4. DIFERENÇA ENTRE AS TUTELAS CAUTELARES E AS TUTELAS ANTECIPADAS: FUNGIBILIDADE (ART. 273, § 7º, DO CPC)
A satisfatividade é o melhor critério para distinguir a antecipação da tutela de mérito do processo cautelar[59]. Contudo, diante da tradição da doutrina e da jurisprudência, antes de editada a Lei n. 8.952, de 1994, de utilizar o processo cautelar como forma de dar efetividade à tutela jurisdicional[60], inclusive no que concerne às medidas satisfativas, hoje é dificultosa a precisa divisão entre as cautelares e antecipatórias.
A Lei n. 8.952/94 de fato é um divisor de águas, na medida em que afasta do processo cautelar as medidas eminentemente satisfativas, deixando para ela apenas a tutela do processo.
É certo, todavia, que esse não é o único critério diferenciador, conforme se verifica abaixo:
a. A antecipação dos efeitos da tutela de mérito poderá ser requerida por meio de simples petição (inclusive, como é comumente utilizada, no bojo da petição inicial), não necessitando de maiores formalidades como recolhimento de custas, formação de processo em separado. Já o processo cautelar é processo autônomo, passível de recolhimento de custas, juízo em separado de admissibilidade, inclusive no que dispõe o art. 282, do CPC. De igual modo, apenas ao processo cautelar é imposta a obrigação prevista no art. 806, do CPC[61];
b. A medida do art. 273 não é dotada de autonomia procedimental, vale dizer, seguirá o procedimento na qual é requerida, inclusive no que concerne ao momento do pleito antecipatório; por outro lado, as medidas do Livro III, do CPC, possuem franca autonomia procedimental.
c. A prova que é necessária para concessão da tutela antecipatória é consideravelmente mais robusta do que a prova do processo cautelar, pois enquanto o primeiro necessita de prova inequívoca e verossimilhança das alegações ou segundo se contenta com o fumus boni iuris e o periculum in mora.
d. As medidas antecipatórias podem ser concedidas com base na tutela de urgência (nesse ponto, como salientado acima, inclusive nas hipóteses de abuso de defesa há, presumivelmente, certa urgência do demandante) ou com base na tutela da evidência; ao passo que a tutela cautelar estará sempre baseada na tutela de urgência.
Nem sempre, todavia, a distinção entre uma e outra situação é feita de forma tranquila pela doutrina e pela jurisprudência, fato que levou o legislador a editar a norma prevista no §7º, do art. 273, do CPC, qual seja, a regra da fungibilidade entre as tutelas cautelares e antecipatórias.
A fungibilidade, diz a doutrina dominante, é via de mão dupla[62].
Em que pese a ampla aceitação doutrinária e jurisprudência do tema, há alguns pontos que merecem melhor esclarecimento. De fato, como bem observa Cândido Rangel Dinamarco, a fungibilidade pressupõe via de mão dupla, porém não está claro que o parágrafo sétimo quis deferir precisamente a fungibilidade.
Como salientado acima, a medida antecipatória não tem autonomia procedimental, de modo que não há espaço para que seja verificado o procedimento específico das cautelares no bojo do próprio processo principal. Nessa senda, não vislumbramos prejuízo na conversão expressamente prevista no dispositivo, porquanto as providência serem adotadas pelo demandante e pela serventia seriammeramente burocráticas e não teriam o condão de criar obstáculos para os litigantes.
O oposto, contudo, parece não ser verdadeiro. Em se admitindo a fungibilidade, ao menos no caso das cautelares preparatórias, haveria grave problema de insegurança jurídica[63], pois eventual emenda à petição inicial para adequar a medida cautelar ao processo principal implicaria alteração substancial do libelo (praticamente uma substituição), porquanto a causa petendi e o pedido da demanda principal em muito se distanciamdas medidas cautelares ante a ausência de satisfatividade. De igual modo, deverá o autor proceder com diversos ajustes como a adequação do valor da causa, do pedido de provas, inclusive daquelas oferecidas juntamente com a petição inicial, o que parece causar tumulto processual de difícil superação.
O processo, com efeito, se tornaria uma colcha de retalhos prejudicada a clareza dos pedidos e respectivas causas de pedir, ficando extremamente difícil precisar com a segurança necessária os reais contornos da demanda (princípio dispositivo) e os pontos controvertidos.
Entretanto, como dito acima, a doutrina dominante entende pela fungibilidadee o faz com vistas a privilegiar a efetividade, celeridade e economia processual.
5. AS TUTELAS DE URGÊNCIA PREVISTAS NA LEI DE PROPRIEDADE INDUSTRIAL
As tutelas de urgência previstas na Lei de Propriedade Industrial, Lei n.º 9.279, de 1996, despertam certa angústia nos operadores do direito. Os artigos 56, § 2º [64], 173, parágrafo único [65], e 209, §§ 1º e 2º [66], possuem qual natureza?
Conforme buscamos destacar acima, atualmente não há mais espaço para utilização do processo cautelar quando o pedido de provimento jurisdicional for eminentemente satisfativo, vale dizer, quando o requerente da medida pleitear tutela diversa daquela que visa assegurar a eficácia do processo principal.
Não apenas isso, contudo. O processo cautelar é dotado de autonomia procedimental, de modo que os pedidos de urgência do demandante não podem ser deduzidos em simples petição dirigida ao magistrado como é feito nos casos de tutela antecipada.
Ademais, a prova necessária para o deferimento da medida antecipatória é consideravelmente mais robusta do que aquela requerida no caso de medidacautelar. Enquanto aquela necessita de prova inequívoca e verossimilhança das alegações; esta necessita do fumus boni iuris e do periculum in mora.
Para o oferecimento da resposta sobre a natureza das medidas de urgência previstas na Lei de Propriedade Industrial, os aspectos acima se mostram relevantíssimos.
Inicialmente, é necessário asseverar que a redação dos dispositivos em análise contém grande impropriedade. Com efeito, quando se lê na redação dos artigos a expressão “o juiz poderá”, quis o legislador precisar que o magistrado “deverá” deferir a medida de urgência, uma vez constatados os requisitos processuais próprios.
Trata-se da mesma crítica feita pela doutrina ao art. 273, do CPC, sendo que se tornou tese vencedora amplamente aceita a que entende pela completa ausência de discricionariedade do juiz ao examinar os elementos para o deferimento da tutela antecipatória. Havendo os requisitos, ipso facto, a tutela deverá ser concedida; ausentes, deverá ser indeferida.
A natureza das tutelas previstas no art. 56 e 174, da LPI, é antecipatória.
Isso porque as ações previstas em citados dispositivos são ações típicas, por meio das quais o interessado requer a nulidade de uma patente (art. 56) ou a nulidade de uma marca (art. 173), ambas deferidas pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial.
Quer dizer, as ações do art. 56 e 174, da LPI, não se confundem com ações puramente indenizatórias e de abstenção que podem tramitar perante a justiça comum. Nesse caso, a nulidade da patente ou da marca é utilizada como matéria de defesa, não produzindo o efeito erga omines pretendido nas ações típicas previstas na Lei n. 9.279/96.
Com efeito, para se ter acesso às providências contidas no parágrafo 2º, do art. 56, ou no parágrafo únicodo art. 174, ambos da LPI, será necessário aforar ação própria de nulidade do registro, daí porque a ação deverá necessariamente tramitar perante a Justiça Federal em virtude da participação como parte do INPI, autarquia federal responsável pela concessão do registro.
Com efeito, partindo do pressuposto de que o pleito de suspensão liminar dos efeitos do registro e o pleito de nulidade do próprio registro deverão fazer parte da pretensão do interessado, irrecusável a existência de satisfatividade da tutela liminar.
Ou seja, não se busca por meio dos pleitos contidos nos citados dispositivos a tutela do processo; busca-se mitigar os efeitos decorrentes da concessão do privilégio, que é o uso exclusivo por parte do titular do registro diante do flagrante vício de que padece o ato administrativo de concessão.
Parece-nos tranquila a afirmação de que é necessária prova robusta para que seja afastado in limine litis os efeitos do registro concedido pelo INPI mediante longo e custoso processo administrativo, o qual é cercado de garantias a todos os envolvidos. É dizer: não basta o fumus boni iuris, sendo necessária prova inequívoca de que houve vícios (procedimentais ou até mesmo materiais) que evidentemente põe grande dúvida sobre o ato administrativo do INPI.
Portanto, para que seja invalidado judicialmente um registro, é necessário prova robusta de que o ato administrativo está viciado, constituindo a existência do vício o próprio mérito do processo: se o processo administrativo está viciado, então deverá ocorrer a nulidade do ato de concessão; do contrário, sendo adequado o ato administrativo, então a concessão do registro é regular e merece ser mantida.
Pela aplicação da análise sistematizada do processo cautelar e das medidas antecipatórias, não nos parece haver grandes dúvidas de que a natureza dos provimentos tratados nosarts. 56, § 2º,e art. 174, parágrafo único, da LPI, é antecipatória, e não cautelar, pois o provimento não se presta à proteção do processo, o provimento poderá ser requerido ao juiz a qualquer tempo, desde que presentes os requisitos do art. 273, do CPC, e se trata de pleito meramente satisfativo.
É bem verdade que a redação do art. 56, § 2º, da Lei da Propriedade Industrial, prevê que a tutela de urgência lá prevista poderá ser requerida de modo preventivo ou incidental, o que dá margem para interpretação de que o legislador optou pela natureza cautelar do provimento. Contudo, é necessário refutar tal argumento, pois não é função típica do legislador determinar a natureza jurídica de determinado provimento. Tal função cabe à doutrina e à jurisprudência que podem determinar-lhe o âmbito de atuação.
Contudo, é inafastável a possibilidade de aplicação do disposto no art. 273, § 7º, do CPC, haja vista que a fungibilidade entre as tutelas antecipadas e cautelares previstas no citado dispositivo são amplamente aplicadas nas ações que tem como plano de fundo a propriedade industrial.
Necessário caminhar e analisar a hipótese do art. 209, da Lei de Propriedade Industrial. Referido dispositivo possui duas previsões de tutela de urgência, quais sejam, as dos parágrafos primeiro e segundo.
A hipótese do art. 209, parágrafoprimeiro, não poderá ser analisada de forma fria e fora da casuística, pois possui caráter híbrido. Dependendo do pedido do interessado, poderá versar sobre pedido antecipatório ou sobre pedido cautelar. Para facilitar o entendimento, analisemos o dispositivo: “poderá o juiz, nos autos da própria ação, para evitar dano irreparável ou de difícil reparação, determinar liminarmente a sustação da violação ou de ato que a enseje, antes da citação do réu, mediante, caso julgue necessário, caução em dinheiro ou garantia fidejussória”.
É necessário dizer que, diversamente do que ocorre nos arts. 56, § 2º,e art. 174, parágrafo único, da LPI, o dispositivo não possui aplicação restrita às ações típicas de nulidade de marca ou de patente, podendo ser aplicado a qualquer ação judicial em que se discuta violação da propriedade industrial.
Daí, porque, dependendo da situação versada nos autos, o provimento poderá ser cautelar ou antecipatório. Quer dizer, trata-se de cláusula geral colocada à disposição dos interessados para buscar, de forma ampla e afinada com os princípios contidos no art. 2º, da LPI, e no art. 5º, inciso XXIX, da Constituição Federal, a proteção da propriedade industrial.
O provimento do § 2º, do art. 209, da LPI, por outro lado, é eminentemente cautelar típico, já que prevê hipótese de busca e apreensão. Diz o dispositivo que “nos casos de reprodução ou de imitação flagrante de marca registrada, o juiz poderá determinar a apreensão de todas as mercadorias, produtos, objetos, embalagens, etiquetas e outros que contenham a marca falsificada ou imitada”.
Para melhor compreender as tutelas de urgência previstas na Lei n.º 9.279, de 1996, é primordial analisarmos o Agreement on Trade-RelatedAspectsofIntellectualPropertyRights, ou Acordo TRIPS como é mais conhecido. Trata-se de tratado internacional decorrente da Rodada Uruguai, que ocasionou na criação da Organização Mundial do Comércio (OMC) em 1994.
Buscaram os países signatários a criação de nível basilar de proteção da propriedade intelectual (incluindo-se, por óbvio, a propriedade industrial). O TRIPs foi inserido no ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto nº 1.355, de 30 de dezembro de 1994.
Para o presente trabalho importa analisarmos a Seção 3, que corresponde justamente às medidas cautelares. O art. 50, de TRIPS, traz as bases para a interpretação da defesa da Propriedade Intelectual, daí a importância de analisarmos suas disposições.
O item 1, do art. 50, de TRIPS, traz a necessidade de celeridade e de eficácia do provimento de urgência. Trata-se de determinação já prevista na nossa Constituição Federal (art. 5º, incisos XXXV e LXXVIII), mas que merece toda nossa homenagem diante da importância da previsão.
Tais medidas cautelares seriam criadas para a) “evitar a ocorrência de uma violação de qualquer direito de propriedade intelectual, em especial para evitar a entrada nos canais comerciais sob sua jurisdição de bens, inclusive bens importados, imediatamente após sua liberação alfandegária”; e b) “para preservar provas relevantes relativas a uma alegada violação”.
Nota-se, portanto, que as previsões do Acordo Trips possuem natureza cautelar, estando previsto, inclusive, questões procedimentais ligadas à distribuição da demanda principal (parágrafo 6º, do art. 50, do TRIPS). Contudo, tal constatação não tem o condão de afastar as conclusões a que chegamos acima.
Havendo, no entanto, ressalvadas dúvidas sobre a natureza da medida requerida no caso concreto, poderá o magistrado valer-se do quanto dispõe o art. 273, § 7º, do CPC, sendo o caso de fungibilidade das tutelas de urgência nos termos defendidos pela doutrina dominante. Essa, a nosso ver, é importante inovação legislativa, possibilitando ao aplicador do direito, quando possível e necessário, diminuir o abismo entre as duas medidas de urgência em prol do ideal de celeridade e eficácia do provimento jurisdicional[67].