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O Pequeno Príncipe e o Direito:

Busca-se uma nova visão do direito, a partir dos paralelos elaborados entre o mundo jurídico e o livro O Pequeno Príncipe.

Resumo: A arte nasceu para inspirar, sensibilizar todos aqueles que tentam enxergar ou expressar o mundo através dela. Já o direito sempre esteve ligado a algo sisudo, sem muita margem para a subjetividade. A ideia de relacionar o direito e a arte pode parecer estranha, mas é extremamente enriquecedora. Este trabalho tem como objetivo tratar de alguns temas do mundo jurídico a partir da obra O Pequeno Príncipe. Serão suscitadas algumas aventuras do principezinho, relacionando-as com o direito. Este diálogo deverá servir para inspirar tanto o aplicador do direito, quanto aqueles que almejam encontrar no direito o que talvez seja invisível aos olhos.

Palavras chaves: Direito, pequeno príncipe, subjetividade, paradigma, significado, justiça.


1 INTRODUÇÃO

Poderia parecer estranha ou inusitada a relação entre um livro tão rico em fantasias e imaginação, como O Pequeno Príncipe, e o direito, usualmente visto como algo dogmático e austero. Entretanto, tal relação não só é possível como salta aos olhos quando se percebe que ambos lidam com questões cujas respostas não são, de antemão, claras.

O presente artigo se propõe a estabelecer um diálogo entre passagens do romance O Pequeno Príncipe e o direito, na perspectiva de que este não está enclausurado em códigos ou em obras jurídicas. De outro modo, pode ser encontrado nas mais diversas formas da experiência humana, inclusive na arte.

Inicialmente, o leitor será apresentado às ideias essenciais do livro, bem como ao seu autor e ao contexto em que o escreveu. Em seguida, serão traçadas algumas relações entre as primeiras vivências do principezinho fora de seu planeta de origem e o mundo jurídico. Por fim, busca-se abordar situações que o pequeno príncipe viveu nos diferentes e curiosos países onde esteve, evidenciando a universalidade de algumas grandes questões do direito.


2 O LIVRO

Talvez para muitos o livro O Pequeno Príncipe pareça um livro infantil. Embora o título e a diagramação sugiram ser mais uma história para crianças, esta é uma obra que com sutileza e ingenuidade ímpar toca a alma e faz cair dos nossos olhos as escamas que nos impedem de ver o óbvio.

Antoine de Saint-Exupéry, autor do mencionado livro, além de escritor e ilustrador foi um importante piloto francês. Nascido em 29 de junho de 1900, fez carreira como aviador militar. Depois de 25 meses exilado nos Estados Unidos, participou da segunda guerra mundial em que lutou com os Aliados no esquadrão do Mediterrâneo. Morreu em combate em 31 de julho de 1944.

Foi durante seu exílio nos Estados Unidos que Saint-Exupéry publicou a primeira edição do livro O Pequeno Príncipe. A historia do livro é narrada por um aviador que, como a maioria dos adultos, aprendeu a deixar a criança que fora em seu passado. Mas uma pane no seu avião o forçou a pousar em um deserto na África, um lugar ermo que mudaria para sempre a sua vida. Foi em meio a esta situação emergencial e desagradável que o piloto conheceu o pequeno príncipe.

O principezinho apareceu ao piloto pedindo que este desenhasse um carneiro. Mesmo não entendendo muito bem o pedido, o aviador desenhou. Foi assim que se conheceram e começaram a dialogar.

O homenzinho relata ao piloto como é o seu pequeno planeta. Fala sobre os três vulcões, os baobás, o pôr do sol e sua amada flor. Todos estes pequenos elementos do seu planeta, trazem ao piloto um novo olhar sobre o que é realmente importante na vida.

Em meio ao conserto do avião, o pequeno príncipe conta ao piloto como foi parar no planeta Terra. Em sua viajem, passou por seis outros planetas. Cada um desses planetas o principezinho conheceu figuras excêntricas. E quando chega ao planeta Terra, ele encontra outros personagens como a serpente e a raposa. Nasce, então, uma amizade entre o piloto e o principezinho.

O autor parece usar as aventuras e a triste volta do pequeno príncipe ao seu planeta, como expressão lúdica para revelar que o essencial é a subjetividade. Ao estabelecer um diálogo entre o adulto solitário e a criança esquecida, revela a perda da singularidade das relações intersubjetivas, bem como da sensibilidade que permeia o interior de todo ser humano e o torna inventivo. Cada singelo diálogo entre os personagens revela uma profundidade que fora perdida em nome da razão na (de)formação do indivíduo.


3 O PRINCIPEZINHO E O DIREITO

Logo no início do livro, o narrador relata que, quando criança, fez um desenho de uma jiboia que havia engolido um elefante e, ao mostrar a ilustração aos adultos, ouvia deles que aquilo era o desenho de um chapéu. O menino, que recém havia lido sobre aventuras na selva e sobre a capacidade das jiboias de comerem suas presas inteiras, reconhecia em seu desenho uma jiboia que tinha engolido um elefante. Já os mais velhos, influenciados pelas referências do mundo adulto, enxergavam a aba de um chapéu naquilo que o menino dizia ser as extremidades da jiboia, e entendiam como sendo a parte mais alta do chapéu, a elevação que o menino desenhara no corpo da jiboia para representar o elefante que a cobra acabara de engolir (SAINT-EXUPÉRY, 2009).

De fato, muitas vezes o que algo parece ser para uma pessoa ou para um grupo delas, não é o que parece ser para outras tantas. Tal ocorre frequentemente no mundo jurídico, em que uma mesma questão pode ser analisada sob diversos aspectos e, a depender dos referenciais utilizados por quem a analisa, pode-se chegar a diferentes resultados ou conclusões.

A antropologia criminal lombrosiana, por exemplo, baseia-se na biologia do criminoso para afirmar que as penas devem adaptar-se a ele e não à natureza do crime. Lombroso, ao fundar a antropologia criminal, em 1870, procurava identificar criminosos natos por traços físicos que seriam decisivos, como a forma dos pés e do crânio, referenciais estes amplamente utilizados num dado contexto e que levaram a inúmeras condenações de inocentes (GOULD, 1999).

A escola positivista rechaçou alguns aspectos do modelo de Lombroso, ao mesmo tempo em que o ampliou, acrescendo aos fatores biológicos elementos educativos, resultado que influencia a prática criminal na atualidade, especialmente no que tange à indeterminação da sentença, à redução da pena e ao sistema de liberdade condicional (GOULD, 1999).

Tal situação representou uma quebra ao paradigma lombrosiano, o que só foi possível porque havia uma alternativa capaz de substituí-lo, total ou parcialmente, apoiada em novas teorias que, assim, abriram caminho para o novo paradigma. Substituições como essa ocorrem, tanto na vida social como no mundo do direito, porque o paradigma até então vigente deixou de funcionar com relação a determinados aspectos que eram dirigidos pelo paradigma anterior. Abre-se, desse modo, inclusive, caminho para a revolução científica, em decorrência das novas perspectivas pelas quais se passa a perceber o mundo. (KUHN, 2006)

A mudança de paradigmas e, consequentemente, a assunção de novos referenciais, leva a interpretações inovadoras, em virtude de aparatos perceptivos que ainda não haviam aflorado. Em O Pequeno Príncipe, as diferentes formas de perceber o mundo, a partir de referenciais subjetivos, possibilitam que o mesmo desenho represente coisas tão diversas: uma jiboia que engoliu em elefante, para um, e um chapéu, para outros.

Algo semelhante ocorre quando o principezinho pede ao aviador que desenhe um carneiro. Como o aviador não sabia fazê-lo, desenhou algo que comumente se percebe como sendo uma caixa e explicou que o carneiro encontrava-se dentro dela. O principezinho, feliz, disse que era exatamente esse o carneiro que ele queria, atribuindo, assim, ao desenho (significante), um significado bastante diferente daquele que geralmente lhe é atribuído (SAINT-EXUPÉRY, 2009). No direito, por vezes os textos normativos, enquanto significantes, ensejam significados não apenas diferentes, mas muitas vezes radicalmente opostos.

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O projeto de lei que busca ampliar os casos de aborto legal no país, que recentemente voltou a ser discutido no Congresso Nacional (PL 1135/91), significa para alguns grupos sociais, dentre eles os religiosos, uma afronta ao direito maior assegurado constitucionalmente: o direito à vida. Para outros grupos, contudo, o mesmo texto normativo representa um grande avanço social, pois efetiva direitos constitucionais tais como a liberdade de escolha e a dignidade da pessoa humana.

Essas múltiplas possibilidades de se perceber e interpretar um mesmo significante, seja ele um desenho ou um texto legal, perpassa pela ideia defendida por Derrida no sentido de que não há interpretação latente, definitiva ou correta. O jogo interpretativo não é operado através dos paradigmas de verdade/falsidade, mas é construído no discurso entre o significante já elaborado e quem o interpreta. Nesse jogo, o intérprete colabora originariamente para a aquisição do sentido, por meio das influências de seu contexto histórico e cultural, bem como de seus desejos (DERRIDA, 2009). Assim, o intérprete encontra, de algum modo, a si mesmo ao realizar a interpretação, exatamente como o principezinho encontrou um carneiro na ilustração que lhe foi apresentada.

Mais adiante, o aviador, que é o narrador do livro, relata que o primeiro astrônomo a falar sobre o planeta do principezinho, o asteroide B612, foi um turco, em um congresso internacional, no qual seus pares não lhe deram crédito, haja vista estar ele trajando roupas típicas de seu país. Onze anos depois, o mesmo astrônomo repetiu a demonstração, trajando vestes europeias e, dessa vez, todos acreditaram nele, o que demonstra que a aparência e o emissor da mensagem podem sobrepor-se ao seu próprio conteúdo, que fica relegado a um segundo plano (SAINT-EXUPÉRY, 2009).

Nas ciências de modo geral e, dentre elas, na ciência do direito, imperam valores e desvalores essencialmente científicos, ao lado de valores e desvalores extra-científicos, sendo que a eliminação destes da atividade científica é uma ilusão. Não há cientista completamente apartidário ou destituído de juízos de valor. Mesmo os motivos e ideais científicos estão eivados de valores extra-científicos, a exemplo de preconceitos, o que pode até mesmo levar um cientista a recusar uma teoria ou uma demonstração antes mesmo de ser exposto a ela, apenas porque quem a apresenta, em função do seu biótipo ou de suas vestimentas, não aparenta confiança ou autoridade (POPPER, 2004).

Quando os destinatários de uma mensagem supõem que o emissor dela possui autoridade para falar sobre o tema, tornam-se muito mais receptivos ao seu conteúdo, que foi legitimado pela autoridade do emissor da mensagem. É o que ocorre, frequentemente, com o direito. Por emanar essencialmente do Estado, em especial em países de tradição legalista, como o Brasil, e também por ser coercitivo, o direito é revestido de uma tal autoridade que talvez não esteja presente em nenhum outro sistema social.

Com isso, não é raro que discussões já amplamente ventiladas por outras áreas do conhecimento ganhem maior peso quando apropriadas pelo direito. A título de ilustração, a homofobia vem sendo bastante discutida na sociedade brasileira, inclusive nos meios de comunicação de massa e nas redes sociais, especialmente em virtude das constantes agressões praticadas contras homossexuais. Nessas discussões, geralmente públicas, há a manifestação não só de ativistas, mas de pesquisadores dos ramos da psicologia, sociologia, dentre outros.

Entretanto, a discussão tomou proporções muito mais significativas quando se passou a discutir a possibilidade de criminalização da homofobia, por meio do Projeto de Lei 122/2006. Ou seja, quando o direito, com a sua “ autoridade sobre os demais ramos do conhecimento e sobre a sociedade” passa a interferir em uma discussão ou em um discurso, o alcance dos seus efeitos é muito mais evidente.

Tal autoridade é reconhecida e legitimada socialmente na medida em que o direito positivado se adequa às expectativas da população em um dado local e em um certo momento histórico e cultural. A aceitação da obra de arte não é diferente. A identificação com a obra e a possibilidade de o seu destinatário se reconhecer nela são essenciais para o seu sucesso. No processo de fruição da arte, o seu destinatário sai de si e empreende uma escavação no outro, na obra de arte, em que busca o revelar de si mesmo (DERRIDA, 2009). Para que essa busca seja exitosa, é preciso haver pontos iniciais de identificação entre a obra e o seu destinatário.

O principezinho é uma criança branca, loira e de olhos claros, cujo biótipo atende satisfatoriamente ao eurocentrismo que por muito tempo fez com que a cultura europeia fosse a cultura de referência mundial. Seguramente, a aparência estereotipada do principezinho, bastante adequadas às pungentes expectativas da época em que o livro foi lançado e atendendo ao ranço eurocêntrico ainda presente na contemporaneidade, contribuiu para que O Pequeno Príncipe seja o terceiro romance mais vendido no mundo, traduzido para 220 línguas e dialetos (www.opequenopríncipe.com).

Mas a grande aceitação de O Pequeno Príncipe, que fez dele um clássico da literatura infanto-juvenil, deve-se essencialmente às suas belas mensagens de cunho humanista e de caráter universal. Em um diálogo entre o principezinho e uma raposa que encontrou em suas andanças, a raposa fez o menino compreender que por mais que ele tivesse avistado diversas rosas em sua viagem, nenhuma delas era igual à rosa existente em seu planeta, pois cada rosa, como cada raposa e como cada pessoa, é única no mundo (SAINT-EXUPÉRY, 2009).

Na aplicação do direito observa-se, por vezes, o dilema entre solucionar os conflitos com base na tendência generalizadora da justiça ou mediante o tratamento dos problemas singulares isolados (CANARIS, 2008). Tendo em vista o grande número de processos que abarrotam o Poder Judiciário e a consabida falta de estrutura deste para dirimir os litígios que são submetidos à sua apreciação, tem-se tornado bastante comum a aplicação indistinta de jurisprudências, a fim de pretensamente solucionar, de modo mais célere, situações das mais diversas.

Verifica-se, com isso, que as particularidades do caso concreto são desconsideradas, em nome de um julgamento mais rápido. De fato, o entendimento dominante sustenta que os conflitos sub judice devem ser julgados de modo sistemático, ou seja, devem ser solucionados com base na totalidade da ordem jurídica. Mas tal não significa defender a morte da tendência individualizadora da justiça, consubstanciada na equidade, especialmente em se tratando de setores do direito marcados por lacunas ou por cláusulas gerais (CANARIS, 2008).

Desse modo, as decisões judiciais que almejam aproximar-se o máximo possível da justiça não devem desprezar o sistema jurídico teologicamente entendido, nem tampouco as especificidades do caso concreto, afinal, cada rosa é uma rosa, cada raposa é uma raposa e cada caso é um caso.     


4 PEQUENOS PLANETAS, GRANDES LIÇÕES JURÍDICAS

Durante a jornada do pequeno príncipe, que culminou em sua chegada ao planeta Terra, ele passou por seis outros planetas (na verdade, asteroides). O que mais chama atenção são os habitantes destes pequenos planetas. Cada planeta só tinha um morador, eram eles: o rei, o vaidoso, o bêbado, o empresário, o acendedor de lampiões, e o geógrafo.

O primeiro planeta era habitado por um rei que fazia questão de ver sua autoridade respeitada. Este rei se gabava da obediência às suas ordens, todavia, todas as suas diretrizes eram medidas que naturalmente seriam cumpridas, ou seja, eram comportamentos esperados. Como explicou ao pequeno príncipe: “‘Se eu ordenasse’, costumava dizer, ‘que um general se transformasse numa gaivota e o general não me obedecesse, a culpa não seria do general, seria minha’’’(SAINT-EXUPÉRY, 2009, p. 35).

O mais interessante nesta passagem do livro é que a postura do rei muito se assemelha à questão da eficácia social da norma jurídica. Uma lei para ter eficácia necessita estar de acordo com os anseios e comportamentos de uma sociedade ou grupo social. Nada adiantará ao direito uma norma que é discrepante da conjectura social, esta norma será inócua. Mas como o direito poderá dar “ordens razoáveis”? Para responder à questão suscitada, importa recorrer a Boaventura de Souza Santos:

[...] Nisso reside, alias, o que hoje se reconhece ser o dilema básico da ciência moderna: o seu rigor aumenta na proporção direta da arbitrariedade com que espartilha o real. Sendo um conhecimento disciplinar, tende a ser um conhecimento disciplinado, isto é, segrega uma organização do saber orientada para policiar as fronteiras entre as disciplinas e reprimir os que as quiserem transpor. É hoje reconhecido que a excessiva parcelização e disciplinarização do saber científico faz do cientista um ignorante especializado e que isso acarreta efeitos negativos. [...] o direito, que reduziu a complexidade da vida jurídica a secura da dogmática, redescobre o mundo filosófico e sociológico em busca da prudência perdida [...] (2008, p.74)

Assim, para o direito são essenciais a sociologia e a filosofia, dentre outras formas de conhecimentos. O direito não pode bastar em si, é de suma importância ampliar o seu objeto e ter maior noção dos porquês em torno daquela realidade observada. Ter uma visão multidimensional ou interdisciplinar aplicando ao direito um estudo da realidade social é imperioso para que suas normas sejam obedecidas, caso contrário a “culpa” será do próprio direito.

-Exato. É preciso exigir de cada um o que cada um pode dar – replicou o rei.- A autoridade se baseia na razão. Se ordenares a teu povo que ele se lance ao mar, todos se rebelarão. Eu tenho o direito de exigir obediência porque minhas ordens são razoáveis. (SAINT-EXUPÉRY, 2009, p.38)

No segundo planeta, o príncipe encontra outra figura exótica: o vaidoso. Este habitante era cheio de si, como o próprio nome denuncia. Para ele só importava ser admirado e ouvir elogios. Já no terceiro planeta, havia um bêbado. A razão da sua ebriedade era esquecer a vergonha de beber.

Por mais que pareçam distantes, estes habitantes de planetas deferentes tinham o mesmo problema, qual seja: se perdiam em si mesmos, esquecendo que a possibilidade de escolha faz do homem um agente, e não simplesmente um efeito.

[...] Como se deve entender, com efeito, que o homem faz a História, se, por outro lado, é a História que o faz? O marxismo idealista parece ter escolhido a interpretação mais fácil: inteiramente determinado pelas circunstâncias anteriores, isto é, em última análise, pelas condições econômicas, o homem é um produto passivo, uma soma de reflexos condicionados. Mas este objeto inerte, ao inserir-se no mundo social, em meio a outras inércias igualmente condicionadas, contribui, pela natureza que recebeu, para precipitar ou para frear o ‘curso do mundo’: ele muda a sociedade, como uma bomba que, sem deixar de obedecer ao princípio de inércia, pode destruir um edifício. [...] (SARTRE, 1987, p.149)

Assim como o vaidoso e o bêbado, o Direito não pode ser passivo. Sabe-se que a lei sempre serviu ao titular do poder como fator de ratificação e consolidação de uma realidade dada. De tal maneira que cada vez que há uma mudança significativa do titular do poder, há também a necessidade de nova regulamentação para aquela sociedade. O Direito deve ser agente transformador e não somente agente abalizador tanto para o Estado quanto para o povo.

O príncipe continua a sua viagem e chega ao quarto planeta. Lá encontra o empresário, que de tão preocupado em contar suas estrelas, não se dá conta da inutilidade do que faz. Com o argumento de que fazia algo sério, se perdia na própria futilidade.

O pequeno príncipe tinha, sobre as coisas sérias ideias muito diferentes do que pensava as pessoas grandes.

-Eu – disse ele, ainda – possuo uma flor que rego todos os dias. Possuo três vulcões que revolvo toda a semana. Porque revolvo também o que está extinto. A gente nunca sabe! É útil para meus vulcões, é útil para minha flor que eu os possua. Mas tu não és útil às estrelas... (SAINT-EXUPÉRY, 2009, p.47)

O direito deve ser útil. Não basta que a sociedade, o Estado, as instituições, sejam regulamentadas e devidamente julgadas. O direito deve servir para amparar, ou seja, deverá, sobretudo, abrir possibilidades. É importante ressaltar que o “assunto sério” para o estudo do direito não pode se restringir às leis, às sentenças, mas a tudo que de alguma forma o torne um pouco mais útil na tentativa de consecução da justiça. Como, por exemplo, a proposta deste trabalho: falar em direito na perspectiva da arte é buscar uma sensibilidade perdida e necessária.

No quinto planeta, o pequeno príncipe encontra um acendedor de lampião. Este era o menor planeta visitado pelo principezinho, só tinha espaço para o lampião e seu acendedor. De tão pequeno, um dia passava a cada um minuto. O trabalho do acendedor era incessante, pois a cada instante já era noite e dia. Movido pelo “regulamento”, este habitante executava sua simples tarefa com extrema entrega, mesmo sem compreendê-la.

- Mas por que acabas de acendê-lo de novo?

- É o regulamento – respondeu o acendedor.

- Eu não compreendo – disse o príncipe.

- Não é para compreender – disse o acendedor – Regulamento é regulamento. Bom dia.

E apagou o lampião.

Em seguida, enxugou a testa num lenço xadrez vermelho.

- Eu executo uma tarefa terrível. No passado, era mais sensato. Apagava de manhã e acendia à noite. Tinha o resto do dia para descansar e toda a noite para dormir...

- Depois mudou o regulamento?

- O regulamento não mudou – disse o acendedor. – Aí é que está o problema! O planeta a cada ano gira mais depressa, e o regulamento não muda! (SAINT-EXUPÉRY, 2009, p.48)

Respeitar um regulamento sem nem ao menos compreendê-lo parece um absurdo. Ainda mais quando este regulamento já não acompanha as mudanças naturais naquele planeta. Por maior incoerência que nos pareça, repetimos este hábito sem nem ao menos perceber. Quando, por exemplo, nos deixamos levar por normas sem conhecer o porquê, sem nem ao menos questioná-las em sua profundidade ou em seu anacronismo. Outro exemplo é trazido por Thomas Kuhn (2009), em “A estrutura das Revoluções Científicas” que nos chama atenção para a importância de ir além da leitura de manuais. Os manuais nos dão uma noção sistemática e reducionista de teorias. Isto é desfavorável para a superação de um paradigma, pois não proporciona ao pesquisador instrumentos para mudança.

Comparemos essa situação com a das ciências naturais contemporâneas. Nessas áreas o estudante fia-se principalmente nos manuais até iniciar· sua própria pesquisa, no terceiro ou quarto ano de trabalho graduado. Muitos currículos científicos nem sequer exigem que os alunos de pós-graduação leiam livros que não foram escritos especialmente para estudantes. Os poucos que exigem leituras suplementares dc monografias e artigos de pesquisa restringem tais tarefas aos cursos mais avançados, e as leituras que desenvolvem os assuntos tratados nos manuais. Até os últimos estágios da educação de um cientista, os manuais substituem sistematicamente a Iiteratura científica da qual derivam. Dada a confiança em seus paradigmas, que torna essa técnica educacional possível, poucos cientistas gostariam de modificá-la. Por que deveria o estudante ele física ler, por exemplo, as obras de Newton, Faraday, Einstein ou Schrodinger, se tudo que ele necessita saber acerca desses trabalhos está recapitulado ele uma forma mais breve, mais precisa e mais sistemática em diversos manuais atualizados? (2006, p.209)

O último planeta visitado pelo pequeno príncipe era habitado por um geógrafo, que conhecia todos os planetas somente de ouvir falar. Em verdade, esse geógrafo nunca tinha sequer saído da sua escrivaninha, apenas anotava relatos de exploradores quando estes lhe pareciam confiáveis.

- É verdade – disse o geógrafo. – Mas não sou explorador. Faltam-me exploradores! Não é o geógrafo quem vai contar as cidades, os rios, as montanhas, os mares, os oceanos, os desertos. O geógrafo é muito importante para ficar passeando. Nunca abandona a sua escrivaninha. Mas recebe exploradores, interroga-os e anota seus relatos de viagem. E quando alguém lhe parece mais interessante, o geógrafo faz um inquérito sobre a moral do explorador. (SAINT-EXUPÉRY, 2009, p. 51-52)

Esta figura muito se parece com muitos dos juízes. Os julgadores pouco se preocupam com a realidade fora do processo. Como assevera o brocardo jurídico, “o que não está nos autos, não está no mundo”. Mas que mundo é este? O mundo dos autos? Nosso mundo não está restrito aos relatos de um processo. Se para o juiz importa encontrar a verdade puramente formal, ele cumprirá seu objetivo apenas com a leitura dos autos. Mas, se ao contrário, seu alvo for a verdade substancial (ou real), certamente não a encontrará somente com os relatos do processo. É a essência da justiça que deve ser perquirida e não apenas a jurisdição.


5 CONCLUSÃO

O direito é uma ciência que pode e deve dialogar com a arte. No caso deste trabalho, os paralelos elaborados entre o mundo jurídico e o livro O Pequeno Príncipe são inspiradores para uma nova visão do direito.

O piloto, depois de ter conversado com o príncipe e, como consequência, ter estabelecido uma relação de amizade com ele, mudou a sua percepção do mundo e daquilo que lhe era essencial. O objetivo deste trabalho foi de promover esta conversa do pequeno príncipe com o direito, e assim também abrir novas janelas no mundo do leitor, ampliando seus horizontes.


REFERÊNCIAS

CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2008. Tradução de: A. Menezes Cordeiro.

DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. 4ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2011. Tradução de: Maria Beatriz Marques Nizza da Silva, Pedro Leite Lopes e Pérola de Carvalho.

GOULD, Stephen J. A falsa medida do homem. São Paulo: Martins Fontes, 1999. Tradução: Valiér Lellis Siqueira.

KUHN, Thomas S.. A estrutura das revoluções científicas. 9. ed. São Paulo: Perspectiva, 2006. Tradução de: Beatriz Vianna Doeira e Nelson Boeira.

POPPER, Karl. Lógica das ciências sociais. 3ª ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2004. Tradução de Estevão de Rezende Martins, Apio Cláudio Muniz Acquarone Filho e Vilma de Oliveira Morais e Silva.

SAINT-EXUPÉRY, Antoine de. O Pequeno Príncipe. 48. ed. Rio de Janeiro: Agir, 2009. 92 p. Tradução de: Dom Marcos Barbosa.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Um Discurso Sobre as Ciências. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2008. 92 p. Tradução de: Dom Marcos Barbosa.

SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo; A imaginação; Questão de método / Jean-Paul Sartre; seleção de textos de José Américo Motta Pessanha; traduções de Rita Correia Guedes, Luiz Roberto Salinas Forte, Bento Prado Júnior. – 3 ed. – São Paulo : Nova Cultural, 1987.


THE LITTLE PRINCE AND THE LAW: A MOTIVATIONAL DIALOGUE.

ABSTRACT

The Art was born to inspire, raise awareness, all those who try to see the world and express through it. But the law has always been linked to the representation of something serious, without much room for subjectivity. The idea of relating the law and art may seem strange, but it is extremely rewarding. This paper aims to address some issues of the legal world from the book The Little Prince. Some prince's adventures will be raised, as well as its relationship with law. This dialogue should serve to inspire both the operator of the law, as well as those who want to find in law what may be invisible to the eyes.

Keywords: Law, little prince, pilot, subjectivity, paradigm, content, meaning, justice.

Sobre as autoras
Andresa Silva de Amorim

Advogada, bacharel em Direito pela Faculdade Ruy Barbosa, pós-graduanda do MBA em Planejamento Tributário pela UNIFACS, Mestranda em Direito Público pela UFBA.

Andrea Biasin Dias

Advogada, bacharel em Direito pela Universidade Católica do Salvador, pós-graduada em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia, mestranda em Direito Público pela mesma instituição. Professora do curso de Direito da Faculdade Maurício de Nassau.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AMORIM, Andresa Silva; DIAS, Andrea Biasin. O Pequeno Príncipe e o Direito:: um diálogo inspirador. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3850, 15 jan. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26399. Acesso em: 22 nov. 2024.

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