A competência para o processamento de feitos relativos a benefícios previdenciários, em regra, é da Justiça Federal, uma vez que a legitimidade passiva das ações é do Instituto Nacional do Seguro Social – INSS, autarquia federal. Assim, há incidência do disposto no art. 109, inc. I, da Constituição Federal:
“Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:
I - as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho;”.
Nota-se que o próprio art. 109, inc. I, da CF, traz importante exceção. Trata-se dos “benefícios acidentários”, ou seja, quando o benefício for decorrente de acidente de trabalho a competência passa a ser da Justiça Estadual - ainda que haja Justiça Federal instalada na localidade -, conforme prevê a segunda parte do dispositivo acima transcrito.
Temos, portanto, uma situação atípica, na qual uma autarquia federal figura como ré no âmbito estadual.
A justificativa comumente dada para a existência da regra é que no Poder Judiciário Estadual há uma maior aproximação do julgador aos fatos, o que ocasionaria maior amplitude da prestação jurisdicional.
Em que pese a literalidade da Constituição Federal, a norma não é isenta de críticas. O autor José Antônio Savaris questiona que, atualmente, com a interiorização da Justiça Federal, criação dos Juizados Especiais Federais, facilitação de acesso à Justiça em geral, o tema deveria ter abrigo no âmbito federal, juízo mais preparado para lidar com as questões previdenciárias.
Segundo o jurista, a norma se justificava em outros tempos, quando a Justiça Federal não tinha estrutura suficiente, o que poderia causar prejuízos ao segurado acidentado:
“A mesma disposição de abertura ao mundo real na solução de problemas jurídicos nos conduziria, atualmente, à alteração de um entendimento jurisprudencial que apenas guardava sentido em face da realidade social de seu tempo. A sensibilidade à urgência necessária ao processo que envolve uma pessoa hipossuficiente na busca de benefício para subsistência (independentemente da circunstância da contingência social resultar ou não de um acidente de trabalho) e o novo elemento constitucional na estrutura do Poder Judiciário (Juizados Especiais Federais) constituem razões jurídicas suficientes para se colocar termo a uma irracional repartição de competência jurisdicional”.
Nesse contexto, trazemos o questionamento acerca da adequação da competência da Justiça Estadual para as lides previdenciárias decorrentes de acidente de trabalho especificamente para os casos que envolvam o segurado especial. Entendemos que, notadamente em tais situações, acentua-se a incongruência e o equívoco de uma interpretação restritiva da opção do legislador constituinte, a qual contraria a efetividade do processo.
De fato, atualmente é possível, e talvez até comum, a existência de uma decisão mais célere no Juizado Especial Federal que no rito ordinário da Justiça Estadual.
Inicialmente, contudo, cumpre definir a categoria do “segurado especial”.
A Constituição Federal, apesar de não ter conceituado o segurado especial, apresentou seus principais elementos, necessários para seu enquadramento como segurado da Previdência Social:
“Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais:
(...)
§ 8º O produtor, o parceiro, o meeiro e o arrendatário rurais e o pescador artesanal, bem como os respectivos cônjuges, que exerçam suas atividades em regime de economia familiar, sem empregados permanentes, contribuirão para a seguridade social mediante a aplicação de uma alíquota sobre o resultado da comercialização da produção e farão jus aos benefícios nos termos da lei.”
O legislador ordinário, no art. 12, inc. VII, da Lei n.º 8.212/1991, com as alterações trazidas pela Lei n.º 11.178/2008, traz a seguinte definição:
“Art. 12. São segurados obrigatórios da Previdência Social as seguintes pessoas físicas:
(...)
VII – como segurado especial: a pessoa física residente no imóvel rural ou em aglomerado urbano ou rural próximo a ele que, individualmente ou em regime de economia familiar, ainda que com o auxílio eventual de terceiros a título de mútua colaboração, na condição de:
a) produtor, seja proprietário, usufrutuário, possuidor, assentado, parceiro ou meeiro outorgados, comodatário ou arrendatário rurais, que explore atividade:
1. agropecuária em área de até 4 (quatro) módulos fiscais; ou
2. de seringueiro ou extrativista vegetal que exerça suas atividades nos termos do inciso XII do caput do art. 2º da Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000, e faça dessas atividades o principal meio de vida;”.
O segurado especial possui forma diferenciada de contribuição, pois contribui para a Previdência a partir de um percentual sobre o resultado da comercialização dos produtos.
Faz jus à proteção previdência de forma similar aos demais segurados, tendo direito aos benefícios de aposentadoria por idade, aposentadoria por invalidez, auxílio-doença, auxílio-acidente, pensão por morte, auxílio-reclusão, salário-maternidade e salário-família. No entanto, os benefícios são limitados ao salário-mínimo e ele não possui direito à aposentadoria especial e aposentadoria por tempo de contribuição (a não ser que contribua como facultativo, situação na qual terá direito igual ao contribuinte individual).
Nas lides que dizem respeito ao segurado especial, o requisito primordialmente discutido é o enquadramento da parte autora na qualidade de segurado especial, ou seja, deverá comprovar em juízo que é agricultor em regime de economia familiar, com os demais balizamentos legais (tamanho da propriedade, inexistência de empregados, etc.).
No tocante aos benefícios por incapacidade (auxílio-acidente, auxílio-doença e aposentadoria por invalidez), a matéria a ser objeto de prova em juízo notadamente será relativa a 02 pontos: a comprovação da incapacidade e da qualidade de segurado especial.
Nesse passo, é que destacamos a inadequação da competência da Justiça Estadual para os processos previdenciários do segurado especial, ainda que a incapacidade que acometa o autor seja decorrente de acidente de trabalho.
Com efeito, a incapacidade decorrer de acidente de trabalho em nada interferirá no deslinde da causa. Os requisitos que devem ser preenchidos, como dito, são a existência de incapacidade e a qualidade de segurado especial. O fato de um segurado ter adquirido esta incapacidade em um acidente de trabalho ou não, não terá relevância alguma.
Tratando-se de segurado especial, não será importante discutir se houve acidente de trabalho. O que estará em discussão será somente se o segurado está incapaz, e não a configuração do acidente de trabalho em si. Ademais, não se aplica a exigência de existência da CAT – Comunicação de acidente do trabalho, requisito necessário no caso dos segurados empregados.
Mais que isso, ocorre uma injustificável distinção, a ferir o princípio da isonomia. De fato, um segurado especial que ficou incapaz, por exemplo, em razão de ter se ferido com a enxada ao realizar uma plantação, caso necessite procurar o Poder Judiciário para pleitear o benefício de auxílio-doença, o juízo competente será a Justiça Estadual, por se tratar de acidente de trabalho. Já o segurado especial que de outro modo tenha se ferido em seu sítio, porém sem estar trabalhando no momento, acionará a Justiça Federal, pois não houve acidente de trabalho.
É fácil notar que a situação poderá dificultar ao segurado especial, na maioria das vezes pessoas simples, o exercício de seus direitos, especialmente o acesso ao Judiciário.
Apesar de não existir jurisprudência ampla sobre o tema, já foram proferidas decisões em consonância com o entendimento narrado. Cite-se acórdão proferido pela Turma Regional de Uniformização do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, no qual se reconheceu a competência da Justiça Federal para a situação em comento:
“INCIDENTE DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA. PREVIDENCIÁRIO. AUXÍLIO-DOENÇA. ACIDENTE DE TRABALHO. SEGURADO ESPECIAL. COMPETÊNCIA JUSTIÇA FEDERAL.
1. É de competência da Justiça Federal o julgamento das causas envolvendo pedido de concessão de benefício previdenciário, decorrente de acidente de trabalho do segurado especial.
2. Incidente conhecido e provido”.
(INCIDENTE DE UNIFORMIZAÇÃO JEF Nº 0001110-58.2008.404.7064/PR, RELATOR : Juiz Federal ALBERI AUGUSTO SOARES DA SILVA, julgado em 01/04/2011).
No mesmo sentido, confira-se decisão da 1ª Turma Recursal da Seção Judiciária do Paraná:
“AUXÍLIO-DOENÇA ACIDENTÁRIO. INCAPACIDADE DECORRENTE DE ACIDENTE DE TRABALHO. SEGURADO ESPECIAL. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL.
1. No caso do segurado especial, é da Justiça Federal a competência para processar e julgar demanda em que se busca a concessão de benefício previdenciário decorrente de acidente de trabalho, não se aplicando a regra inserta no artigo 109, I, da Constituição Federal.
2. Não havendo controvérsia sobre a caracterização da ocorrência de acidente de trabalho e não sendo relevante a identificação de eventual responsabilização de outrem em razão deste, tal como ocorre no caso do segurado especial que trabalha em regime de economia familiar, não há razão para que a competência seja firmada na Justiça Estadual, pois toda a matéria em discussão é de competência do juiz federal.
3. Justifica-se ainda a competência da Justiça Federal para processar e julgar os pedidos judiciais de concessão de benefício a segurados especiais pelo fato de que a comprovação da qualidade de segurado especial é matéria estranha à competência da Justiça Estadual, nos termos do art. 109, I da CF”.
(R.I 2007.70.60.000808-0. Julgado em 26/02/2009, Juíza Federal Ana Beatriz Vieira da Luz Palumbo). (grifou-se).
No âmbito dos Tribunais Superiores, assim já decidiu o Superior Tribunal de Justiça:
“PREVIDENCIÁRIO. CONFLITO DE COMPETÊNCIA. COMPROVAÇÃO DA QUALIDADE DE SEGURADO ESPECIAL, NA CONDIÇÃO DE TRABALHADOR RURAL, PARA FINS DE CONCESSÃO DE BENEFÍCIO ACIDENTÁRIO. PARECER DO MPF PELA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL.
1. A jurisprudência deste Tribunal Superior é assente quanto à competência residual da Justiça Estadual para processar demanda relativa a acidente de trabalho. Entretanto, a comprovação da qualidade de segurado especial, para fins de concessão de benefício perante a Autarquia Previdenciária, como no caso, é matéria estranha à competência da Justiça Estadual, devendo ser a demanda processada pela Justiça Federal, nos termos do art. 109, I da CF.
2. Somente seria possível o processamento da presente ação no Juízo Estadual, se a Comarca do domicílio do segurado não fosse sede de Vara Federal, o que, entretanto, não configura a hipótese dos autos.
3. Conflito de Competência conhecido para declarar a competência do Juízo Federal da 17a. Vara da Subseção Judiciária de Petrolina da Seção Judiciária de Pernambuco, o suscitante, para processar e julgar a presente demanda, inobstante o parecer do MPF”.
(CC 86797 PE 2007/0137857-6, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, julgado em 22.08.2007, Terceira Seção). (grifou-se).
Entretanto, as decisões de tribunais sobre o tema ainda são escassas, a nosso ver em decorrência de as ações continuarem a ser ajuizadas na Justiça Estadual, sem questionamentos sobre a competência.
Entendemos que o assunto merece uma maior exploração doutrinária e jurisprudencial, de forma a evoluir para que seja firmada a competência da Justiça Federal para o processamento das ações judiciais dos segurados especiais relativas a acidentes de trabalho.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Conflito de Competência 86797 PE 2007/0137857-6. Órgão julgador: Terceira Seção. Relator: Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO. Julgado em 22/08/2007. Publicação/Fonte: DJ de 03/09/2007.
BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Incidente de Uniformização JEF Nº 0001110-58.2008.404.7064/PR. Órgão julgador: Turma Regional de Uniformização. Relator: Federal ALBERI AUGUSTO SOARES DA SILVA. Julgado em 01/04/2011. Publicação/Fonte: http://www2.trf4.jus.br/trf4/controlador.php?acao=consulta_processual_resultado_pesquisa&txtPalavraGerada=wfaq&hdnRefId=f65b8ff8ff8ef5e5bd48f70ae0e52b7e&selForma=NU&txtValor=00011105820084047064&chkMostrarBaixados=1&todasfases=&todosvalores=&todaspartes=&txtDataFase=&selOrigem=TRF&sistema=&codigoparte=&txtChave=&paginaSubmeteuPesquisa=letras, consulta em 10/01/2014.
BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Recurso Inominado n.º 2007.70.60.000808-0. Órgão julgador: 1ª Turma Recursal da Seção Judiciária do Paraná. Relator: Juíza Federal Ana Beatriz Vieira da Luz Palumbo. Julgado em 26/02/2009. Publicação/Fonte:
http://www5.jfpr.jus.br/arquivos_ndoc/tr/200770600008080_ementa.pdf, consulta em 10/01/2014.
IBRAHIM, Fábio Zambitte. Curso de Direito Previdenciário. 15ª ed., Rio de Janeiro: Impetus, 2010.
KERTZMAN, Ivan. Curso Prático de Direito Previdenciário. 9ª ed., Salvador: Editora JusPodivm.
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VIANNA, João Ernesto Aragonés. Curso de direito previdenciário. 5. ed., São Paulo: Atlas, 2012.