O art. 59 do Código Penal normatiza a fixação da pena na esfera criminal pelo juiz, consistindo na primeira fase (fixação da pena base) do chamado método trifásico.
Referido artigo estipula critérios subjetivos (culpabilidade, antecedentes, conduta social, personalidade do réu, motivos do ilícito) e objetivos (circunstâncias, consequências do crime, comportamento da vítima) para fixação da pena entre o mínimo e máximo cominado.
O presente artigo propõe a aplicação dos critérios estipulados na fixação da pena base na seara penal para balizar a conduta dos aplicadores de sanções administrativas em processos disciplinares administrativos. Neste compasso far-se-á referência ao ilícito no lugar de crime, adaptando-se adrede alguns termos para a esfera administrativa.
Nas argutas lições de Francisco Gaetani:
Dados de 2007 mostram que a atuação do Ministério da Controladoria Geral da União e Transparência resultou em aproximadamente 1.420 demissões de funcionários públicos em cinco anos, indicando a queda de um tabu centenário.
(...)
O funcionalismo público – pelo menos no âmbito do Poder Executivo Federal – vive um momento em que se ensaiam mudanças que foram tentadas, mas que fracassaram no passado. O desafio consiste em consolidar as mudanças em curso, disseminá-las para as instâncias Estaduais e Municipais e torná-las sustentáveis.[1]
A análise exarada no presente artigo vem de encontro à nova postura em face da probidade administrativa, buscando auxiliar nos critérios a serem adotados em face de posturas iníquas e garantindo a aplicação de sanções que atendam a justa medida da reprovabilidade da conduta.
A utilização das circunstâncias previstas no art. 59 do CP devem ser analisadas à época da prática do ilícito, não podendo incidir causas posteriores, exceção feita para atenuar a pena, se relevante no contexto analisado (confissão, reposição do erário, colaboração para esclarecimento do delito, arrependimento posterior e voluntário, reparação dos danos, etc.).
Passemos a analisar cada um dos parâmetros de reprovabilidade previstos no art. 59 do CP, na proposta de aplicação como forma de comensurar a sanção administrativa.
Culpabilidade:
O primeiro critério alçado do art. 59 do CP é a Culpabilidade.
A culpabilidade, como dissemos outrora, em trabalho[2]pretérito, funciona como limite ao poder de punir, atuando como barreira instransponível à sanha preventiva do aplicador da pena.
Esclarece-se: a pena aplicada, também na seara administrativa, possui intenção de consolidar caráter preventivos que evitem que novos agentes incorram no mesmo delito, ou haja reincidência por parte do agente delinquente.
Fala-se em prevenção geral positiva quando se pensa no efeito coletivo da pena em afirmar perante a coletividade que determinado bem (vida, patrimônio, incolumidade e probidade administrativa, etc.) é valioso para o ordenamento jurídico, a ponto de, lesando-os, sujeitar-se o indivíduo a sanções previamente cominadas. Corresponde a afirmação de valores.
Prevenção geral negativa é a intimidação, isto é, a geração de temor aos potenciais delinquentes em face da previsão da sanção em abstrato.
Prevenção especial positiva é a reeducação do agente que praticou o ilícito.
Prevenção especial negativa é a restrição na esfera de liberdade do agente que praticou o ilícito para evitar que volte a praticar ato de igual natureza.
Adaptando para o campo administrativos poderíamos exemplificar: No caso de agente que promover fraudes na lavratura de autos de infração fiscal, ao penalizá-lo têm-se perante todos os fiscais e à sociedade a afirmação de que a probidade administrativa é valiosa ao Poder Público, a intimidação de outros potenciais infratores sob a ameaça de que praticando o ilícito serão sancionados, a reeducação do agente faltoso para que não volte a delinquir, o afastamento (provisório – suspensão ou definitivo – demissão) para evitar novos atos ímprobos.
Quaisquer dessas pretensões preventivas não podem ser satisfeitas além do limite intransponível da culpabilidade, isto é, do grau em concreto de reprovabilidade do agente.
Isto garante que ninguém seja bode expiatório, ou sofra, além de sua culpa, sanções para fins outros, alheios à sua esfera de personalidade.
A máxima da dignidade humana cunhada por Kant vê-se preservada (o homem como um fim em si mesmo, e não meio para outros fins).
Culpabilidade, na fixação da sanção, atua como sinônimo de reprovabilidade, que pode ser máxima, média ou mínima.
Muitas vezes o parâmetro em pauta resta desrespeitado em ambos os sentidos. Não é incomum que a conduta reprovável máxima acabe penalizada brandamente em virtude de influências políticas, sociais ou monetárias do agente. Por outro lado, muitas vezes, a execração pelos meios de comunicação e o clamor público fazem com que a sanção seja aplicada em limite além da reprovabildiade da conduta, como forma de conter os ânimos, transformando o homem em objeto, fazendo água de sua dignidade.
O aplicador do decreto sancionatório deve ter a tranquilidade, serenidade, eticidade e segurança de agir de forma técnica e imparcial, atendendo aos exatos termos da culpabilidade.
A reprovação é feita em face de diversos fatores. A reprovação de funcionário que exerce função em confiança, possui grau de ensino superior, experiência de larga escala dentro da carreira, e já consolidou padrão de vida razoável é mais intensa do que servidor do ensino fundamental, com carências financeiras e sociais, recém ingresso no corpo administrativo. Esclareça-se, ambas as condutas são reprováveis, mas o primeiro tinha maiores condições de conhecer o caráter ilícito dos seus atos e determinar-se de forma contrária ao delito praticado, daí porque sua reprovabilidade (e por via de consequência sua punição) deve ser mais intensa.
Antecedentes:
Também devem ser ponderados os antecedentes.
Antecedentes são fatos passados, da conduta do condenado, dignos de nota, e, pois, merecedores de apreciação na sentença, seja para aprová-la, seja para reprová-la[3].
Há polêmica quanto à admissão de que Processos Disciplinares Administrativos inconclusos pesem contra o indiciado em face do princípio constitucional da presunção de inocência.
Pesem doutas e respeitáveis opiniões contrárias, perfilho a corrente jurisprudencial majoritária que conclui que os processos em curso constituem maus antecedentes. Evidente que eventuais absolvições (exceção feita à questão prescricional ou de natureza processual que não adentre ao mérito) poderão ensejar pedido de revisão da pena aplicada.
Por outro lado, transcorrido 05 anos da sanção aplicada, entendemos que não poderá mais ser ponderada a reincidência a título de maus antecedentes, sob pena de eternizar os efeitos deletérios de uma condenação, o que não é admitido pela nossa ordem constitucional.
Conduta Social:
A conduta social reflete a forma como atua o agente na sociedade, no núcleo familiar, na comunidade.
Sua aplicação é de extrema delicadeza, pois pode transbordar para o direito sancionador do autor do fato e não do fato do autor, fazendo surgir um modelo sancionador seletivo que estigmatiza determinadas categorias como indesejáveis. Em isto ocorrendo estará ferida a ideia democrática de respeito à diversidade e fundada uma pretensão de eugenia social.
Por isto, é necessário dimensionar a conduta social sempre levando em consideração os fatos ilícitos imputados, isto é, seu reflexo direto na conduta social do agente.
A guisa de exemplo, a utilização de fraudes em benefícios previdenciários como forma de galgar destaque político-social em uma comunidade ou arrebanhar “gado eleitoral” é conduta social deletéria a ser pesada em desfavor do agente no juízo de reprovabilidade do ilícito.
Por outro lado, se as fraudes buscam reverter às obtenções ilícitas para associação beneficente de que é patrono, isto pesará na atenuação do juízo de reprovabilidade.
Não pensamos que a constituição familiar e os hábitos particulares possam ser sopesados, ainda que moralmente reprováveis, posto que fora do âmbito de avaliação jurídica que pode ser feita como pressuposto sancionador.
Personalidade do Agente:
O terreno da personalidade do agente, pelos mesmos motivos expostos na sua conduta social, é perigoso. Aqui também só podem ser ponderados fatores extraídos diretamente das condutas ilícitas perpetradas.
Dos fatos praticados pode se extrair maior ou menor sensibilidade ao outro, aos bens tutelados, as consequências do ilícito. No campo penal é possível exemplificar com a diferença entre o que mata com tiros o amante da esposa, extraindo-se personalidade passional, ou o que mata aos poucos, com requintes de crueldade, e depois esquarteja a vítima para dar sumiço ao corpo, mostrando personalidade fria e meticulosa.
O mesmo deve ser apreciado na conduta do ilícito administrativo. Àquele que cede em praticar ato de corrupção passiva após incisivas investidas dos corruptores, tendo negado-se a praticar o ato por diversas vezes antes de sucumbir, por óbvio, revela personalidade menos propensa ao delito contra o erário do que aquele que se antecipa, e assume a iniciativa de corromper.
Motivos da Prática do Ilícito:
Os que praticam o ilícito movidos por sentimentos de cobiça, inveja, vingança, praticam ato de maior reprovabilidade dos que o praticam movidos por sentimentos de conceder melhores condições aos filhos. Ambos são reprováveis, mas a dimensão é mais intensa nas primeiras motivações mencionadas.
Percebe-se que em certos casos é difícil ponderar se o fato molda-se aos motivos da prática do ilícito, ou se devem ser ponderados sob a chancela de conduta social. Natural que assim seja, posto que estes padrões utilizados para formar o juízo de reprovação tendem a se imbricar. Não é por outro motivo que estamos defendendo no presente artigo a possibilidade de ancorar o art. 59 do Código Penal com o fim de minudenciar os parâmetros do art. 128 da Lei 8.112/90, valendo-se da mais larga tradição doutrinária e jurisprudencial no estudo da norma penal.
Circunstâncias e Consequências do Ilícito:
Neste tema avaliam-se as circunstâncias ambientais em que inserido o agente por ocasião da prática do ilícito e as consequências dos seus atos.
No caso de concessão fraudulenta de benefício previdenciário, por exemplo, em que a fraude é perpetrada por advogado e funcionário público, sem que o beneficiário em si tenha consciência do meio ilícito pelo qual seu advogado galgou a concessão do benefício (situação relativamente comum), as consequências podem ser extremamente deletérias, posto que, muitas vezes, a ilicitude vem ao lume quando passado cinco ou seis anos, ocasionando a suspensão do benefício de pessoa que já não está mais no mercado do trabalho e, equivocadamente, deixou de contribuir para obtenção de sua aposentadoria. Pelo ilícito perpetrado pelo funcionário o beneficiário vê-se de uma hora para outra totalmente desamparado e sem condições de reingresso no mercado de trabalho.
Em relação às circunstâncias podemos pensar no caso de médico que atenda pelo SUS e deixe de adotar cautelas de esterilização de instrumentos quando tinha tempo e condições de fazê-lo. Em outro cenário a mesma conduta ocorre em ambiente extremamente conturbado, com superlotação de pacientes e diversos atendimentos emergenciais. Claro que a intensidade de reprovabilidade no primeiro caso é mais percuciente.
Comportamento da Vítima:
Por fim, deve ser ponderada também a postura que adota a vítima. No caso do ilícito administrativo o comportamento da administração na formação do juízo de reprovabilidade é de crucial importância.
Evidente que não cabe sopesar com igual repúdio ato ilícito de agente que integra órgão administrativo que não fornece treinamento aos seus servidores, que não os remunera adequadamente, não incentiva os estudos e aperfeiçoamento dos seus quadros, nem se pauta pela transmissão dos valores da ética pública que lhe são caros, comparado com órgão diverso que adota todas estas posturas.
Conclusão:
As penalidades administrativas previstas na esfera federal encontram-se elencadas no art. 127 da Lei 8.112/90. São elas: advertência, suspensão, demissão, cassação de aposentadoria ou disponibilidade, destituição de cargo em comissão e destituição de função comissionada.
O art. 128 da Lei 8.112/90 possui previsão autônoma de parâmetros sancionatórios, consistentes na natureza e gravidade da infração cometida, dos danos dela derivado, das circunstâncias atenuantes, agravantes e dos antecedentes. Todos são correlacionáveis com os previstos no artigo 59 do Código Penal, conforme já dito alhures, e habilitam-se no juízo lato de reprovabilidade.
A vantagem do emprego auxiliar do art. 59 do Código Penal se mostra clara, posto que mais percuciente a doutrina e jurisprudência formada no seu emprego, permitindo ao agente público se escorar em valiosas lições ao tecer sua convicção e escolher a sanção a ser imposta, fundamentando-a à luz das regras constitucionais vigentes.
Certo é que o legislador não fixou os parâmetros da sanção administrativa de forma tão flexível, posto ter previsto que determinadas condutas proibidas aos servidores importarão em penas específicas, mais branda (advertência) ou mais áspera (demissão, cassação de aposentadoria).
É o caso, por exemplo, das vedações previstas nos incisos I a VIII e XIX do art. 117 da Lei 8112/90, para qual a pena prevista é a de advertência, ou as condutas previstas nos incisos do art. 132 do mesmo diploma normativo, para as quais se previu pena de demissão.
Contudo, a variedade de situações em que pode incidir os servidores públicos, atraindo a necessidade de avaliar-lhe o ilícito, a variação da quantidade de dias de suspensão a ser aplicada, ou mesmo a abertura semântica de determinados termos (insubordinação grave em serviço, corrupção, improbidade administrativa, aplicação irregular de dinheiros públicos, etc.), exige que o aplicador da sanção administrativa profira um juízo de reprovabilidade, para o qual, além do exposto do art. 127 da lei 8.112/90, poderá se valer do art. 59 do Código Penal, bem como da doutrina e jurisprudência produzida sob seus auspícios, adaptadas ao conceito próprio do Direito Sancionador Administrativo.
BILIOGRAFIA
GAETANI, Francisco. E outros. Corrupção – Ensaios e críticas - Funcionalismo Público. Editora UFMG: Belo Horizonte, 2008.
NETO, Claudionor Duarte. O Estatuto do Servidor Público (Lei nº 8.112/90) – à luz da Constituição e da Jurisprudência. 2ª Ed. Rev. e ampl. Atlas: São Paulo, 2011.
PRADO DE OLIVEIRA. Júlio César. A Culpabilidade como Limite ao Funcionalismo Penal. Monografia apresentada como tese de conclusão do curso de Pós-Graduação Latu-Sensu em Ciências Penais para obtenção do grau especialista pela UNISUL. Ribeirão Preto, 2009.
QUEIROZ, Paulo. Direito Penal – parte geral. 5ª edição revista e ampliada. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2009.
Notas
[1] GAETANI, Francisco. E outros. Corrupção – Ensaios e críticas - Funcionalismo Público. Editora UFMG: Belo Horizonte, 2008. p.485/493.
[2] PRADO DE OLIVEIRA. Júlio César. A Culpabilidade como Limite ao Funcionalismo Penal. Monografia apresentada como tese de conclusão do curso de Pós-Graduação Latu-Sensu em Ciências Penais para obtenção do grau especialista pela UNISUL. Ribeirão Preto, 2009.
[3] QUEIROZ, Paulo. Direito Penal – parte geral. 5ª edição revista e ampliada. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2009. p. 344.