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Liberdade provisória:

das distorções no campo da fiança criminal a serem corrigidas pelo intérprete

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Agenda 08/01/2014 às 07:08

3. DAS DISTORÇÕES NO CAMPO DA FIANÇA CRIMINAL A SEREM CORRIGIDAS PELO INTÉRPRETE

Guilherme de Sousa Nucci (2011b p. 9) entende que a Lei nº 12.403/2011 trouxe mais vantagens do que pontos negativos, eis que ela sistematizou que a prisão é uma contingência excepcional que deve ser regrada e substancialmente motivada. Realmente, a lei objetivou tal juízo, porém parece ter permanecido como uma espécie de prisão ex-lege ou automática o lapso entre a fiança arbitrada pelo Delegado de Polícia e a chegada dos autos do flagrante às mãos do magistrado, eis que aquele que não tiver condições econômicas de arcar com o valor afiançado permanecerá segregado. Ainda que muitos considerem que essa segregação não seja tão extensiva ou duradoura, ela é desmotivada, desarrazoada, fere o princípio da igualdade, da presunção de inocência e atenta contra o princípio maior, da dignidade da pessoa humana. 

Nesse ponto, parece que a assistência ao autor desabonado economicamente e preso em flagrante é estéril, eis que de fato a atuação de uma defesa pública imediata não está sendo tão contígua assim. É notório como quão sobrecarregada e abarrotada está essa assistência pública gratuita e que ela não tem o necessário contato direto com todos os autores de crimes em flagrante, para receber deles dados mais concretos sobre os fatos, vida e situação econômica do preso, de modo a levar a documentação o mais rápido possível à autoridade competente, a fim de que aquela o libere com base no art. 350 do CPP.

Parece mais desarrazoada ainda a possibilidade de o indivíduo ter sua liberdade provisória sem fiança pelo artigo 350 do CPP negada quando os autos do flagrante chegam ao judiciário e, mesmo diante da lógica de o acusado não ter procedido ao imediato pagamento da fiança policial por escassez econômica, se mantém a segregação sem se usar de outras medidas cautelares catalogadas no art. 319 do CPP. Conforme se verifica nos seguintes julgados do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios:

CONCESSÃO DE LIBERDADE MEDIANTE FIANÇA - MISERABILIDADE. 1ª Turma Criminal - No julgamento de habeas corpus impetrado por acusado pelo crime de furto tentado com o objetivo de obter liberdade provisória sem o pagamento de fiança, a Turma denegou a ordem. Segundo a Relatoria, o réu foi preso em flagrante ao tentar subtrair veículo com o auxílio de chave de fenda. Foi relatada, ainda, a alegação da defesa de que o paciente não teria condições de arcar com a fiança arbitrada por ser carroceiro e dormir na rua. Nesse contexto, o Desembargador esclareceu que, na última reforma processual penal, a fiança foi revitalizada como forma de garantir a contribuição do acusado com a instrução do processo, simbolizando verdadeiro compromisso com o Estado-Juiz. Com efeito, afirmou que a exclusão do pagamento em razão da simples alegação de pobreza esvaziaria o instituto, tornando-o letra morta. Na hipótese, o Magistrado afirmou que, como o paciente possuía condenação definitiva por outro delito de furto, seria temerário colocá-lo em liberdade sem qualquer prova de sua intenção em cooperar com a justiça, pois a contumácia delitiva demonstra seu total menosprezo quanto à possibilidade da repreensão estatal. Da mesma forma, os Julgadores reconheceram que, além da inexistência de prova sobre a miserabilidade do acusado, o valor da fiança não extrapolou os limites da razoabilidade e proporcionalidade. Desse modo, com o intuito de preservar a instrução criminal, o Colegiado manteve o arbitramento da fiança.( TJDFT, 20110020150753HBC, Rel. Des. George Lopes Leite. Data do Julgamento 25/08/2011, 2011,p.93)

 LIBERDADE PROVISÓRIA - PAGAMENTO DE FIANÇA. 2ª Turma Criminal - A Turma concedeu em parte habeas corpus em favor de réu preso em flagrante pela prática dos crimes de falsificação de documento público, falsa identidade, resistência e desacato. Segundo a Relatoria, o indiciado alegou a ocorrência de constrangimento ilegal, haja vista ter o magistrado de primeiro grau condicionado a liberdade provisória ao pagamento de fiança, impedindo, assim, a efetivação da sua liberdade por não ter condições de arcar com o valor fixado. Com efeito, o Desembargador lembrou que, com a inovação trazida pela Lei 12.403/2011, o juiz pode, ao receber o auto de prisão em flagrante, fundamentadamente, converter a prisão em flagrante em preventiva ou conceder liberdade provisória com ou sem fiança (art. 310 do CPP). Nesse contexto, o Julgador explicou que não restou demonstrada nos autos a insuficiência econômica do paciente, o que inviabilizaria a dispensa da fiança, no entanto, verificou-se que o valor fixado - quinze salários mínimos - exacerbou o mínimo previsto no art. 325 do CPP. Desse modo, o Colegiado concedeu parcialmente a ordem para reduzir em 2/3 o valor da fiança arbitrada. (TJDFT, 20110020160323HBC, Rel. Des. Roberval Casemiro Belinati. Data do Julgamento 01/09/2011 , p. 132) (INFORMATIVO DE JURISPRUDÊNCIA 221 TJDFT, 2011)

Foi visto que a última reforma no CPP trouxe novas faixas de fixação da fiança, utilizando como base o salário mínimo, bem como permitiu que o juiz diminuísse ou aumentasse os valores, conforme a situação econômica do réu.  A argumentação de que a fiança tem por fim garantir a colaboração do indivíduo com a justiça não tem cabimento por si só, pois bastaria arbitrar a fiança e aquele que tem boas condições financeiras poderia pagá-la e sumir dos olhos da justiça, eis que para ele dinheiro não é problema.

A pobreza alegada na maioria dos casos é regra e é verdadeira, pois sabemos que a maior parte da população carcerária tem um histórico de más condições econômicas. Ademais, não é razoável se fazer uma presunção que não beneficia ao réu, já que sabemos o porquê de tanta criminalidade, extremamente influenciada pela miserabilidade dos brasileiros. Logo, a presunção de que o réu “não é de todo desprovido economicamente” deveria ser alterada para o contrário, inclusive porque se está diante de privação da liberdade antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória.

Alegar a pobreza e não pagar a fiança não equivale ao arbitramento de alto valor de fiança a um rico e este pagá-la. Observe que o art. 319 do CPP elencou outras medidas cautelares diversas da prisão, e que não se constituem somente na retenção de valores como garantia pessoal do acusado para estreitar os laços na colaboração do processo. A injustiça se instaura a partir do momento em que o abastado pode imediatamente obter a liberdade, que é pressuposto e garantia, enquanto que aquele que tem poucas posses tem forma diferenciada no trato do seu direito de liberdade diante de medida cautelar imposta de forma automatizada. 

  A dificuldade do pobre em pagar a fiança é tão grande quanto à de também se fazer prova de sua miserabilidade, pois um defensor público não tem o contato direto com seus clientes, como se costuma ter o advogado particular com seu representado. Isso não é culpa do defensor, mas sim do alto número de pessoas que demanda a Defensoria, para as quais faltam condições de se prezar pelo advogado privado. Assim, o sistema de defesa pública se torna mais lento, com menos ligação ao seu representado, não obtendo maiores informações deste e consequentemente o deixando por mais tempo na prisão antes de uma condenação em definitivo.

A questão a ser discutida e analisada é se há uma diferença de tratamento entre o rico preso em flagrante e o pobre preso em flagrante. Uma apreciação sobre a diferença entre os dois em idênticas condições, flagrância em que caiba a concessão de fiança policial, indica, ao menos perfunctoriamente, que a questão é de sorte do primeiro e azar do segundo. As medidas cautelares devem ser aplicadas pelo judiciário de forma individualizada. Após a realização de todos os procedimentos do flagrante, a segregação pela fiança policial daquele indivíduo pobre não se faz mais constitucional, eis que não detém análise e fundamentação pela autoridade judiciária competente, a qual também somente poderia fixar a prisão cautelar como última medida. 

3.1. Princípios constitucionais penais e o valor da liberdade na Constituição

O conjunto de princípios constitucionais penais e processuais penais deve seguir a luz do princípio maior, qual seja o da dignidade humana (NUCCI, 2011b p. 13). O próprio artigo de direitos fundamentais na Constituição Federal decreta ser inviolável o direito à liberdade, que por sua vez é flexibilizado quando diante da necessidade e legalidade na aplicação de uma prisão cautelar. A liberdade individual é a regra, e a prisão cautelar medida de exceção de última razão.

O poder judiciário é importante instrumento para controlar a legalidade da prisão provisória, por isso mesmo o art. 5º da CF determina: “que ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei” e ainda, “a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicadas imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada”. A própria prisão em flagrante, especialmente com o advento da Lei nº 12.403/2011, sofre controle de legalidade pelo judiciário para que, se ilegal, seja imediatamente relaxada, art. 5º, LXV, da CF, ou, se realmente necessária a “cautelarização” do acusado, que se aplique primeiro a medida cautelar mais adequada, art. 319 do CPP.

As novas medidas cautelares objetivam resolver o problema da superlotação dos presídios, especificamente dos que abrigam presos provisórios. Aury Lopez Jr. colabora ao dizer que “o sistema carcerário está em colapso, quase 220 mil são presos cautelares. Esse é o estado de emergência que pressionou mais essa reforma processual” (LOPES JR., 2011b p. 54, grifo nosso). Mas para tanto, o aplicador da lei deve dar oportunidade para essas medidas arroladas no art. 319 do CPP, testando a eficácia dessas e romper com a cultura inquisitorial-encarcerizadora (LOPES JR., 2011b p. 55) dominante. Quanto à fiança na forma de medida cautelar, ela parece mais adequada para crimes econômicos financeiros e tributários, nos quais, conforme opina Nucci (2011b p. 86), o acusado tem, em regra, maior poder aquisitivo e a fiança funcionaria como melhor medida alternativa à prisão preventiva, para garantia da ordem econômica.

Para que todo o processo penal siga os estreitos caminhos da legislação, deve-se analisar em nível constitucional o cenário em que o processo penal se insere, ou seja, os princípios normatizadores da justiça criminal. Nesse mesmo panorama, a prisão cautelar também está cravada. Marca as medidas cautelares a proeminência dos princípios da dignidade da pessoa humana, devido processo legal, da legalidade, da proporcionalidade e da presunção de inocência

3.1.1.      Princípio da Dignidade da pessoa humana e do favor libertatis relacionados com a excepcionalidade da prisão cautelar

O princípio da dignidade da pessoa humana constitui essencialidade do Estado Democrático de Direito e tem por missão a preservação do ser humano, conferindo a este autoestima e garantia do mínimo existencial. A doutrina trata esse princípio como princípio de natureza supraconstitucional e regente, ou seja, o primeiro e mais importante para o Direito. O prisma objetivo do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana envolve o atendimento das necessidades vitais básicas para vivência. No prisma subjetivo, encontram-se os cuidados com o sentimento de respeitabilidade e autoestima inerentes ao ser humano a serem considerados pelo Estado, por meio do respeito aos direitos e garantias individuais. Eis a razão da necessária observância desse princípio pelos cenários do Direito Penal e Processual Penal (NUCCI, 2010 p. 40).

O autor Rogerio Schietti traça uma perspectiva do uso da razão e sensibilidade a ser observada sobre o acusado dentro da relação processual, a fim de que se compreenda a dimensão do humano. Segundo ele:

O processo deveria ser, também, um instrumento para que se conhecesse não o homem abstrato, identificado com um nome qualquer, mas o homem real, de carne e osso (RIVERO SANHCEZ,p .75). Essa postura trataria inevitável humanização do processo, colocando o réu como o “o centro do sistema punitivo” a merecer toda a atenção do acusador e do julgador em qualquer decisão a ser tomada no curso da relação processual(SILVA FRANCO, p.4) (CRUZ, 2011 p. 61).

O referido autor não está a dizer que se deva desprezar o sentimento da vítima e de seus familiares, mas agir conforme a razão da justiça pública, de que o juízo penal deve ter informações sobre o fato criminoso e o acusado, mediante a reconstrução da história desse, conforme preceitua Carnelluti (1995 apud CRUZ, 2011, p.60). O importante é tentar criar um equilíbrio entre os interesses da vítima e do autor do fato, para que se evite uma vitimização secundária do ofendido.

A excepcionalidade da prisão cautelar é inerente ao princípio da dignidade da pessoa humana. Assim se encontra na jurisprudência: “A prisão cautelar dos réus só se justifica em hipóteses excepcionais, sob pena de restarem vilipendiados os princípios constitucionais da presunção da inocência e da dignidade da pessoa humana. (HC 2008.059.03963-RJ,2ª C.C, rel. José Muinos Pineiro Filho, 01.07.2008, v.u.)” (NUCCI, 2010 p. 58).

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A existência no Código de Processo Penal de 1941 da prisão obrigatória foi fruto de um regime estatal voltado para a defesa social em detrimento das liberdades públicas, o que minimizava a proteção do indivíduo em nome da maior eficácia do sistema punitivo. Pensava-se que havia incompatibilidade no trato simultâneo da defesa social e da proteção do indivíduo. Passou-se então a ser necessária a discussão acerca da proteção penal eficiente, eis que ao mesmo tempo em que o Estado tem o dever de, em relação à vítima e à coletividade, protegê-las garantindo a segurança, deverá também preservar, mediante a apreciação do caso concreto, o alcance dos direitos fundamentais do acusado, analisando o núcleo essencial desses, principalmente o da liberdade, quando se tratar de prisão cautelar.

O princípio do favor rei, também chamado de favor libertatis ou favor innocentiae, no sistema penal brasileiro, é utilizado como norte de interpretação na aplicação da norma ante a incerteza quanto à vontade da lei, aplicando solução mais favorável ao réu. Essa aplicação também pode ocorrer no Direito Processual Penal (CRUZ, 2011 p. 58), e por isso tem-se a seguinte orientação:

Seguindo essa linha doutrinária, DELMANTO JÚNIOR(1998, p.263) considera, em atenção ao disposto no artigo 3º do Código de Processo Penal, que, em nome do favor libertatis, o uso da interpretação extensiva, da analogia e do recurso aos princípios gerais do direito deve ser limitado, “na medida em que não autorizam o aplicador da lei a manter alguém cautelarmente preso sem que esteja estritamente caracterizada a incidência legal da prisão provisória e, uma vez verificados os seus pressupostos e requisitos, que ela seja imposta por mais tempo do que o expressamente previsto, diante do princípio do favor libertatis,que está acima de qualquer outro.” (CRUZ, 2011 p. 59).

Cabe ao Judiciário evitar, pelos meios possíveis e razoáveis, o aglomerado insalubre dentro dos cárceres como forma de concretude ao princípio da humanidade. Potencial solução é evitar retardar a liberdade provisória quando o acusado não prestou o pronto pagamento da fiança, fazendo em seu favor presunção de sua falta de condições econômicas.

3.1.2.  Princípio da legalidade estrita da prisão cautelar e do devido processo legal

Os incisos LIV e LXI do art. 5º da CF abordam a legalidade e jurisdicionalidade da prisão. Segundo eles somente pode haver privação da liberdade humana se houver previsão legal expressa, devendo obediência ao devido processo legal, bem como somente por meio da autoridade judiciária competente se pode decretar a prisão cautelar, salvo nos casos de prisão em flagrante, na qual qualquer pessoa do povo e as autoridades policiais terão o condão de privar alguém de sua liberdade. Revestirá de jurisdicionalidade essa situação de flagrante quando o juiz receber o auto de prisão e analisar sua legalidade.

Por se tratar de medida efêmera, exige-se do flagrante a observância de todas as formalidades na lavratura do auto para criar maior proteção jurídica àquela circunstância emergencial de segurança pública conduzida por quem não tem poder jurisdicional. Além da carta constitucional brasileira, o Pacto de São Jose da Costa Rica prevê o dever de condução da pessoa presa, sem demora, à presença de um juiz, a fim de revestir de jurisdicionalidade aquela prisão excepcional. Apesar de existir a situação de flagrância como prisão provisória sem determinação judicial, a regra é a de que essa é sempre exigida somada ao cumprimento dos requisitos legais.

A duração razoável da prisão cautelar foi elevada pelas posições doutrinárias e jurisprudenciais a princípio constitucional implícito. Os princípios constitucionais expressos da presunção de inocência, da dignidade da pessoa humana e da estrita legalidade da prisão cautelar são incompatíveis com a restrição da liberdade sem culpa formada por prazo desarrazoado. Aliás, qualquer segregação cautelar pelo prazo mínimo que seja pode trazer os efeitos deletérios do cárcere ao acusado.

A conjugação dos incisos II e XXXIX do art. 5º da CF, que determinam “que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” e “não há crime sem lei anterior que o defina nem pena sem prévia cominação legal”, implicam, no âmbito penal, que a punição de alguém está vinculada à prática de infração penal, previamente detalhada em lei. Da mesma forma, exige-se essa legalidade para a prisão cautelar, eis que também se está cerceando a liberdade.

Foi elencados por Nucci (2011a p. 101) como requisitos formais estritos da prisão cautelar o que está disposto nos artigos 5º, LXI, LXII, LXIII e LXIV, da Constituição federal. Nesses dispositivos, determina-se que ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei; a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada e que o preso tem direito à identificação dos responsáveis por sua prisão ou por seu interrogatório policial. Nesses ditames constitucionais, a prisão cautelar deve obedecer a um austero procedimento, por isso está dentro da ordem de legalidade no processo penal.

3.1.3. Princípio da proporcionalidade na prisão cautelar

O princípio da proporcionalidade na prisão cautelar faz da liberdade a regra. Assim vislumbram os tribunais:

TRF-3ªR.: “À luz do princípio da proporcionalidade, uma vez que a liberdade é a regra e a prisão cautelar a exceção, sendo afiançável o delito imputado ao paciente e incorrendo hipóteses de cabimento da prisão preventiva, é de se reconhecer que ele faz jus a liberdade mediante fiança.” (HC 35.293-SP, 2.ª T.,rel. Cecília Mello, 07.04.2009, v.u.) (NUCCI, 2010 p. 219).

Entender o princípio da proporcionalidade permite convivência harmônica da prisão cautelar com o princípio da presunção de inocência. A lei pode restringir direitos, liberdades e garantias, desde que seja de forma adequada, necessária e adote cargas coativas proporcionais em relação ao fim que obstina. Disso decorre que, diante da custódia provisória do acusado, a proporcionalidade constitui-se na adequação, necessidade e na proporcionalidade estrita (CRUZ, 2011 p. 91), as quais juntas são máximas do referido princípio.

Na adequação encontra-se a eficácia da medida cautelar em proteger o direito ameaçado na situação concreta. Adequação é a idoneidade da medida judicial, a aptidão e conformidade com os fins pretendidos. Diante de medidas igualmente idôneas, deve-se primar por aquela que seja menos lesiva ao direito sacrificado. A necessidade ou subsidiariedade está relacionada com a intervenção mínima e proibição de excesso em onerar o direito do acusado. Somente se faz cabível a prisão cautelar quando outros meios menos gravosos não prometerem o mesmo êxito que a segregação. A eficácia da medida não é usar o meio mais eficaz, mas o suficientemente eficaz.

Rogério Schietti explica que a necessidade:

Trata-se de uma escolha comparativa, entre duas ou mais disponíveis, igualmente idôneas para atingir o objetivo a que se propõe com a providência cautelar, cumprindo ao magistrado, portanto, identificar e escolher qual delas representa a menor lesão ao direito à liberdade do investigado ou acusado, sem prejuízo do resultado concreto e da efetividade da iniciativa (CRUZ, 2011 p. 95).

Quanto à proporcionalidade em sentido estrito, pode-se dizer que a medida cautelar é proporcional em relação à gravidade do crime e às respectivas sanções e os benefícios obtidos coma a medida. Alberto Bovino citado por Rogério Schietti (2011 p. 96) diz que a proporcionalidade estrita trata de impedir que a situação do indivíduo ainda inocente seja pior do que a da pessoa já condenada, proibindo-se coerção meramente processual mais grave do que a própria pena e que a privação antecipada da liberdade não pode durar mais do que a pena eventualmente aplicada. Isso é a duração razoável da medida cautelar.

3.1.4.      Princípio da presunção de inocência e a restrição da liberdade individual

Em função do primado dignidade da pessoa humana, toda pessoa nasce inocente e permanece nesse estado por toda a vida, salvo se cometer um fato típico, antijurídico e culpável e, mediante o devido processo penal, o Estado o condene com o trânsito em julgado da sentença penal condenatória (NUCCI, 2010 p. 239). Somente com esta instala-se a certeza da culpa sobre caso concreto e delimitado. Os demais casos em investigação não terão a culpa presumida em decorrência de condenação passada em julgada sobre fato diverso. Está previsto constitucionalmente, art. 5º, LVII, como princípio o estado de inocência e este intenta entregar à acusação o ônus da prova do que afete essa circunstância. Em outras palavras, o encargo de provar a culpa, alterando o status constitucional de inocência do acusado, é da parte que acusa, sob pena de ter rechaçado seu argumento.

A inocência é regra e presunção de ordem moral e legal, por isso a culpa deve ser provada e qualquer medida de restrição ao direito de pessoa inocente deve ser exceção. As medidas estatais restritivas voltadas à garantia da ordem pública podem afetar a estado de inocência, mediante a restrição de liberdades individuais, somente em casos indispensáveis e desde que outra medida não seja possível. Pelo exposto, o estado de inocência não veda a prisão cautelar. Entretanto, o novo estigma legal apresentado pela recente reforma processual penal requer que a prisão cautelar seja medida de última razão. Para cada medida cautelar apresentada no art. 319 do CPP tem-se um grau de necessidade e adequabilidade a ser verificado no caso concreto.

Do princípio da presunção de inocência, que integra o princípio in dunio pro réu, decorre o impedimento da obrigatoriedade à autoacusação, garantido o direito ao silêncio, e o princípio penal da intervenção mínima do Estado na vida do cidadão, de forma que a reprovação penal somente alcance quem for efetivamente culpado.

A principal consequência da presunção de inocência é que, havendo dúvida razoável entre a inocência do réu e a sua liberdade, deve o magistrado decidir em favor dessa última. Também, na própria interpretação da lei, deve-se optar pela versão de alcance mais favorável ao acusado. O direito do acusado de manter-se livre decorre desse meio esteio, ou seja, resulta da conjugação da previsão constitucional da presunção de inocência, do direito à ampla defesa e de que o ônus da acusação cabe ao Estado.

Como visto, a presunção de não-culpabilidade do acusado ora é vista como regra de tratamento do acusado, ora como regra probatória. Ao funcionar como essa última regra, preserva-se a liberdade do acusado e sua inocência contra juízos de mera probabilidade, o que determina que somente a certeza possa gerar condenação. Quanto à regra de tratamento, essa exige que o acusado seja tratado com respeito à sua dignidade, somente podendo ser preso diante de imperiosa necessidade, lastreada por critérios legais objetivos. Diante dessa forma de tratamento, ao réu desprovido economicamente somente se pode aplicar a liberdade menos gravosa, ou seja, a liberdade provisória sem fiança, mais benigna ditada pelo art. 5º, inc. LXVI, CF: “ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança”.

3.1.5.      Princípio da igualdade no tratamento dos sujeitos da fiança

Diante dos já mencionados princípios regentes do Estado Democrático, os sistemas processuais e constitucionais não podem entrar em contradição, perante a possibilidade de liberdade imediata através da fiança daquele acusado opulento e da impossibilidade imediata da liberdade com fiança do acusado miserável. Aury Lopes Jr. vislumbra, desde já, o risco da degeneração e banalização das medidas cautelares diversas da prisão, se não houver uma mudança na mentalidade dos atores judiciários (LOPES JR., 2011b p. 55). Uma reavaliação judicial é necessária, eis que todos são iguais perante a lei.

Por muito tempo a regra foi a da liberdade provisória sem fiança, pois esta estava desfalecida. A fiança foi uma simplificação no processo de soltura de quem pode pagar a garantia real (NUCCI, 2011b p. 20), mas questiona-se como fica essa simplificação para quem não pode pagá-la.

Utilizando o raciocínio em que Nucci questiona a linha de inteligência da proibição da liberdade provisória sem fiança na Lei de Drogas (NUCCI, 2011b p. 20), pode-se verificar que a regra é a da “desprisionalização”. Logo esta deveria ser atendida quando diante da possibilidade de liberdade imediata do indivíduo, independente da comprovação contígua da sua miserabilidade para fins de ser dispensado da fiança:

é fundamental considerar que a ideia geral, hoje, especialmente em Direito Penal, é a desprisionalização, ou seja, retirar forças das penas privativas de liberdade, substituindo-as por penas alternativas, aliás, já previstas na Constituição Federal(art. 5º, XLVI, a e e). Se a quase unanimidade dos juristas apoia a nova meta do direito material, qual é o sentido de se defender o encarceramento precoce, justamente de quem ainda é acusado, logo, inocente até sentença condenatória definitiva? (NUCCI, 2011b p. 20).

Se não for dada maior credibilidade às outras medidas cautelares diversas da prisão e até mesmo diversas da fiança, o intento da última reforma processual foi em vão, eis que aquelas objetivam, tanto quanto a fiança, fixar o acusado no distrito da culpa.

Alexandre de Moraes (2009 p. 37) ensina que a Constituição Federal de 1988 adotou o princípio da igualdade de direitos, em que todos os cidadãos devem ser tratados de forma idêntica pela lei, sendo vedação constitucional as diferenciações arbitrárias. O conceito de justiça requer tratamento desigual nos casos desiguais na medida de suas desigualdades, protegendo certas finalidades. Nesse caso, o elemento discriminador deve estar a serviço de finalidade acolhida pelo Direito. O mesmo autor explica que haverá a desigualdade na legislação quando a norma distinguir de maneira não razoável ou arbitrária um tratamento específico a pessoas diversas.

Somente a justificativa objetiva e razoável fundada em critérios genericamente aceitos será apta a dar vazão às diferenciações não discriminatórias. Nesses casos, exige-se proporcionalidade entre os meios empregados e a finalidade perseguida, primando-se pelas garantias constitucionais. Moraes (2009 p. 37) também ressalta que a tríplice finalidade limitadora do princípio da igualdade é a limitação ao legislador, ao intérprete/autoridade pública e ao particular. Quanto à autoridade pública, a ela é vedado aplicar as leis e atos normativos aos casos concretos de forma a criar ou aumentar desigualdades arbitrárias.

3.2.  A proibição de prisão por dívida

A fiança criminal tem como fim uma espécie de “contrato” de liberdade provisória, no qual o devedor assume as obrigações criminais previstas no Art. 319, VIII, do CPP, dando segurança de seu comparecimento aos atos do processo, evitando a obstrução do processo ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial. O próprio acusado pode ser o fiador, prestando-a por depósito, de dinheiro ou bens móveis, ou hipoteca.

Tem-se por certo que a fiança criminal não é compra da liberdade, mas garantia de cumprimento de obrigações sob pena de perda patrimonial. As referidas obrigações assumidas pelo suposto autor do fato asseguram a sua presença a todos os atos do processo ao passo que se evita os efeitos deletérios do cárcere preliminar. A exigência da fiança criminal não pode obstruir o mínimo de subsistência do acusado, tornando-a impossível de ser prestada:

os bens e valores que são excluídos de outras constrições, como por exemplo a casa de moradia, as ferramentas de trabalho e as verbas alimentares, não podem ser trazidas à conta da capacidade para prestar fiança, devendo o afiançante ser liberado da acessoriedade mediante outras medidas elencadas na lei, vez que isto atenderia ao princípio reitor do Direito Penal: não se tira de alguém aquilo que ele não tem (liberdade ou riqueza) (NEVES, et al., 2011 p. 2).

Já que o acusado assume uma obrigação, a fiança pode ser considerada:

[...] um contrato acessório ao contrato principal que garante ao credor o cumprimento da obrigação contratada [...].Pelo “contrato” de fiança o fiador – o próprio obrigado ou terceiro – coloca seus valores e bens – na proporção exigida pelo credor – em garantia de que o obrigado no “contrato” principal (a ação penal) cumprirá as obrigações deste. (NEVES, et al., 2011 p. 1/2).

O art. 5º, inc. LXVII, da Constituição Federal preceitua que “não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”. A prisão não pode ser utilizada como técnica coercitiva genérica, obrigando o acusado a prestar garantia da suas obrigações processuais. Essa exigência passa por discussões éticas e de valores fundamentais.

Por outro lado, passa como afronta ao comando constitucional do inciso LXVII do art.5º da CF a manutenção pelo delegado de polícia do infrator preso que não tem condições de prestar a fiança. Sabendo que o art. 350 do CPP permite que somente o magistrado conceda a liberdade provisória sem fiança por motivo de pobreza, maior aflição ocorre quando, já em apreciação judicial, o magistrado mantém aquela prisão em razão da não comprovação do acusado de seu estado de miserabilidade. Não obstante a abolição da prisão por dívida civil, a falta de liberação do acusado em delitos afiançáveis ante a ausência da satisfação do valor da fiança, ainda que reduzida, ofende e viola a dignidade da pessoa humana e o princípio da inocência, além do texto da Constituição Federal e dos pactos internacionais.

Em noticiários, a discussão da fiança como óbice à liberdade do acusado já vem sendo debatida. Na revista ISTOÉ, por exemplo, consta reportagem sobre as fianças milionárias e os casos de impossibilidade do pagamento de qualquer quantia pelos menos abastados:

A discussão em torno dos valores da fiança tem gerado atritos entre a magistratura e a advocacia. Para advogados e defensores públicos, ao servir de substituta para a prisão preventiva, a fiança transforma-se, injustamente, em uma espécie de pena antecipada, a qual atinge diretamente os acusados de menos recursos financeiros, uma vez que não podem arcar com valores expressivos. “Tornar a fiança impagável é desvirtuamento do que preconiza a lei”, analisa o criminalista Maurício Zanoide de Moraes, professor de Processo Penal da Universidade de São Paulo (USP). (COSTA, revista eletrônica ISTOÉ,2011).

O STJ já firmou que o não pagamento da fiança por si só não justifica a manutenção da prisão cautelar, bastando não estarem presentes os requisitos da prisão preventiva para se ceder ao direito à liberdade, conforme se vê:

HABEAS CORPUS Nº 231.587 - SP (2012/0013712-2) IMPETRANTE : JOSÉ CARLOS ABISSAMRA FILHO E OUTRO ADVOGADO : JOSE CARLOS ABISSAMRA FILHO E OUTRO(S) IMPETRADO  : TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO PACIENTE   : REINALDO ANDRADE DE OLIVEIRA (PRESO) DECISÃO

1. Trata-se de habeas corpus com pedido de liminar impetrado por José Carlos Abissamra Filho e outro em favor de Reinaldo Andrade de Oliveira apontando como autoridade coatora o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.Segundo a petição inicial "O paciente foi preso em flagrante delito no dia 6 de janeiro do corrente ano pela suposta prática do crime de tentativa de furto simples de dois carrinhos de pedreiro avaliados em R$ 70,00 cada. (...) A magistrada então entendeu estarem 'ausentes os requisitos da prisão preventiva' e concedeu 'a liberdade provisória com fiança - ao indiciado Reinaldo Andrade de Oliveira, fixando valor de R$ 622, 00 (seiscentos e vinte e dois reais), equivalente a um salário mínimo vigente'" (fl. 2). Os impetrantes alegam "que o paciente é pobre e não tem condições de arcar com este valor da fiança e, por isso permanece preso desde então" (fls. 02/03). Requerem, liminarmente, "a concessão da ordem para que, em razão da pobreza, seja o paciente isentado da fiança nos termos estabelecidos no CPP, sendo-lhe concedida a liberdade a que tem direito" (fl. 6).

2. Salvo melhor juízo, se ausentes os pressupostos do artigo 312 do Código de Processo Penal, não é razoável manter a prisão cautelar de um paciente em razão apenas do não pagamento de fiança. Nesse sentido, o seguinte julgado:

HABEAS CORPUS. FURTO. LIBERDADE PROVISÓRIA DEFERIDA. FIANÇA NÃO PAGA. MANUTENÇÃO DA CUSTÓDIA. ILEGALIDADE. AUSÊNCIA DOS REQUISITOS PREVISTOS NO ART. 312 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. ORDEM CONCEDIDA.

1. Conforme reiterada jurisprudência desta Corte Superior de Justiça, toda custódia imposta antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória exige concreta fundamentação, nos termos do disposto no art. 312 do Código de Processo Penal. 2. Se o próprio magistrado de primeiro grau reconheceu não estarem presentes os requisitos que autorizam a segregação cautelar, o não pagamento da fiança arbitrada, por si só, não justifica a preservação da custódia. Trata-se de réu juridicamente pobre e de delito de furto simples, cuja pena mínima cominada é de 1 (um) ano de reclusão.

3. Ordem concedida para, confirmando a liminar, garantir a liberdade provisória ao paciente, independentemente do pagamento de fiança. (HC nº 113.275, PI, Ministra Maria Thereza de Assis Moura, DJe21/2/2011) Nessas condições, defiro a medida liminar para relaxar a prisão do paciente, se por outro motivo não estiver preso. Comunique-se, com urgência. Após, solicitem-se as informações, e vista ao Ministério Público Federal. Intimem-se. Brasília, 27 de janeiro de 2012. Ministro ARI PARGENDLER Presidente (STJ, HC231587, Relator(a) Ministro ARI PARGENDLER. DJE 02/02/2012, grifo nosso).

E ainda, o próprio STJ entendeu que a simples atuação da Defensoria Pública comprova a situação de pobreza:

PENAL E PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. RECEPTAÇÃO E DIRIGIR SEM HABILITAÇÃO. ARTIGOS 180, CAPUT, DO CÓDIGO PENAL E 309 DA LEI 9.503/97. PRISÃO EM FLAGRANTE. LIBERDADE PROVISÓRIA MEDIANTE ARBITRAMENTO DE FIANÇA. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DA SITUAÇÃO ECONÔMICA DA PARTE ACUSADA. DENEGAÇÃO DA ORDEM.

1. A comprovação da situação econômica da parte acusada é ônus probatório da defesa.Assim, ante a ausência de prova da condição financeira do paciente, correta a decisão monocrática de estipular fiança para fins de concessão de liberdade provisória. 2. Ordem de habeas corpus denegada" (fl. 15). O impetrante alega que "O paciente encontra-se encarcerado a mais de 67 dias (sessenta e sete), uma vez que embora lhe tenha sidoarbitrada a fiança, este não tem condições de arcar com esta" (fl.03).

2. Salvo melhor juízo, se ausentes os pressupostos do artigo 312 do Código de Processo Penal, não é razoável manter a prisão cautelar de um paciente em razão apenas do não pagamento de fiança.(...) Uma vez assistido pela Defensoria Pública, a hipossuficiência do paciente é presumida.Nessas condições, defiro a medida liminar para relaxar a prisão do paciente, se por outro motivo não estiver preso.Comunique-se, com urgência. Após, solicitem-se as informações, e vista ao Ministério Público Federal. Intimem-se.Brasília, 27 de janeiro de 2012. MINISTRO ARI PARGENDLER Presidente. (STJ, HC231731, Relator(a)Ministro ARI PARGENDLER. DJE 02/02/2012, grifo nosso).

Contrapondo-se a quem defende que a simples atuação da Defensoria Pública comprova a situação de pobreza, há também decisões do STJ que entendem que esse fato por si só não traz elementos que comprovem a condição econômica do acusado a ponto de enquadrá-lo no art. 350 do CPP. A motivação nesse caso estaria no fato de ser ônus daquele acusado comprovar expressamente tal condição, não se podendo presumi-la, sob pena de se transformar uma prova acessível ao acusado e a sua defesa em prova tipicamente diabólica para a sociedade, numa inadmissível inversão do ônus probatório.

Ainda nessa tese contrária a atuação da Defensoria como prova de miserabilidade do acusado, também se argúi que a simples afirmação de estar desempregado ou de não ter condições econômicas não poderia ser aceita como presunção, sob pena de desvirtuar o comando legal, haja vista que cabe à parte ré o ônus probatório de trazer à lume sua condição financeira, de modo a dar o devido substrato fático ao juízo para fins de avaliar ou não a conveniência de se fixar a fiança ou até mesmo de dispensá-la ou reduzi-la. Alegam também que, diante da falta de comprovação do quadro econômico do acusado, não haveria constrangimento ilegal na decisão que nega a concessão da liberdade provisória sem fiança nos termos do art.350, CPP, pois tal decisão teria a possibilidade de ser revisada no momento em que o acusado apresentasse os documentos probatórios acerca de sua condição financeira, pois o magistrado não estaria vedando a liberdade provisória.

Diante dessas duas visões antagônicas, devem incidir os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da presunção de inocência e do favor libertatis e verificar qual é a regra no quadro econômico dos encarcerados no país. Essa militaria a favor da presunção de ser o réu economicamente desprovido e que com certeza o acusado que não honrou o valor da fiança não o fez porque não teria condições de arcar com uma defesa privada mais ágil e mais disponível do que a pública, a qual já concentra todas suas forças em uma demanda carcerária estrondosa.

3.3.  Da assistência do Advogado ao preso provisório

Ao adentrar neste tópico, não há como deixar de falar sobre o princípio da ampla defesa. Essa constitui essência da pessoa humana e representa proteção diante do cenário penal. Para Nucci (2010 p. 264) “a ampla possibilidade de se defender representa a mais copiosa, extensa e rica chance de preservar o estado de inocência”. A ampla defesa tem como subdivisões a autodefesa e a defesa técnica. A primeira é realizada pelo próprio acusado com seus próprios argumentos. A segunda requer a atuação do advogado. Do devido processo legal se sobressai a necessidade de ampla defesa, para que não se afronte a presunção de inocência mediante atuação exclusiva do órgão acusador, sem em contrapartida haver o instrumento da defesa.

 Na fase de investigação policial não se demanda da ampla defesa, eis que é fase sem contraditório. Entretanto, faz-se necessária a atuação da defesa ante a privação da liberdade do acusado cautelar que não foi liberto por não ter condições econômicas, porquanto a Constituição Federal assegura ao preso a assistência da família e de advogado, art. 5º, LXIII, e eis que está presente o constrangimento de se ficar detido por ser detentor de pacos recursos econômicos, além de somente em juízo se poder pleitear a aplicação do art. 350 do CPP. Este dispositivo muitas vezes nem é aplicado por entender o magistrado ser incompatível com a maior eficácia do sistema punitivo, porquanto que o réu não deu garantia real. A assistência técnica se faz importante mesmo na fase pré-processual, porque há necessidade de prestação de informação, consultoria, prevenção e concreta atuação defensiva em nome da preservação do status libertatis e dos demais direitos e garantias fundamentais do acusado.

O antigo cenário forense era o da não concessão da assistência jurídica ao preso em flagrante. Restava ao preso aguardar o término do inquérito, para que a atuação do defensor fosse possível.  A Lei nº 11.449/2007 inseriu, no art. 306, §1º, do CPP, a obrigatoriedade do delegado comunicar a prisão em flagrante ao defensor público em vinte e quatro horas, corrigindo a falta de assistência jurídica à clientela criminal presa em flagrante. Renato Brasileiro sustenta que:

Deveras, não há como fechar os olhos para o tratamento desigual e odioso que sempre imperou (e continua imperando) na Justiça Criminal entre o acusado preso, que detém condições econômicas para constituir advogado, e o acusado preso menos afortunado, que vez por outra acabava ficando preso de maneira indevida simplesmente por não ter assistência de profissional da advocacia para solicitar o relaxamento de sua prisão e/ou a concessão de liberdade provisória. Esse tratamento diferenciado entre pobres e ricos perante o Poder Judiciário faz ressurgir o que asseverou, há muito tempo, Ovídio, segundo o qual cura puperibus clausa est( o Tribunal está fechado para os pobres) (LIMA R.B., 2011 p. 160).

Atualmente, o §1º do art. 306 do CPP mantém a determinação de comunicação da prisão em flagrante ao defensor no prazo de vinte e quatro horas. A falta dessa informação constitui ferimento ao procedimento da prisão em flagrante, revestindo-a de ilegalidade, e levando à necessidade de relaxamento da prisão ilegal.

Por ser direito a todos assegurados, o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos mediante a atuação da Defensoria Pública, a quem incumbe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, artigos 5º, LXXIV, e 134 da CF. Segundo determina o artigo 4º, caput e § 1º, da Lei n. 1.060/50, in verbis:

Artigo 4º - A parte gozará os benefícios da assistência judiciária, mediante simples afirmação, na própria petição inicial, de que não está em condições de pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo próprio ou de sua família.

§ 1º - Presume-se pobre, até prova em contrário, quem afirmar essa condição dos termos desta lei, sob pena de pagamento até o décuplo das custas judiciais.

Verifica-se que a simples afirmação de que o acusado não pode arcar com as despesas do processo faz com que lhe seja deferida a assistência judiciária. Trata-se de presunção legal, que somente pode ser afastada se efetivamente demonstrado fato contrário à situação de pobreza afirmada pela parte.

Ora se a própria lei presume que a simples afirmação do beneficiário da assistência jurídica gratuita tem o condão de creditar que o réu é reconhecidamente pobre, questiona-se o porquê de em alguns casos o judiciário exigir prova do estado de miserabilidade, protelando em restituir ao acusado sua liberdade e, conforme for o caso, aplicar outra medida cautelar que não a fiança. A alegação dada pelo acusado é banhada de presunção iuris tantum de veracidade, suficiente à concessão do benefício do art. 350 do CPP.

 Inclusive, o fato de ser assistido pela Defensoria Pública já trabalha pela presunção de ser o réu presumidamente pobre. Logo, o acusado também é presumidamente pobre para que se conceda a liberdade provisória, sem a prestação da fiança, assim é o entendimento do STJ no aresto colacionado anteriormente.

A falta de uma Defensoria Pública instalada em alguns lugares desse país fere de morte os acusados presos em flagrante. No mesmo sentido, há lesão no fato de a assistência não poder ser efetiva ao ponto de buscar maior contato direto com o acusado, reunindo dados sobre esse e levar ao conhecimento da autoridade judicial todos os pedidos e documentos para rápida tomada de decisão sobre o estado de miserabilidade do indivíduo. Do mesmo modo compartilha o defensor público Maicom Vedruscolo:

Inobstante o comprometimento de alguns advogados que atuam na seara criminal como dativo, a maioria presta defesa técnica virtual sem o mínimo comprometimento com o bem jurídico que está em jogo, a liberdade do réu. Ainda, a ausência de Defensoria Pública viola os direitos fundamentais dos segregados já na fase extraprocessual, que engloba o acompanhamento do flagrante e prestação de assistência jurídica ao preso e a família, já que a nomeação de advogado pelo magistrado somente se dará por ocasião da audiência de instrução e julgamento (VEDRUSCOLO, 2011).

Em breves palavras, a falta da defesa efetiva e o entendimento de alguns magistrados convergem para manter o acusado segregado quando não há o pagamento da fiança. A própria legislação, Lei nº 1.060/50, gera a presunção de miserabilidade para fins de concessão da assistência jurídica gratuita, ao passo que alguns magistrados deixam de reconhecer essa presunção para exigir provas da situação econômica do acusado, enquanto se protela sua liberdade.

Sobre a autora
Suellen da Costa Gonçalves

Servidora do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Pós-Graduada pela Escola da Magistratura do Distrito Federal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GONÇALVES, Suellen Costa. Liberdade provisória:: das distorções no campo da fiança criminal a serem corrigidas pelo intérprete. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3843, 8 jan. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26327. Acesso em: 18 nov. 2024.

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