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O estupro enquanto crime de gênero e suas implicações na prática jurídica

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3. O DISCURSO SOBRE O CRIME: do seio social aos processos criminais

Como visto acima, há um denominador comum em toda a história do estupro: a coisificação da mulher vítima do crime. Praticamente em todas as sociedades conhecidas, a ocorrência do delito era analisada sob fundamentos que sempre trataram a dignidade e a liberdade sexual da mulher de forma subsidiária.

Mesmo que se admita a existência de avanços legais, em nível nacional e mundial, no que tange à necessidade de assegurar o desenvolvimento em plenitude do ser humano, o ordenamento jurídico brasileiro ainda carrega muitas normas de cunho excludente para com as minorias de maneira geral. O reflexo mais forte do preconceito no que se refere às mulheres especificamente se encontra no âmbito penal, com leis e um sistema de justiça criminal que ostentam antigas discriminações, como o controle da sexualidade e do corpo feminino e suas conseqüências para os crimes de natureza sexual.

3.1 .A construção sociocultural das imagens da vítima e do agressor

Desde sempre, as construções socioculturais de gênero minam o tratamento do crime em comento de forma extremamente eficaz. Na percepção da maioria das pessoas, o estupro não é analisado como violador da dignidade sexual das mulheres, senão como consequência natural a um determinado comportamento. In casu, a conduta feminina é vista como verdadeira determinante para a ocorrência ou não do estupro.

Conforme sintetizam Vilhena e Zamora (2007, p. 313):

Uma explicação que procura defender os homens e transferir a responsabilidade às mulheres é a de que elas consentiram no ataque, sem se defender de verdade ou até pediram por ele, usando roupas curtas, apertadas, perfume, cabelo e maquiagem chamativos. Outra explicação é a de que as mulheres gostam mesmo é de homens de verdade e de que é impossível distinguir entre um não verdadeiro e um não fingido, que, na verdade, pretende excitar e estimular um ataque mais vigoroso.

Sobre a tão falada permissividade da vítima, com maestria leciona Eleonora Zicari Costa de Brito (2004, p. 172):

Por consentimento entende-se não a vontade da mulher, mas sua maneira de ser social. Afinal, as mulheres, nesses discursos, não têm vontade própria quanto a sua sexualidade. Ou bem se preparam para cumprir o "dever conjugal", garantindo-se como mulheres "honestas", ou seguem o caminho da sexualidade irrestrita e irrecusável a todos. Nesse sentido, o que esses discursos instauram é a justificativa do estupro como punição social para a "má conduta" da mulher "devassa".

A investigação social sobre a contribuição da vítima para a ocorrência do crime está edificada no controle da sexualidade feminina. Na verdade, todos os modelos de conduta apontados como tipicamente femininos são explicados culturalmente como a melhor forma de evitar maiores males. Para as massas, se a mulher é cuidadosa e não se desvia das regras comportamentais do seio social, certamente terá menores chances de se tornar vítima de violência sexual. Implica dizer que, para o senso comum, normalmente a mulher só é estuprada se der algum motivo, o qual geralmente está imbricado com sua moral sexual. Como bem lembram Vilhena e Zamora (2004, p. 117), ignora-se, por exemplo, com tal argumento, que mulheres de hábito de freira ou de burca também são violentadas.

O discurso desigual que transfere à mulher vítima do crime de estupro a responsabilidade pela violência sofrida acarreta verdadeira tolerância social para com as agressões sexuais. A mídia, a religião, a política, o sistema de justiça criminal, entre outras instituições, costumam banalizar os efeitos do crime, fazendo com que a própria vítima incuta em si o sentimento de culpa, o que costuma engordar as chamadas cifras negras do crime. Em sabendo do pesado julgamento social sobre sua conduta, a vítima, em enorme parte dos casos, assume a sensação de vergonha por ter sido estuprada, preferindo resguardar-se de todo o desgaste que uma possível denúncia traria.

Com efeito, esse argumento ganha concretude ao se analisar brevemente a relação sexual forçada no âmbito doméstico. Afinal, quem pode negar o caráter de invisibilidade dado ao crime que ocorre no espaço familiar? A cultura de estupro existente na sociedade é perpassada desde cedo entre todos. As meninas aprendem desde criança que não devem “provocar” atos dessa espécie. São ensinadas a zelar pelo seu corpo e por sua moral sexual de forma a evitar as “correções” advindas com a violência. Torna-se completamente compreensível, por exemplo, saber de crianças e adolescentes que foram estupradas durante anos por pessoas bastante próximas, que só denunciaram muito tempo depois e que, ainda assim, se corroem por acreditar que, de alguma forma, atraíram a ação do estuprador.

Júnia Vilhena e Maria Helena Zamora (2004, p. 118, grifo nosso) citam exatamente o estado de paralisia que atinge a vítima de estupro na seara privada, motivado justamente pelo medo ser julgada e condenada por uma possível culpa.

O estupro costuma ser reduzido ao privado e essa esfera, como sabemos, tende a ser sacralizada e despolitizada. Para alguns, a denúncia amplia a vergonha da vítima e da família devendo, portanto, ser evitada, como veremos mais adiante. Para outros, o estupro, simplesmente, não é da nossa conta. Guardadas na segurança do lar, as “nossas” mulheres sabem se comportar e estão a salvo. Engano. Também o lar, com seus sentimentos privatizantes pode gerar segredos e silêncios destruidores. As mulheres e meninas são freqüentemente estupradas dentro de casa por seus familiares, incluindo o próprio pai. Incluem-se, entre prováveis agressores, alguém a quem elas conhecem e, muitas vezes, a quem amam e em quem confiam: o namorado, o marido, o tio, o primo, o chefe, o amigo, o colega, o professor, o sacerdote, o vizinho... O estupro – ou sua tentativa – , partindo daquele

que era familiar, transformado de súbito em estranho, diferente e hostil, pode ser paralisante para a vítima, pela surpresa dolorosa da introdução da violência, mesclada pela supersexualização de uma situação não sexual ou onde a consumação do ato não estava em questão. Tal ataque pode assumir um tal caráter de traição, que tira a possibilidade de qualquer reação. O medo e em seu extremo, o horror, é paralisante. A impossibilidade de defender-se ou uma defesa considerada fraca são acusações lançadas contra as vítimas, assim como julgamentos e suposições sobre seu caráter moral, seus costumes e seu passado sexual.

O fato da vítima esconder o crime e vestir a camisa da culpa pelo ato é o reflexo mais forte das assimetrias de gênero. É, certamente, o efeito mais desejado pela ordem excludente que predomina na sociedade. Manter a mulher como vítima em potencial, como objeto de domínio masculino, é a intenção de uma maioria que pretende a perpetuação de valores machistas, eliminando a autonomia da mulher para lidar com seu próprio corpo.

3.2  A postura do operador do Direito e a duplicação da violência

A reprodução do discurso desigual e estereotipado envolvendo a temática de gênero não se materializa tão-somente nos meios informais de controle social, encontrando eco, essencialmente, nas instituições responsáveis por assegurar o bem-estar geral. Aqui se situa o Direito, que deveria ser um caminho para alcançar uma sociedade mais justa e igualitária, mas que, em grande parte dos casos, atua como um agente perpetuador das desigualdades, traduzindo o sentimento social machista e pouco preocupado com a garantia dos direitos humanos das mulheres.

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Verifica-se comumente a formação de um discurso jurídico que não corresponde aos anseios das partes mais necessitadas da sociedade. Conforme salienta Streck (2002 apud SILVA, 2010), “o senso comum que domina o imaginário jurídico é construído a partir de um discurso que é vivido pelos usuários como um discurso universal, natural, óbvio”, havendo, dessa maneira, a predominância de conceitos estereotipados e discriminatórios. Assim ocorre com as variadas formas de violência de gênero e, primordialmente, com a violência sexual contra a mulher.

O tratamento dado ao estupro pelos operadores do Direito, em toda a persecução penal estatal, demonstra que a percepção do referido crime como corretivo aos desvios de conduta femininos ainda prepondera, em detrimento da visualização dos bens jurídicos realmente atingidos. Em realidade, quando da ocorrência de crimes dessa natureza, os órgãos de investigação e julgamento procuram verificar até onde a ofendida foi responsável ou contribuiu para a conduta delitiva do agente, para só então cogitar a punição merecida pelo ofensor.

Após a realização de pesquisa de campo na Delegacia da Mulher em Campinas, Nadai (2010, p. 4) concluiu que as representações de gênero permeiam as instituições de polícia de forma inconteste, refletindo em vários aspectos do seu cotidiano. Primeiramente, salientou o sentimento de inferioridade incutido nos profissionais da área no que tange à importância das delegacias especializadas em violência contra a mulher, consubstanciado na crença de que crimes dessa natureza carregam um menor potencial lesivo, merecendo, dessa maneira, uma menor atenção da sociedade. Nas palavras da pesquisadora, “é como se o plano de carreira legítimo dentro da corporação policial tivesse que passar por um tipo de violência tida como socialmente mais relevante e perigosa do que aquelas que chegam a DDM”.

Por fim, Nadai (2010, p. 6-9) assevera que:

Visivelmente, certas convenções de gênero e sexualidade passam a ser utilizadas pela polícia para construir o crime em complementaridade às tipificações legais. Marcados, não só por gênero e sexualidade, tais padrões de investigação se sobrepõem também a outros marcadores que constroem a vítima, em relação à sua idade, classe, violência sofrida e a relação com o autor. [...] As escrivãs, ao enquadrarem criminalmente o estupro, fazem-no colocando em prática certas convenções que produzem uma, entre muitas, distinções descritivas. Ou seja, deixam subentendido nos documentos que há Estupros e estupros, ou porque não, Vítimas e vítimas. Conseqüentemente, suas práticas terminam por convencionar certos padrões narrativos, contextuais e contingentes, que diferenciam crimes semelhantes.

A recepção nas delegacias especializadas geralmente é repleta de autoridades policiais que questionam o vestuário da vítima de estupro, o porquê de andar num local ermo sem companhia, a ausência de tentativas efetivas de pedir ajuda, entre outros tantos fatores que, segundo o conhecido discurso estereotipado, contribuem para a ação criminosa.

Da mesma forma se dá no âmbito judicial. O discurso que envolve os processos que têm por objeto crimes de natureza sexual, principalmente o delito de estupro, demonstra que toda a educação machista recebida desde as fases iniciais da vida não se irradia somente nas relações familiares e privadas, extrapolando, inclusive, as barreiras do exercício profissional. A forma como os operadores do Direito tocam os processos de estupro denota que a desigualdade de gênero, revelada principalmente no controle sobre o corpo da mulher e sua sexualidade, se impregna nos poderes instituídos, sendo, na verdade, por estes legitimada.

Nesse diapasão, Figueiredo (2002) explica que as decisões judiciais nos casos do delito tipificado no artigo 213 do Código Penal Brasileiro funcionam como mecanismo disciplinar para a mulher que não internaliza as práticas de auto-supervisão e auto-correção impostas para seu comportamento em sociedade. A autora explica, com brilhantismo:

De acordo com Foucault, diferentes discursos transformaram áreas como a sexualidade e o crime em objetos do saber científico e em alvos para práticas institucionais. Aplicando este ponto de vista aos julgamentos de estupro, podemos interpretar as práticas discursivas de juízes, por exemplo, como ferramentas de uma complexa pedagogia do comportamento, construída e posta em prática em parte pelo discurso jurídico. Esta pedagogia visa a supervisionar, disciplinar, educar e controlar a forma como homens e mulheres se comportam social e sexualmente. Desta perspectiva, um julgamento e uma decisão judicial não representam apenas a avaliação jurídica e a punição de um indivíduo isolado. O discurso de advogados, promotores e juízes representa também uma avaliação sociocultural do comportamento humano, o uso pedagógico de exemplos, e uma tentativa de recompor a normalidade e restaurar o pacto social.

A busca pela verdade nos processos de estupro corriqueiramente acarreta uma inversão da lógica jurídica dos processos criminais, uma vez que à observação sobre a vida social e sexual dos sujeitos do delito é dada muito maior importância do que à análise do próprio fato criminoso e de todas as suas circunstâncias. Conforme ressalta Andrade (2003, p. 98-99):

O julgamento de um crime sexual – inclusive e especialmente o estupro – não é uma arena onde se procede ao reconhecimento de uma violência e violação contra a liberdade sexual feminina nem tampouco se julga um homem pelo seu ato. Trata-se de uma arena onde se julgam, simultaneamente, confrontados numa fortíssima correlação de forças, a pessoa do autor e da vítima: o seu comportamento, a sua vida pregressa. E onde está em jogo, para a mulher, a sua inteira "reputação sexual’ que é – ao lado do status familiar – uma variável tão decisiva para o reconhecimento da vitimização sexual feminina quanto a variável status social o é para a criminalização masculina.

Assim, vê-se que o julgamento da moral sexual da ofendida costuma ser determinante para aferição da real culpabilidade do agente no caso concreto. Em realidade, o fato de a mulher ser um sujeito historicamente coisificado e dominado à luz dessa ordem cultural de supremacia masculina e modelos de condutas predeterminados faz com que todo o sistema funcione a partir do esclarecimento de questões tidas como fundamentais para que se possa processar e julgar o crime de estupro – por exemplo: como a vítima se comportou, se provocou a atitude delitiva, se tem uma reputação ilibada no seio social, etc. Quer dizer que, por mais típico, ilícito e culpável que seja o fato de estuprar alguém, a crueldade desse delito será dirimida caso fique demonstrado que a vítima não se enquadrava nos padrões impostos socialmente.

Para a vitimologia, entretanto, essa verificação sobre o comportamento da vítima não se trata da mera reprodução de preconceitos e estereótipos, senão da necessária observação de um aspecto que pode alterar toda a percepção do evento criminoso, a qual está preceituada, inclusive, como circunstância judicial, no artigo 59 do Código Penal Brasileiro. Segundo esse campo do saber, a análise da pessoa do sujeito passivo do crime de estupro se faz fundamental para que haja um justo julgamento sobre o fato delituoso, uma vez que há uma predominância de vítimas tidas como provocadoras quando da ocorrência de infrações dessa natureza.

Nas palavras de Greco (2004, p. 104), “o enfoque quanto aos crimes sexuais consiste em verificar se a vítima criou aquele risco para ela com sua própria conduta, ou se ela se colocou em uma situação que resultou um crime sexual”. Desse discurso, observa-se que há uma eminente justificação para o ato criminoso quando levado a efeito contra mulheres que violam o que é moralmente aceito. Para Souza (1998, p. 23), pode-se falar, por exemplo, em uma postura convidativa da mulher “volúvel e leviana que freqüenta, em trajes provocantes, lugares de reputação duvidosa, bebendo e confraternizando, de forma liberada”.

Malgrado a importância dos estudos de vitimologia para o âmbito penal, resta inegável que essa atuação do sistema de justiça criminal tem como conseqüência a duplicação da violência em face da vítima de estupro, visto que, além de toda a agressão física e psicológica sofrida quando da consumação do crime, o sujeito passivo ainda é obrigado a prestar contas de seu comportamento, na tentativa de provar sua idoneidade moral e sexual e, destarte, sua condição de verdadeira vítima do fato delitivo.

Dissertando sobre tal realidade, Andrade (2004, p. 75) argumenta que essa violência institucional decorre da ineficiência do sistema de justiça penal para a proteção da mulher vítima de estupro, o qual “não previne novas violências, não escuta os distintos interesses das vítimas, não contribui para a compreensão da própria violência sexual e a gestão do conflito e, muito menos, para a transformação das relações de gênero”.

Com efeito, o funcionamento de toda a persecução penal estatal corrobora a ideia de sua atuação como instrumento de controle da autonomia e da sexualidade feminina, muito mais do que como mecanismo hábil para assegurar a dignidade da mulher. O sistema de justiça criminal, assim, funciona como o que a autora denomina de continuum, uma complementação e legitimação aos meios informais de controle. Para Andrade (2004, p. 75):

Isto porque se trata de um subsistema de controle social, seletivo e desigual, tanto de homens como de mulheres e porque é, ele próprio, um sistema de violência institucional, que exerce seu poder e seu impacto também sobre as vítimas. E, ao incidir sobre a vítima mulher a sua complexa fenomenologia de controle social, que representa, por sua vez, a culminação de um processo de controle que certamente inicia na família, o SJC duplica, ao invés de proteger, a vitimação feminina, pois além da violência sexual representada por diversas condutas masculinas ( estupro, atentado violento ao pudor, etc.), a mulher torna-se vítima da violência institucional plurifacetada do sistema, que expressa e reproduz, por sua vez, dois grandes tipos de violência estrutural da sociedade: a violência das relações sociais capitalistas (a desigualdade de classe) e a violência das relações sociais patriarcais (traduzidas na desigualdade de gênero) recriando os estereótipos inerentes a estas duas formas de desigualdade, o que é particularmente visível no campo da violência sexual. A passagem da vítima mulher ao longo do controle social formal acionado pelo sistema de justiça criminal implica, nesta perspectiva, vivenciar toda uma cultura da discriminação, da humilhação e da estereotipia.

No mesmo sentido, Brito (2004, p. 168) assevera:

A questão fundamental, ao que parece, é o fato do sistema penal, por sua própria construção generizada, ser incapaz de proteger e contemplar os agravos e violências contra as mulheres, observadas sempre pela lente moral que esquadrinha seus corpos e condutas segundo o paradigma da "verdadeira mulher", acabando por vitimizá-las duplamente.

O fato é que a natureza de ciência social impõe ao Direito a finalidade de dirimir as injustiças produzidas no cotidiano das pessoas, visando à obtenção do tão falado bem comum. Infelizmente, porém, a formação e a atuação da maioria dos profissionais das ciências jurídicas revelam uma vontade quase imperceptível de alteração no status quo, padecendo da ausência da necessária reflexão sobre as desigualdades presentes no seio social

3.3. Análise de alguns julgados

As discriminações para com a mulher, advindas das representações de gênero, ainda encontram bastante espaço nas ementas de decisões das Cortes do país. Como já demonstrado, nos processos de estupro é dada muito maior importância à verificação da vida e dos perfis dos envolvidos no delito do que ao fato delitivo em si.

Assim, como dito, é comum ocorrer uma inversão no ônus da prova nos processos de estupro, haja vista que a vítima passa a ser a responsável por provar sua idoneidade moral e sexual, bem como que seu comportamento não acarretou a ação agressora.

Devido à natureza dos crimes sexuais, que geralmente são cometidos sem a presença de testemunhas, a palavra da vítima assume extrema importância, a qual, aliada aos demais elementos constantes dos autos, é tida como principal meio de prova. Vê-se, destarte, a corriqueira a decisão de processos que absolvem ou condenam a partir da credibilidade ou não que a conduta da vítima enseja no seio social.

Nesse diapasão, pode-se dizer que quando não há menção expressa sobre o mau comportamento da vítima para justificar a absolvição do réu, o preconceito é verificado a contrariu sensu, quando há condenação do acusado baseada principalmente na idoneidade moral e sexual da vítima.

Como exemplo, em recente julgado, na apelação criminal ACR 12868 RN 2009.001286-8[1], o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte confirmou a condenação do juízo de primeiro grau de um acusado de estupro, uma vez que não havia dúvidas sobre a honestidade da vítima. Segundo a referida Corte, “considerada a idade da ofendida, bem como não tendo restado comprovado tratar-se de pessoa promíscua, sendo inclusive virgem quando do delito, há de prevalecer a presunção de violência” (grifo nosso).

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, analisando a apelação RS Nº 70045425295, decidiu pela absolvição de um acusado de estuprar uma menor, haja vista a existência de experiência sexual da vítima, circunstância que, na opinião dos insignes magistrados, afastava a materialidade do crime:

APELAÇÃO CRIMINAL. crime contra a liberdade sexual. estupro. AUSÊNCIA DE VIOLÊNCIA. EXPERIÊNCIA SEXUAL ANTERIOR DA VÍTIMA. SENTENÇA ABSOLUTÓRIA. MANUTENÇÃO.

A prova dos autos mostrou-se insuficiente para embasar, com a certeza necessária, um veredicto condenatório. Percebe-se que o réu mantinha um relacionamento amoroso com a vítima, que afirmou ter se apaixonado pelo acusado, com a prática consentida de sexo. Não há nos autos qualquer indício de violência por parte do acusado. Ademais, a ofendida não era mais virgem quando começou a se relacionar com o réu, do que se conclui que já possuía experiência sexual, não se podendo afirmar que o réu a tenha seduzido. Não sendo possível, no processo penal, a condenação com base apenas em indícios e suposições, impõe-se a manutenção da sentença absolutória, com fundamento no art. 386, VII, do CPP. APELO DESPROVIDO. (ACR Nº 70045425295, Sétima Câmara Criminal, TJRS, Rel. Des. Carlos Alberto Etcheverry, Publicado em 26/04/2012)

Assunção (2009, p. 240-282) trouxe alguns exemplos extraídos de decisões judiciais país afora, a saber:

Observo, também, que o apelante, contanto à época do suposto crime, 41 anos de idade, jamais cometera, até então, qualquer conduta delituosa, sendo esta a única acusação que sofreu na vida. A vítima, vinte anos mais nova, nasceu aqui mesmo, em “A.”, tem instrução primária e admitiu experiência sexual anterior, com o namorado, com quem costumava manter relações sexuais usando camisinha, conforme consta de depoimento colhido no inquérito (fls. 20/21). Pode-se afirmar, portanto, que não se trata de uma jovem ingênua e despreparada para a vida. Afirmou, contudo, que antes do evento, mesmo sofrendo assédio constante por parte do apelante, às escondidas da patroa, nada relatou a esta.

As declarações de S.D.C, às fl. 112, atestam que a ofendida usava roupas impróprias e sedutoras, namorava vários rapazes ao mesmo tempo e sempre relatava o que fazia às outras pessoas da vizinhança. Outra questão de fundo é que o depoimento da vítima remonta inconsistente, não sendo comprovado que a relação sexual foi realizada sem seu consentimento.

Com estas considerações, da mesma maneira que o Ministério Público concluiu sobre uma possível tentativa de estupro; outra versão perfeitamente defensável e lógica é a de que a vítima que não é tão jovem, hoje com 23 anos de idade, poderia querer uma saída honrosa, já que foi surpreendida em companhia de um homem casado, no entrar da noite, no cerrado. Com estas considerações, nego provimento ao recurso, por entender, também, a prova insuficiente para uma condenação. É como voto.

O que se observa dos casos acima apontados é que a existência de dúvida sobre a ocorrência do fato criminoso se baseia no quão confiável é a palavra da vítima e esta confiabilidade, por sua vez, se edifica normalmente sobre seu conhecimento e experiência sexual.

Nas palavras de Ratton (2007, p. 9):

O “tipo de escolha” pela mulher a ser violentada pode atenuar ou agravar a crime em si, podemos imaginar que existem tipos de mulheres que não devem ser tocadas, ou ainda molestadas. A violência sexual praticada contra virgens, mães, esposas etc. não será tolerada. A saída que tem o agressor é a de tentar culpabilizar a própria vítima por seu ato. Neste sentido ele fará de tudo para denegrir a sua imagem perante aqueles que o julgam.

Verifica-se, ainda, que os tribunais pátrios costumam desconfiar bastante da palavra da ofendida no que se refere ao consentimento desta para o ato sexual, alegando que a negativa e as tentativas de fuga da vítima devem ser efetivas. É o conhecido discurso de que “o ‘não’ deve significar realmente ‘não’” e que se faz imprescindível que a mulher atue de forma incisiva para se livrar da agressão. Assim entendeu a Corte de Justiça do Estado do Paraná:

CONTRA A LIBERDADE SEXUAL - ESTUPRO - NECESSIDADE DE DISSENSO EFETIVO DA VÍTIMA - INOCORRÊNCIA - SENTENÇA ABSOLUTÓRIA CONFIRMADA - RECURSO DESPROVIDO.

1- "Para a tipificação do estupro exige a lei que a vítima, efetivamente, com vontade incisiva e adversa, oponha-se ao ato sexual. Seu dissenso ao mesmo há de ser enérgico, resistindo, com toda sua força, ao atentado à sua liberdade sexual. Não se satisfaz, pois, com uma oposição meramente simbólica, um não querer sem maior rebeldia." (RT 535/287). (ACR 1595957 PR. Terceira Câmara Criminal. TJPR. Rel. Des. Renato Naves Barcellos. Publicado em 25/05/2001)

Essa visão sobre a necessária resistência inequívoca da vítima é lastreada, inclusive, nas lições de renomados doutrinadores, a exemplo Rogério Greco (2010, p. 464), cujo entendimento é o que se segue:

Para que seja efetivamente considerado o dissenso, temos que discernir quando a recusa da vítima ao ato sexual importa em manifestação autentica de sua vontade, de quando momentaneamente, faz parte do “jogo de sedução”, por, muitas vezes, o “não” deve ser entendido como “sim”.

Além dos casos já mostrados, a jurisprudência brasileira ficou nacionalmente conhecida por algumas esdrúxulas decisões sobre casos de estupro, denotando a percepção machista sobre a construção da imagem da mulher pelo Direito Penal e por todo o sistema de justiça criminal, conforme se vê no exemplo trazido por Andrade (apud STRECK, 2004):

A vítima é analfabeta e se mostrou simplória nos contatos com este juízo... Não encontro nos autos provas suficientes para condenar o acusado Celso Alberto, embora reconheça não seja elemento sociável nem de boa vida pregressa. Entretanto, pelos outros delitos a ele imputados, está respondendo Processo. Finalizando, custa a crer que o acusado, um rapaz ainda jovem e casado, tenha querido manter relações sexuais com a vítima, uma mulher de cor e sem qualquer atrativo sexual para um homem. Ante o exposto e com fundamento no art. 386, VI do Código de Processo Penal, absolvo o acusado Celso Alberto da imputação a ele feita na denúncia.

Outra mostra clara de como a Justiça brasileira já pecou na análise processual do delito de estupro foi o famoso caso do tratamento do estupro como cortesia, oriundo do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, cujo texto foi colacionado por Costa (2012, p. 14), in verbis:

Será justo, então, o réu Fernando Cortez, primário, trabalhador, sofrer pena enorme e ter a sua vida estragada por causa de um fato sem consequências, oriundo de uma falsa virgem? Afinal de contas, esta vítima, amorosa com outros rapazes, vai continuar a sê-lo. Com Cortez, assediou-o até se entregar (fls.) e o que, em retribuição lhe fez Cortez, uma cortesia...

Com efeito, boa parte das decisões judiciais nos processos de estupro costuma reafirmar a dinâmica da dominação masculina no seio social, reproduzindo os discursos que restringem a autonomia e a liberdade sexual da mulher. Os operadores do Direito que atuam nas instruções criminais muitas vezes apelam para a presença ou não de “deslizes” sociais das vítimas, para fundamentar suas teses. Nesse sentido, conclui Costa (2012, p. 16, grifo do autor):

Eis o que as célebres autoras Pimentel, Schritzmeyer & Pandjiarjian afirmam revelar a ideologia patriarcal machista em relação às mulheres, verdadeira violência de gênero, perpetrada por vários (as) operadores (as) do Direito, que mais do que seguir o princípio clássico da doutrina jurídico-penal - in dubio pro reo - valem-se precipuamente da normativa social segundo seus próprios e subjetivos valores, que definiram magnificamente como: in dubio pro stereotypo.

Sobre as autoras
Rebeca Napoleão de Araújo Lima

Advogada em Juazeiro do Norte (CE).

Marina Torres

Advogada. Mestranda em Serviço Social, na linha de Gênero, Diversidade e Relações de Poder. Especialista em Direito Administrativo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Rebeca Napoleão Araújo; TORRES, Marina. O estupro enquanto crime de gênero e suas implicações na prática jurídica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3734, 21 set. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25354. Acesso em: 18 mai. 2024.

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