos necessariamente modernizará seu direito, mas sim que terá tal possibilidade; e que, sem sua realização prévia, o direito não poderá modernizar-se.[2]

Diante da onipotência do legislador, o juiz via então seu papel ser reduzido ao mínimo possível na aplicação do direito. Reflexo da doutrina da Separação dos Poderes de Montesquieu, que, ciosa da divisão e controle mútuo das funções do Estado, reservava a tarefa de criar o direito exclusivamente ao Poder Legislativo.

Como corolário do postulado de segurança jurídica, ao juiz cabia apenas funcionar como uma bouche de la loi, ser desprovido de vontade, ficando esta a cargo do comando, cuja intangibilidade seria expressa no escrito da norma legislada. Então, assim, a sociedade se veria garantida contra o risco da prática de abusos e arbitrariedades por parte daquele a quem cumpria aplicar a lei.[3] Desse modo, para tais exegetas, uma possível inadequação da lei ao caso só poderia decorrer de erro por incompetência ou por transgressão ética, ambos por parte do operador, nunca do legislador.

Estamos aqui a tratar das consequências de um vencimento do jusnaturalismo pelo juspositivismo. Mas, o que veio antes disso? Quais as razões do conflito e da vitória deste sobre aquele? Em primeiro lugar, há de compreender-se que atingir um estágio dogmaticamente organizado do direito não necessariamente põe uma sociedade num “trilho” de crescente evolução. Em outras palavras, caminhar em direção à modernização de um sistema jurídico ou já tê-la alcançado não implica necessariamente na conclusão ou manutenção desse status, é necessário se desfazer de qualquer possibilidade de escatologismo, ou seja, é imperioso não acreditar numa linearidade histórico-temporal dos acontecimentos:

[...] as etiologias e escatologias permaneceram na visão moderna da histórica, dominada pelos sucessos da ciência e contrária ao humanismo e ao estudo da retórica. Esse cientificismo vê os fatos históricos em termos de causa e efeito, o passado como causa do presente (etiologia) e, por isso mesmo, é possível prever os fins da história, o presente como causa do futuro (escatologia). (...) Pode-se aprender muito com a história, mas não se pode prever o futuro, que não existe.[4]

Pois bem, depois de tal consideração, a respostas para aqueles questionamentos reside no fato de a complexidade social ter sido tão crescente que as ordens pressupostas que regiam os jusnaturalismos – o “divino” no teológico (São Tomás de Aquino) ou a “vontade geral” no de conteúdo variável (Rousseau), dentre muitos outros, como o antropológico – começaram a sobreporem-se umas às outras, causando desconforto e ceticismo, principalmente da parte dos empiristas. Não mais poderia se imputar uma causa a todo direito, pelo menos não mais a uma que se situasse nos domínios da metafísica ou num plano conceitual de difícil manuseio, assim:

Muitos são os problemas que surgem de uma concepção jusnaturalista do direito e neles se concentram as críticas dos positivistas.

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Sobre o jusnaturalismo teológico, por exemplo, argumenta-se que a Divindade não se revela empiricamente e, no fim das contas, seus interpretes humanos decidem; quanto ao antropológico, pelas dificuldades com a “lógica do homem” e os conceitos de racionalidade, fica mais difícil resolver o que é mais racional em um conflito, se há ponderações diferentes; no jusnaturalismo de conteúdo variável, a ambiguidade de um pretenso “sentimento jurídico da comunidade” ou “natureza das coisas” salta aos olhos.[5]

Portanto, a partir do reconhecimento da limitação do jusnaturalismo frente à complexidade atual das relações jurídicas, sobressaiu-se o juspositivismo, o qual tem como principal postulado somente aceitar o direito empiricamente observável como único existente, muito embora este dependa de qual corrente juspositivista se trate.[6]

Nessa tarefa, o juiz estava adstrito à utilização do método subsuntivo, aproximando o texto legal aos fatos por meio de um processo dedutivo-formal, silogístico, do qual resultaria a solução a ser aplicada ao caso concreto: a sentença. Aplicar o direito significava trazer a lei ao caso. Julgava-se evitar, assim, toda forma de interpretação nessa atividade, capaz de desviar, mascarar ou subverter a vontade do legislador, isto é, ainda que rígida, dever-se-ia respeitar o dito pela lei. Dura lex, sed lex.

Em concomitância, no que toca à interpretação dos textos mais ligada ao ato de ler, acreditava-se estarem os dois tipos – atuação do intérprete e clareza do texto – em duas pontas diametralmente opostas do espectro representativo da aplicação do texto legal. In claris cessat interpretatio, ou seja, a escrita clara cessa a atividade interpretativa.

Tais brocardos condensam bem o ponto de vista de um espírito que, se não pautou a criação do art. 4° do Código Napoleônico por Portalis, pelo menos regeu sua interpretação pelos primeiros comentadores deste diploma. Portador do princípio do non liquet, cuja expressão se dava no sentido de que não mais pode o juiz eximir-se de decidir, este dispositivo acabou tomando a forma de regra a impelir o juiz a - posto diante de eventual obscuridade, insuficiência ou silêncio da lei – proceder, de modo a superar a dificuldade, no bojo do próprio sistema jurídico positivo, recorrendo à analogia ou aos princípios gerais do direito.

Esta maneira de interpretar, através dos brocardos interpretativos, consagra-se como metodologia antiga de interpretação, na qual certos pontos de vista - condensados em proposições, ou fórmulas - exprimem maneiras do intérprete, nomeadamente o jurista, portar-se diante de um impasse hermenêutico. Tais formulações podem ser chamadas de topoi, no plural, ou topos, no singular, por também fazerem parte do repertório retórico dos antigos e agirem numa defesa de uma determinada interpretação escolhida, por isso, denominam-se, segundo Tercio Sampaio Ferraz Jr., “prova formal”:

Usam-se, muitas vezes, indiferentemente as palavras argumento e argumentação no sentido de raciocínio no qual se intenta provar uma tese ou refutá-la, persuadindo ou convencendo alguém de sua verdade ou validade. Num sentido estrito, porém, optamos por considerar a argumentação como tipo específico de raciocínio em oposição à demonstração, ou seja, como procedimento típico que corresponde ao raciocínio persuasivo jurídico, reservando a palavra argumento para expressar o que se costuma chamar de prova formal.[7]

Consagravam-se, assim, os dogmas da completude e coerência do ordenamento jurídico. Esse modo de ver a aplicação do direito contextualiza o nascimento de um tímido juspositvismo, com surgimento da Escola da Exegese (École de l´Exégèse), na França do século XIX. Motivados pela codificação, pela doutrina da Separação de Poderes e pressionados pelo regime napoleônico, seus adeptos levaram ao extremo o fetichismo da lei e do método silogístico na atividade judicial.

Marcavam esta escola, assim, o respeito à vontade do legislador e ao princípio da autoridade, o culto ao texto da lei e à concepção exclusivamente estatal do direito, negando-se qualquer relevo jurídico ao direito natural[8]. Pretendia-se, com isso, submeter os tribunais à estrita legalidade, proibindo-os de interpretar, de modo que se vinculassem à observância fiel dos precisos termos da lei na aplicação do direito.

Na mesma época, o advento da Jurisprudência dos Conceitos, na Alemanha, manifesta a adoção de modelo semelhante de interpretação do direito, tendo em Bernhard Windscheid, conhecido como “Príncipe da Dogmática” pelos seus seguidores, um de seus principais representantes. Esta escola tentava encontrar no sistema jurídico, como uma totalidade unitária, perfeita e completa – fruto da onipotência do legislador –, composta de uma pirâmide de conceitos tecnicamente precisos, coordenados hierarquicamente de modo que o conceito inferior se subsumiria ao conteúdo do superior, objetivamente dado. Nesse contexto, ao intérprete, cabia apenas aplicar dedutivamente, segundo parâmetros lógico-formais, este todo concatenado e dotado de sentido unívoco.[9]

Ao contrário de uma visão preconceituosa sobre tal escola, que possa taxá-la como responsável por algum atraso na evolução das ideias jurídicas do ocidente, é grande sua contribuição, posto que tenha mostrado, através dos usos dos dogmas mencionados, justamente sua insuficiência diante dos problemas enfrentados pelo direito[10].

Tal impotência causou dissidências de alguns de seus membros, sendo o mais notável Rudolf V. Jhering, cujas discordâncias com a Jurisprudência dos Conceitos, escola da qual fez parte, mas passou a discordar, fizeram eclodir, a partir de sua obra, a Jurisprudência dos Interesses. Também há muitas outras vertentes do positivismo jurídico, e até outras na tentativa de ressuscitar o jusnaturalismo, as quais brotaram a partir das críticas ao juspositivismo legalista.

Quanto ao debate interno, o positivismo jurídico começa ingênuo, com a Escola da exegese francesa, e sofistica-se nas diversas formas de normativismo, estatalistas ou de tendência sociológica, para desembocar no que se pode chamar realismo positivista, cada tendência reunindo várias escolas que só muito grosseiramente cabem ser reunidas sob mesma denominação.[11]


3. A segurança jurídica

O Princípio da Segurança Jurídica se encontra intensamente relacionado ao Estado Democrático de Direito, podendo ser considerado inerente, essencial e um de seus princípios basilares, os quais lhe dão sustentação. Desta feita, urge ressaltar que o Princípio da Segurança Jurídica possui conexão direta com os direitos fundamentais e ligação com determinados princípios, que dão funcionalidade ao ordenamento jurídico brasileiro, tais como, a irretroatividade da lei, o devido processo legal, o direito adquirido, entre outros, ficando claro, assim, sua máxima importância nos ramos do direito público, principalmente no direito penal.

No âmbito dessa ênfase jurídica, predominantemente de direito público, ao princípio da segurança jurídica, cabe uma análise, feita por Robert Alexy, sobre a irretroatividade da lei penal no tempo[12], quando da sua necessidade de aplicação a um ato considerado legal no passado em que foi realizado, mas gritantemente contra os ditos por ele “princípios racionais de justiça”, os quais são intertemporais. Trazendo à tona a filosofia jurídica de Gustav Radbruch – em sua fase pós-positivista ­–, Alexy defende que uma norma manifestamente violadora do justo não pode ser direito absolutamente, logo o ato condicionado por esta não poderia ser legal em momento algum, podendo a lei penal retroagir.

Segundo Arthur Kaufmann[13]:

Segurança jurídica pode significar duas coisas: 1. segurança através do direito, e, portanto, segurança face ao roubo, homicídio, furto, incumprimento do contrato; 2. segurança do próprio direito, garantia da sua cognoscibilidade, aplicabilidade, efetividade. Apenas existe segurança através do direito, quando o próprio direito é seguro. Nesta segunda forma de segurança jurídica – segurança jurídica em sentido próprio ou estrito – está em causa a eficácia do direito. [...] Um aspecto parcial da segurança jurídica assim entendida é a força de caso julgado da sentença judicial. O fato de a sentença ter força de caso julgado significa que ela não poderá mais ser impugnada através dos recursos ordinários (apelação, revista, agravo). O processo está encerrado, Roma locuta, causa finita.

De certa forma, podemos destacar que, em virtude da dinamicidade do direito na tentativa de acompanhar o desenvolvimento social, cabe aos legisladores buscar incessantemente o aperfeiçoamento do sistema legal do país.

Podemos dizer que a “lei vai variando de sentindo em função de múltiplos fatores, sendo um deles quando se altera a tábua dos valores de aferição da realidade social”[14]. Assim, atualmente, nossos legisladores - com a necessidade de adequar o sistema político-econômico, adotado pelo governo com o direito positivado - lançam determinadas propostas (reformas), inclusive constitucionais, que afetam diretamente a população. Não é de se espantar que a população insurja-se contra medidas que, a priori, prejudiquem seus direitos fundamentais, pressionando o governo para que sejam mantidos seus direitos adquiridos, acarretando um verdadeiro clamor público pela observância dos princípios que norteiam o Estado Democrático.

Nesse sentido, Sérgio Buarque de Holanda, grande historiador e antropólogo brasileiro, já alertava: são

as constituições feitas para não serem cumpridas, as leis existentes para serem violadas, tudo em proveito de indivíduos e oligarquias, são fenômeno corrente em toda a história da América do Sul. É em vão que os políticos imaginam interessar-se mais pelos princípios do que pelos homens: seus próprios atos representam o desmentido flagrante dessa pretensão.[15]

Portanto, fica em voga a discussão da importância e observância do Princípio da Segurança Jurídica, principalmente no meio jurídico, já que é ele quem fornece o respaldo legal às inovações trazidas ao ordenamento. Destarte, podemos afirmar que o Princípio da Segurança Jurídica reveste-se de suma importância, no atual contexto social do nosso país, haja vista que a Constituição Federal diz que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.[16]

Assim, vinculado o juiz à lei, a segurança jurídica trará a “certeza” de decisões mais igualitárias e, desse modo, menos injustas, se levado em consideração todo o ordenamento.

 Outro lado da questão se dá no fato da função do sistema jurídico dentro da sociedade.


4. Crítica ao postulado da vinculação à lei

A corrente de pensamento capitaneada pela Escola da Exegese e pela Jurisprudência dos Conceitos encontra-se hoje reconhecidamente ultrapassada. O ideal do sistema como um corpo de leis completo, claro e coerente, apto a oferecer de antemão soluções simples e objetivas para todos os conflitos possíveis, em prol de uma absoluta segurança jurídica, evidenciou-se não passar de quimera. Mesmo destino teve a visão mecânica do exercício aplicativo do direito por parte do juiz.

A verdade é que o sistema jurídico e sua aplicação à realidade social conflituosa se mostraram dotados de complexidade muito superior àquela que supunham os exegetas ou os conceitualistas(representantes do exacerbado racionalismo legal), e, portanto, impossíveis de serem contidos nos estreitos limites do formalismo e objetividade propugnados àquela época.

Ademais, nas palavras de Sérgio Buarque de Holanda,

 [...] é claro que a necessidade de boa ordem entre os cidadãos e a estabilidade do conjunto social tornaram necessárias a criação de preceitos obrigatórios e de sanções eficazes. [...] Mais tarde essa consideração da estabilidade inspiraria a fabricação de normas abstratas, e ainda aqui foram conveniências importantes que prevaleceram, pois, muitas vezes, é indispensável abstrair da vida para viver e apenas o absolutismo da razão pode pretender que se destitua a vida de todo elemento puramente racional. Em verdade o racionalismo excedeu os seu limites somente quando, ao erigir em regra suprema os conceitos assim arquitetados, separou-os irremediavelmente da vida e criou com eles um sistema lógico, homogêneo, a-histórico.

Nesse erro se aconselharam os políticos e demagogos que chamam atenção frequentemente para as plataformas, os programas, as instituições, como únicas realidades verdadeiramente dignas de respeito. Acreditam sinceramente que da sabedoria e ,sobretudo, da coerência das leis depende diretamente a perfeição dos povos e dos governos.

Foi essa crença, inspirada em parte pelos ideais da Revolução Francesa, que presidiu toda a história das nações ibero-americanas desde que se fizeram independentes. Emancipando-se da tutela das metrópoles européias, cuidaram elas em adotar, como base de suas cartas políticas, os princípios que se achavam então na ordem do dia. As palavras mágicas Liberdade, Igualdade e Fraternidade sofreram a interpretação que pareceu ajustar-se melhor aos nossos velhos padrões patriarcais e coloniais, e as mudanças que inspiraram foram antes de aparato do que de substância.Ainda assim, enganados por essas exterioridades, não hesitamos muitas vezes , em tentar levar às suas consequências radicais alguns daqueles princípios. Não é, pois, de estranhar, se o ponto extremo de impersonalismo democrático fosse encontrar seu terreno de eleição em um país sul-americano. [17]

Por maior precisão que se busque na redação dos textos legais, suas palavras reservam sempre uma margem, maior ou menor, de porosidade significativa, por meio da qual penetra a atividade interpretativa do juiz. Isso advém do fato de que a linguagem jurídica tem sua fonte na linguagem natural, da qual extrai os termos e palavras de que faz uso na ciência que instrumentaliza[18]. É aí que reside o fato de a linguagem do direito “apresenta zonas de penumbra” e é, atual ou potencialmente, vaga e imprecisa.

Afinal,

es una ilusión la de que a cada palabra le corresponde un significado y sólo uno; la gran mayoría de ellas tiene una pluralidad.También es ilusoria La creencia de que el uso de una misma palabra para denotar objetos diversos presupone necesariamente – salvo los casos de mera homonimia – que todos esos objetos tienen una propiedad o un conjunto de propiedades en común, que integran o componen una entidad que la palabra nombra. El hecho de que estamos usando una misma palabra no garantiza que nos estamos refiriendo a la misma cosa.[19]

O texto legislativo, a priori, possui significado apenas potencial; é somente à luz dos fatos emergentes do caso concreto que se realiza a interpretação, produzindo-se a norma. Não há, portanto, como negar que o juiz interprete. A interpretação é inerente a todo processo de aplicação do direito. Tem ela por objeto os textos normativos, que são vertidos em normas pelo trabalho do intérprete.[20]

Pode-se atribuir tal patamar de reconhecimento da atuação do juiz a Hans Kelsen, para quem a ligação entre o “dever-ser” normativo, aquilo que o texto da norma diz, e o “ser” concreto, o fato jurídico em questão, é feita por um ato de vontade, sendo este de responsabilidade, no caso de proferir-se uma sentença, do juiz. O jurista austríaco procurou trazer a filosofia de Immanuel Kant ao mundo do direito, postulando, assim, que para haver uma ligação entre o mundo dos fatos e o das normas, é necessária a atuação da vontade do sujeito:

Um ato, na media em que se expresse em palavras faladas ou escritas, pode até ele próprio dizer algo sobre a sua significação jurídica. Nisto reside uma particularidade do material oferecido ao conhecimento jurídico. (...) Um ato de conduta humana, porém, pode muito bem levar consigo uma autoexplicação jurídica, isto é, uma declaração sobre aqui que juridicamente significa. [...] Assim, o conhecimento que se ocupa do direito encontra já, no próprio material, uma autoexplicação jurídica que toma a dianteira sobre a explicação que ao conhecimento jurídico compete.[21]

Sobre os autores
Eduardo Almeida Pellerin da Silva

1. Formação acadêmica: graduação em Direito pela Faculdade de Direito do Recife (FDR)/Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) (2016) e especialização em Processo Civil pela Faculdade Damásio (2018); 2. Atuação profissional: advogado proprietário do escritório Eduardo Pellerin Advocacia e Consultoria, o qual atuou com advocacia estratégica e consultiva, em Direito Civil, Consumidor e Administrativo (2020-2021), advocacia estratégica e consultiva, em Direito Civil, Administrativo e Processo Civil para Pequeno e Beltrão Advogados (2020-2021), assistente de Desembargador e servidor público federal do TRT6 (2021), assistente de Juíza e analista judiciário do TRT2 (2022-atual); 3. Concursos: aprovado em vários, com destaque para o TRF5, TRT6, TRT1, TRT2 e TRT15; 4. Pesquisa e produção: autor do livro "O ativismo judicial entre a ética da convicção e a ética da responsabilidade: a racionalidade da melhor decisão judicial de controle de políticas públicas diante da ineficiência estatal na concretização de direitos fundamentais", pesquisador bolsista do PIBIC UFPE/CNPq - no Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), linha de pesquisa: "A metafísica da doutrina do Direito em Kant: moral, ética e Direito" (2015-2016), publicou capítulo de livro, doze artigos científicos, em revistas jurídicas especializadas, jornais, anais de eventos e apresentou artigos, em congressos científicos; 5. Ensino: foi monitor das cadeiras de Introdução ao Estudo do Direito I, Direito das Coisas e Processo de Execução; 6. Extensão: Serviço de Apoio Jurídico-Universitário (SAJU) e Pesquisa-Ação em Direito (PAD): As relações entre a ficção jurídica e a ficção literária; 7. Formação complementar: fez vários cursos em Direito, Ciência Política, Português e Oratória; 8. Congressos: participou de mais de uma dezena. Currículo: http://lattes.cnpq.br/9336960491802994

João Amadeus Alves dos Santos

graduando em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE, Centro de Ciências Jurídicas - CCJ, Faculdade de Direito do Recife – FDR.

José Fernando Faustino Silva

graduando em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Eduardo Almeida Pellerin; SANTOS, João Amadeus Alves et al. Uma investigação sobre os atrelamentos do juiz ao direito posto. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3352, 4 set. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22551. Acesso em: 22 nov. 2024.

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