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A disposição dos sujeitos processuais em audiências criminais.

Para além da mera (mu)dança das cadeiras

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Agenda 29/01/2013 às 11:54

3. A judicialização do debate: a retórica do conflito de leis.  

 Até hoje, na maioria das salas de audiência, há um tablado de cerca de vinte centímetros de altura, em cima do qual se posicionavam o juiz, que preside a audiência; imediatamente à sua direita, o membro do Ministério Público, que representa o órgão de acusação; e o servidor auxiliar da justiça, que empresta apoio operacional ao ato, sentado à esquerda do juiz. Embaixo, em um segundo plano, de um lado da mesa retangular, há cadeiras para as partes e seus advogados, e, do outro, cadeira para a testemunha e, eventualmente, para o advogado que a acompanhe.

Em 07 de outubro de 2009, foi publicada a Lei Complementar nº 132, que, nos termos de sua própria ementa, alterou dispositivos da Lei Orgânica da Defensoria Pública  ( a LC nº 80/94). Um das modificações implementadas por essa nova lei complementar ocorreu no art. 4º da Lei Complementar nº80/94, cujo parágrafo sétimo passou a ter a seguinte redação: aos membros da Defensoria Pública é garantido sentar-se no mesmo plano do Ministério Público. Por seu turno, a Lei Complementar 75/93, que dispõe sobre a organização, as atribuições e o estatuto do Ministério Público da União, prevê, em seu art. 18, I, a, que são prerrogativas institucionais dos membros do Ministério Público da União sentar-se no mesmo plano e imediatamente à direita dos juízes singulares ou presidentes dos órgãos judiciários perante os quais oficiem.

Diante da mudança na legislação, a Defensoria Pública da União instou o Juiz Titular da 7ª Vara Federal Criminal da Seção Judiciária de São Paulo a rever o layout da sala de audiência, garantindo-se aos Defensores a prerrogativa de se sentarem no mesmo plano do MPF. O Juiz titular daquele órgão judiciário, por conseguinte, editou a Portaria nº 41/2010, por meio da qual determinou a retirada do tablado, de forma a assegurar que o Magistrado, o membro do Ministério Púbico, o Defensor e os Advogados tenham assento no mesmo plano. Com essa mudança, o membro do Ministério Público passou a ter assento mais próximo das partes. Essa Portaria foi submetida à Corregedoria do TRF da 3ª Região, que, contudo, remeteu o caso para o Conselho de Justiça Federal por entender que a matéria reclamava tratamento uniforme em toda a Justiça Federal do Brasil.

Inconformado com a alteração, o Ministério Público Federal impetrou mandado de segurança contra o ato do Juiz da 7ª Vara, por entender ser este ilegal em face da violação à prerrogativa insculpida no art. 18 da Lei Complementar nº 75/93 (garantia de sentar-se imediatamente à direita do juiz). A relatora do mandado de segurança impetrado no Tribunal Regional Federal da 3ª Região, a Desembargadora Federal Cecília Marcondes, deferiu a liminar para garantir ao membro do Ministério Público assento à direita do Juiz.

O Juiz Federal Ali Mazloum, titular da 7ª Vara Federal de São Paulo, propôs, então, uma Reclamação perante o Supremo Tribunal Federal[20] sob o fundamento de preservação da competência da Corte que, segundo ele, estaria sendo usurpada pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região ao julgar o referido mandado de segurança que versaria matéria de interesse direto de todos os membros da magistratura. Em resumo, o reclamante argumentou que os juízes têm o poder-dever de zelar pelo respeito à igualdade processual entre as partes, o que, no processo penal, estaria também espelhado na eqüidistância física, na sala de audiências, e procedimental (isonomia no tratamento processual) em relação às partes. Para o Reclamante, o disposto no art. 4º, §7º, da Lei Complementar 80/94 estaria em consonância com o princípio da paridade de armas e com o princípio do devido processo legal previsto o art. 5º, LV, da Constituição. Nos termos da própria Reclamação, “É óbvio que não haveria isonomia, igualdade entre acusação e defesa, caso o Parquet continuasse colado ao juiz, inquirindo testemunhas do alto do estrado e do centro da sala”[21].

Requereu, pois, o Reclamante, liminarmente, a suspensão da decisão proferida nos autos do mandado de segurança, a fim de que a Portaria por ele editada voltasse a produzir efeitos e, em seguida, pugnou para que fosse avocado o mandamus, sendo definitivamente cassada a decisão liminar proferida pelo TRF 3ª Região, e determinado o imediato cumprimento da Lei Orgânica da Defensoria. Suscitou também, desde logo, a inconstitucionalidade “do artigo 18, I, ‘a’, da LC 75/93, na interpretação emprestada pela i. juíza do TRF, de que a norma manda colocar o acusador ao lado, ombro a ombro, colado ao julgador durante as audiências, pelos motivos acima alinhavados”.

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Formularam pedidos para acompanhar o processo a Defensoria Pública da União, a Associação Nacional dos Defensores Públicos, o Movimento de Defesa da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil, esta última porque, segundo seu entendimento, a mudança visa conferir igualdade de tratamento à defesa criminal de um modo geral e não apenas à Defensoria Pública.

Em 05 de março de 2011, a Ministra Carmen Lúcia, relatora da mencionada Reclamação, indeferiu o pedido de liminar por não constatar o periculum in mora e por entender que era duvidosa a competência do Supremo Tribunal Federal para apreciação da matéria. A fundamentação do decisum não foi além dos seguintes termos:

Portanto, além de não haver no caso perigo de demora comprovado, pois o assento do representante do Ministério Público em posição privilegiada é costume praticado e aceito há muito tempo, o deferimento da medida liminar é impedido pela dúvida quanto ao próprio cabimento da reclamação, questão a ser definida, como antes anotado, pelo Plenário deste Supremo Tribunal Federal. Pelo exposto, indefiro a medida liminar (art. 14, inc. II, da Lei n. 8.038/1990)[22].

O processo está parado desde outubro de 2012 e ainda aguarda julgamento pelo Plenário da Corte.

A discussão em torno dos dispositivos que asseguram aos membros do Ministério Público assento à direita do Juiz (art. 18, I, da LC nº 75/93) e aos membros da Defensoria Pública assento no mesmo plano do Ministério Público (art. 4º, §7º, da LC nº 80/94) também está sendo objeto de apreciação no âmbito do Conselho Nacional de Justiça. Nesse caso, a demanda foi iniciada a partir de consulta formulada pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal, ao identificar que alguns Juízes do Distrito Federal já estariam adotando alterações no layout da sala de audiências[23]. Na consulta, o TJDFT registrou que, de um lado, em procedimento administrativo interno, havia adotado, para a demanda atual, “o modelo de cátedra que contou com a adesão do maior número de magistrados”, isto é, o modelo tradicional, com membros do Ministério Público e Juízes sentados lado a lado sobre um tablado; por outro lado, alguns juízes tomaram a iniciativa de colocar todos os participantes das audiências no mesmo plano, medida esta que, nas palavras do próprio Presidente do TJDFT, “parecem respeitar as disposições legais que disciplinam a matéria”. Consignou-se ainda nessa consulta questionamentos jurídicos que, de fato, são essenciais para o deslinde do litígio e que foram assim sintetizados:

Cabe acrescentar que o tema envolve, inclusive, a possibilidade de distinção entre a atuação do Ministério Público como parte e como fiscal da lei. Vale dizer, existem posicionamentos no sentido de que a incidência da prerrogativa legal (assento no mesmo plano e à direito do juiz) ocorre apenas quando o parquet oficia como custos legis[24].

Ainda no que se refere à atuação dos Juízes do Distrito Federal, o Ministério Público do Distrito Federal e Território protocolou também no Conselho Nacional de Justiça requerimento de Procedimento de Controle Administrativo contra os atos dos Juízes Ben-Hur Viza e Fábio Martins de Lima que, com a modificação da disposição da sala de audiências dos seus respectivos juízos, estariam infringindo prerrogativa do Ministério Público. Para o Ministério Público, a modificação implementada pelos magistrados afrontaria a tradição consagrada nas instâncias judiciais e poderia provocar a vulneração da figura do parquet, com a eventual falta de impessoalidade, com a possibilidade de intimidação do agente público e com a descaracterização da instituição.

Até lá, em sede de controle administrativo, verifico que há riscos que devem ser evitados e que aconselham a cautela solicitada. 

O primeiro aspecto é que as situações aqui apontadas em relação ao Juizado Especial do Núcleo Bandeirantes e Juizado Especial Criminal e de Violência Doméstica de Planaltina-DF podem se repetir, ensejando diversas outras medidas como esta em análise, com desnecessária mobilização dos magistrados antes que a questão esteja devidamente assentada.

Neste caso, aliás, três outras situações emergiriam, se mantido o formato atual, de acordo com o dispositivo legal invocado: (i) a realização de despesas a  serem suportadas pelo erário – tanto aquelas decorrentes das mudanças feitas nas salas  de audiências como aquelas necessárias para desfazer o modelo -; (ii) a perturbação da  rotina forense para a realização de obras nas salas de audiências; (iii) as situações de embate e desgaste entre Ministério Público e Tribunais de Justiça em todo o país[25].

Também nesse caso a matéria está pendente de julgamento pelo colegiado do CNJ. Como se pretende demonstrar a seguir, a discussão a respeito da organização da sala de audiências em processos de matéria criminal transcende muito a mera (mu)dança de cadeiras, especialmente por refletir de modo bastante simbólico o sistema processual adotado no país.


4. O reflexo da triangulação do processo na disposição e na separação dos lugares na sala de audiências.

Nesse quadrante, as salas em que se realizam audiências criminais, sem dúvida, não só pelo aspecto simbólico, mas especialmente pelo aspecto prático operacional, a seguir comentado, refletem, como visto, o sistema escolhido, representando, no posicionamento dos sujeitos processuais, primordialmente, os princípios do sistema inquisitivo (unidade entre órgão de acusação e de julgamento) ou os do acusatório (eqüidistância do juiz em relação à acusação e ao acusado e o da imparcialidade do órgão julgador). Como visto, em um sistema acusatório, no qual não se podem confundir as figuras da acusação e do juiz, as cadeiras reservadas ao MP e ao Juiz, postas lado a lado, ombro a ombro, em posição de igual superioridade em relação aos demais participantes da cena processual, só podem ser entendidas como equivocadas.

É fácil constatar nas salas de audiência da Justiça Federal, a dúvida de acusados, leigos, e, até mesmo estudantes de Direito, a respeito de quem é o Juiz, já que se encontram o Magistrado e o membro do Ministério Público sentados lado a lado, no alto de um mesmo tablado. É comum também na práxis forense perceber conversas e consultas intempestivas e impertinentes, quando não decisões combinadas, isto é, colegiadas entre acusação e julgador! A postura de enaltecimento das instituições responsáveis pela acusação e pelo julgamento também são típicas do sistema inquisitivo. O rebaixamento do réu ou a elevação dessas instituições transmite de forma bastante eficaz o discurso de quem é o objeto da persecução penal ou de qual o papel coadjuvante (ou mesmo cenográfico) a ser exercido pelo acusado (e por seu Defensor) no teatro da ação penal. 

Com efeito, a questão da disposição dos lugares destinados aos sujeitos processuais é por todos percebida como reflexo da forma como simbolicamente se configura (ou como pretendemos configurar) o processo penal. Em verdade, não deveria haver qualquer plano superior ou ondulações na sala de audiência. O juiz (assim como o MP e a Defensoria) não está acima de ninguém (ou visto de outra forma, o réu não está abaixo de qualquer outro sujeito). Em um processo penal efetivamente democrático, os sujeitos processuais devem ser compreendidos como seres humanos igualmente pensantes, titulares de direitos e obrigações, cujas distintas funções não podem servir de fundamento para discriminações desprovidas de fundamento jurídico. O legislador infraconstitucional ao garantir que o representante do MP se sente no mesmo plano e imediatamente ao lado direito do juiz quis apenas evitar que entre esses dois sujeitos algum outro fosse colocado (não pode, pois, haver entre MP e Juiz um auxiliar da Justiça, por exemplo). Contudo, para que se respeite a Constituição, interpretando a lei conforme ela e não o inverso, ao se garantir esse tratamento à acusação, é mister que se lhe estenda também à defesa.

Para que a solução do conflito seja justa, isto é, seja resultado de uma equilibrada dialética argumentativa, é imperioso que haja uma igualdade de tratamento entre as partes, devendo ser-lhes oferecida paridade de condições para contribuir no convencimento do juiz.  Nesse sentido, Scarance Fernandes destaca que a paridade de condições pressupõe um tratamento isonômico e não apenas formalmente igualitário[26]. São, pois, admitidas diferenciações desde que sejam elas para beneficiar a parte mais fraca no processo, que, no caso do processo penal, será sempre presumidamente a defesa. Nas palavras do autor:

Quando se afirma que as duas partes devem ter tratamento paritário, isso não exclui a possibilidade de, em determinadas situações, dar-se a uma delas tratamento especial para compensar eventuais desigualdades, suprindo-se o desnível da parte inferiorizada a fim de, justamente, resguardar a paridade de armas.

O tratamento diferenciado no processo penal entre acusação e defesa, em favor desta, está justificado por alguns princípios relevantes: in dubio pro reo; favor rei.

A acusação normalmente está afeta a órgão oficial. Tem este todo o aparelhamento estatal montado para ampará-lo. O acusado tem de contar somente com as suas próprias forças e o auxílio de seu advogado[27].

É válido, ainda, destacar que essa configuração da sala de audiências em processos criminais já é observada, desde muito, nos tribunais do júri, na maior parte das Justiças estaduais, e na própria Justiça Militar da União, que, a propósito, tem assegurado à defesa tratamento absolutamente paritário em relação à acusação, sem que isso implique qualquer desmerecimento às nobres funções desempenhadas pelos combativos representantes do Ministério Público Militar. 

Do ponto de vista operacional, desde que observada a idéia de triangulação, qualquer mesa serviria, não sendo irrazoável imaginar até mesmo uma mesa redonda. De toda sorte, considerando o mobiliário que já se encontra à disposição da Justiça Federal, como as mesas de audiência normalmente são em forma de T, bastaria que de um lado (direito do juiz) ficasse o MP, no centro, após o balcão, o juiz e a defesa do outro lado (esquerdo do juiz), próxima do acusado, todos no mesmo plano. Mesmo nos Tribunais Regionais Federais ou nos Tribunais Superiores, quando se trate de matéria criminal, não observamos qualquer constrangimento no deslocamento dos representantes do Ministério Público para púlpito ou bancada eqüidistante dos Desembargadores e Ministros e no mesmo plano da defesa.

Note-se que, mesmo quando se pretende atribuir ao Ministério Público a função de custos legis, o que como visto, no processo penal não se admite, nem mesmo nas ações penais privadas, o argumento comumente utilizado é o que menciona a sua possibilidade de atuar em favor da defesa e não de atuar no lugar do juiz. Assim, mesmo que se pretenda manter o Ministério Público na função híbrida e contraditória de pedir em favor da acusação e da defesa, deveria dispor-se na sala de audiência a sua cadeira de forma a que ele se sente em lugar mais próximo ao da defesa e não ao do Juiz.

Sobre o autor
André Carneiro Leão

É Mestre em Direito Penal pela Universidade Federal de Pernambuco-UFPE. Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal. É Professor da Faculdade Damas de Instrução Cristã. Professor convidado do Instituto de Magistrados de Pernambuco-IMP. É Defensor Público Federal. Titular do 9ª Ofício Criminal da DPU/PE. Ex-chefe da Defensoria Pública da União em Pernambuco. Vice-Diretor da Escola Superior da Defensoria Pública da União (ESDPU). Coordenador Estadual do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais-IBCCRIM. Foi professor universitário de Direito Penal e Processual Penal da Faculdade de Direito de Olinda (AESO/BARROS MELO). Foi professor de cursos para concursos. Foi Professor e Coordenador da disciplina Direito Previdenciário da Escola Superior da Advocacia de Pernambuco (ESA/PE). Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco-UFPE.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEÃO, André Carneiro. A disposição dos sujeitos processuais em audiências criminais.: Para além da mera (mu)dança das cadeiras. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3499, 29 jan. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23572. Acesso em: 5 nov. 2024.

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