Artigo Destaque dos editores

O estupro enquanto crime de gênero e suas implicações na prática jurídica

Exibindo página 3 de 3
Leia nesta página:

CONCLUSÃO

Ab initio, se faz fundamental destacar que a elaboração deste trabalho ratificou a força que as assimetrias de gênero ainda emanam no seio social, nos mais diversos aspectos da vida de homens e mulheres. Inconteste, também, que uma das nefastas consequências trazidas com as representações dos papéis masculinos e femininos em sociedade é o delito de estupro, o qual restringe a liberdade sexual da mulher, impondo-a a dominação sobre seu corpo e a anulação de sua vontade.

Como efeito, a mulher ofendida no crime em tela sempre ocupou uma posição subsidiária, de inferioridade, uma vez que, na maior parte do tempo, sequer foi vista como verdadeira vítima do fato delitivo. Como se observou, as diversas sociedades que conheceram e trataram do estupro fundamentaram de maneiras distintas a necessidade de punição para o delito, escanteando, na esmagadora maioria das vezes, a necessidade de proteção da dignidade sexual da mulher.

Nesse diapasão, no decorrer dos séculos a busca pela verdade quando da ocorrência do crime de estupro passava inexoravelmente pela análise da vida dos sujeitos envolvidos no crime, especialmente sobre o comportamento sexual da ofendida no seio social, que, na percepção da maioria das pessoas, poderia, por si só, ter provocado a ação delitiva.

Como demonstrado, esse tipo de prática era uma constante não apenas nos meios informais de controle, mas, pelo contrário, se irradiava pelos sistemas de justiça criminal de inúmeras sociedades. Isso aconteceu durante bastante tempo e, conforme visto, em que pesem os avanços no tratamento do crime, no Brasil, os operadores do Direito atuaram e ainda atuam reproduzindo estereótipos, levando para os tribunais os discursos preconceituosos sobre o delito de estupro.

Da análise dos julgados, viu-se que a conclusão sobre a culpabilidade do agente criminoso passa pelo exame minucioso da vida da vítima e do agressor, sendo certo que a credibilidade dada à palavra da vítima dependerá primordialmente de seu comportamento sexual. De fato, os tribunais brasileiros costumam ser muito mais vigorosos quando da aplicação de sanções ao estuprador de moças recatadas, “honestas” e sem qualquer experiência sexual, do que aos agressores de mulheres cuja moral é reprovável aos olhos da sociedade.

Assim, inegável o fato de que o Direito Penal constrói a imagem feminina reproduzindo todo o controle cultural sobre seu corpo e sua sexualidade. Se a mulher se enquadra nos padrões que a sociedade impõe como corretos e moralmente aceitos, ela merecerá uma proteção ampla e irrestrita do sistema de justiça criminal. Todavia, quando desviante, à ofendida restará o ônus de provar sua condição de verdadeira vítima da infração, com todo um sistema trabalhando contra suas alegações.

Nesse sentido, impõe-se ver o estupro como crime de gênero porque perpetua as desigualdades, ressaltando que homens e mulheres devem se comportar de maneiras distintas em sociedade: aqueles, de forma sexualmente livre e dominante; estas, de maneira resguardada e prudente, dentro dos limites impostos socialmente à vivência da sua sexualidade, a fim de evitar agressões provocadas por possíveis desvios de conduta.

Cediço, então, que há uma premente necessidade de se buscar novos meios de dirimir os efeitos desse tratamento assimétrico, no anseio de se construir uma sociedade menos violenta. Um desses instrumentos pode e deve ser o Direito, que precisa atuar da maneira que realmente esperada, combatendo as injustiças existentes no seio social. Imprescindível, destarte, a preparação acadêmica de forma valorativa e a constante capacitação dos operadores da área, com a real preocupação em diminuir os abismos entre as prerrogativas destinadas ao homem e à mulher.

Os profissionais do Direito precisam, assim, atuar de maneira humanística, próximos à realidade social, que é cheia de injustiças e dores, na maioria das vezes provocadas pela falta de reflexão sobre os discursos culturalmente reproduzidos. 

Não há como se admitir o desenvolvimento pleno e pacifico de uma sociedade que determina desigualmente os lugares de cada um, punindo de maneira tão voraz aqueles que se afastam do caminho imposto. Se é sabido que as desigualdades não serão acabadas por completo, pelo menos nesse instante, é certo também que elas não serão diminuídas sem uma participação enérgica de todos nesse processo, principalmente daqueles responsáveis por emitir decisões que modificam destinos, como é o caso dos que fazem parte do mundo jurídico.


REFERÊNCIAS

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A soberania patriarcal: o sistema de Justiça Criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher. Boletim IBCCRIM. São Paulo: v. 11, n. 137, abr. 2004, p. 71-102.

______. Domesticação da violência doméstica: politizando o espaço privado com a positividade constitucional. Mesa redonda sobre a criminalização da violência doméstica. Brasília: Cfêmea, 1997.

______. Sistema Penal Máximo X Cidadania Mínima: Códigos da violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.

ARDAILLON, Danielle; DEBERT, Guita Frin. Quando a vítima é mulher: Análise de julgamentos de crimes de estupro, espancamento e homicídio. Brasília: Conselho Nacional dos Direitos da Mulher.

ASSUNÇÃO, Any Ávila. A tutela judicial da violência de gênero: do fato social negado ao ato jurídico visualizado. Brasília: UNB, 2009. Disponível em <http://repositorio.bce.unb.br/handle/10482/9161?mode=full> Acesso em: 15 out. 2012.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

ÁVILA, Maria Betânia. Direitos Sexuais e Reprodutivos: desafios para as políticas de saúde. In Caderno de Saúde Pública. Rio de Janeiro: 19(Sup. 2): S465-S469, 2003

BARATTA, Alessandro. O paradigma do gênero: da questão criminal à questão humana. In: CAMPOS, Carmen Hein de (Org.). Criminologia e Feminismo. Porto Alegre: Sulina, 1999.

BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo: fatos e mitos. 4ª Ed. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1970.

BRASIL: SPM/PR; SEPPIR/PR; MEC. GÊNERO E DIVERSIDADE NA ESCOLA: formação de professoras/es em Gênero, Orientação Sexual e Relações Étnico-Raciais. Livro de conteúdo. Versão 2009. Rio de Janeiro: CEPESC; Brasília: SPM, 2009.

BRITO, E. Z. C. Justiça e relações de gênero. In: Textos de História, vol. 12, n. ½, 2004, p. 167-189.

COSTA, L. R. D. Maria da Penha: a lei discriminada pelo operador jurídico. In: Revista Jurídica Ministério Público do Tocantins. Palmas: Cesaf, ano 5, n. 8, 2012, p. 11-34.

FIGUEIREDO, D. C. Decisões legais em casos de estupro como parte de uma pedagogia do comportamento. Revista Linguagem em (Dis)curso, vol. 2, n. 2, jan-jul, 2002. Disponível em <http://portaldeperiodicos.unisul.br/index.php/Linguagem_Discurso/article/view/223>. Acesso em: 15 ago. 2012.

GOLDENBERG, Mirian. Gênero e Corpo na Cultura Brasileira. In Psic. Clin. Rio de Janeiro: vol. 17, n.2, p. 65-80, 2005.

GRECO, Alessandra O. Pedro. A autocolocação da vítima em risco. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. 

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal – Parte Especial, volume III. 7ª. Ed. Niterói: Impetus, 2010.

GROSSI, PK. Violência contra a mulher: implicações para os profissionais de saúde. In: Lopes MJU, Meyer DEI, Waldow VR. Gênero e Saúde. Porto Alegre (RS): Artes Médicas; 1996.

JAGGAR, Alison M.; BORDO, Susan R. (org.) Gênero, Corpo, Conhecimento. 1.ª Ed. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 1997.

LEAL, João José; LEAL, Rodrigo José. Novo tipo penal de estupro. Formas típicas qualificadas e concurso de crimes. Jus Navigandi, Teresina, ano 14, n. 2258, 6 set. 2009. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/13462>. Acesso em: 17 set. 2012

LINS, Regina Navarro; BRAGA, Flávio. O livro de ouro do sexo. Rio de Janeiro: Quorum Editora, 2009.

LOURO, Guacira Lopes. O Corpo Educado – pedagogias da sexualidade. 2ª. Ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.

MACHADO, Lia Zanotta. Perspectivas em Confronto: Relações de Gênero ou Patriarcado Contemporâneo. Brasília: Série Antropológica, V. 284, 2000, p. 1- 19.

MANFRÃO, Caroline C. Estupro: prática jurídica e relações de gênero. Brasília: UNB, 2009. Disponível em <repositorio.uniceub.br/jspui/bitstream/123456789/.../20155560.pdf> Acesso em: 9 jul. 2012.

NADAI, L. Convencionando práticas ou praticando convenções? Gênero e sexualidade na tipificação do estupro a partir da Delegacia da Mulher em Campinas. In: SIMPÓSIO FAZENDO GÊNERO, 9, 2010, Florianópolis. Anais eletrônicos. Florianópolis: UFSC, 2010. Disponível em <www.fazendogenero.ufsc.br/9/simposio/view?ID_SIMPOSIO=74>. Acesso em: 9 jul. 2012.

PANDJIARJIAN, Valéria. Os estereótipos de gênero nos processos judiciais e a violência contra a mulher na legislação. In: Advocacia pro bono em defesa da mulher vítima de violência. São Paulo: Unicamp; Imprensa Oficial de São Paulo, 2002.

RATTON, Marcela Z. Uma Abordagem Criminológica do Estupro.  2007. Disponível em: <conpedi.org/manaus/arquivos/anais/recife/ciencias_criminais_marcela_zamboni_ratton.pdf> Acesso em: 10 jul. 2012.

SCOTT, Joan W. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade, vol. 16, n. 2, Porto Alegre, jul./dez. 1990

SILVA, Danielle Martins. A palavra da vítima no crime de estupro e a tutela penal da dignidade sexual sob o paradigma de gênero. Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2703, 25 nov. 2010. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/17897>. Acesso em: 4 jul. 2012.

SOUZA, José Guilherme de. Vitimologia e violência nos crimes sexuais. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1998.

STRECK, L.L. O imaginário dos juristas e a violência contra a mulher: da necessidade (urgente) de uma crítica da razão cínica em Terrae Brasilis. Estudos Jurídicos, Vol. 37, nº 100, maio/agosto. 2004.

SWAIN, Tania Navarro. Pequenas introdução aos feminismos. In: O Direito achado na rua: introdução crítica ao direito das mulheres. v. 5. Brasília: CEAD, FUB, 2011 – p. 87-92.

TORRÃO FILHO, Amílcar. Uma questão de gênero: onde o masculino e o feminino se cruzam. In: Cadernos Pagu,  Campinas: n. 24, p. 127-152, jan/jun 2005.

VIGARELLO, Georges. História do estupro: violência sexual nos séculos XVI-XX. Tradução de: Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998

VILHENA, Junia de. ZAMORA, Maria Helena. Além do ato: os transbordamentos do estupro.  In Revista Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: n. 12, p. 115-130, jan/abril 2004.

ZAMORA, Maria Helena. A burca – notas para a compreensão do estupro. Revista Vivência, n. 32, 2007, p. 311-320.


Nota

[1] ACR 12868 RN 2009.001286-8, Câmara Criminal, Rel. Des. Judite Nunes, Publicado em 17/12/2010. Disponível em <www.tjrn.jus.br>. Acesso em: 15 out. 2012.

Assuntos relacionados
Sobre as autoras
Rebeca Napoleão de Araújo Lima

Advogada em Juazeiro do Norte (CE).

Marina Torres

Advogada. Mestranda em Serviço Social, na linha de Gênero, Diversidade e Relações de Poder. Especialista em Direito Administrativo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Rebeca Napoleão Araújo ; TORRES, Marina. O estupro enquanto crime de gênero e suas implicações na prática jurídica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3734, 21 set. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25354. Acesso em: 26 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos