5 O ABORTO NO CENÁRIO INTERNACIONAL
O aborto é uma questão moral altamente controvertida em todo o mundo. As legislações dos diferentes países vão da criminalização e da proibição completa até o acesso praticamente irrestrito à interrupção voluntária da gravidez. Pesquisas sobre o tema têm demonstrado que é notório que as taxas de aborto nos países onde esse procedimento é permitido são muito semelhantes àquelas encontradas nos países onde ele é ilegal. Na verdade, a principal diferença entre os países que escolheram criminalizar essa prática e aqueles que a permitem é a taxa de incidência de abortos arriscados ou com pouca segurança. A criminalização também tem sido vista como uma discriminação de fato contra mulheres pobres que precisam recorrer a métodos primitivos de interrupção da gestação devido à falta de acesso à assistência médica, pública ou privada[27].
A interrupção voluntária da gravidez, principalmente durante o primeiro trimestre de gestação, tem sido amplamente eliminada dos códigos penais, começando com o Canadá (1969), os Estados Unidos (1973) e a França (1975). Diversos outros países seguiram essa tendência, incluindo a Austrália (1975), a Nova Zelândia (1977), a Itália (1978), a Holanda (1980) e a Bélgica (1990). Na Alemanha uma decisão judicial, de 1993, levou à descriminalização do aborto durante o primeiro trimestre, desde que certas condições sejam satisfeitas. Pesquisas comprovam que a maioria dos países desenvolvidos do Atlântico Norte e da Europa descriminalizou o aborto durante os primeiros estágios da gestação, tornando a proibição total uma medida que prevalece, apenas, nos países em desenvolvimento[28].
As dinâmicas na tendência de liberalização do aborto variaram de país para país, bem como as soluções adotadas, de forma que não seria possível discorrer, detalhadamente, o que ocorreu nos inúmeros Estados que modificaram a legislação relativa ao aborto[29], porém, da análise de trechos de alguns julgados que levaram a liberalização dessa prática é possível perceber que todos adotaram como premissa básica a ideia de que a proteção ao feto não é absoluta e deve haver uma ponderação entre a vida do embrião e outros direitos da gestante que não à própria vida. Seguem pois alguns dos entendimentos adotados por Cortes estrangeiras:
5.1 Estados Unidos:
A questão do aborto não está diretamente regulada pela Constituição norte-americana, mas, no famoso caso Roe vs. Wade, julgado pela Suprem Corte, em 1973, entendeu-se que o direito à privacidade envolveria o direito da mulher de decidir sobre a continuidade ou não da sua gestação. Assim:
“O direito de privacidade (...) é amplo o suficiente para compreender a decisão da mulher sobre interromper ou não sua gravidez. A restrição que o Estado imporia sobre a gestante ao negar-lhe esta escolha é manifesta. Danos específicos e diretos, medicamente diagnosticáveis até o início da gestação, podem estar envolvidos. A maternidade ou a prole adicional podem impor à mulher uma vida ou futuro infeliz. O dano psicológico pode ser iminente. A saúde física e mental podem ser penalizadas pelo cuidado com o filho. Há também a angústia, para todos os envolvidos, associada à criança indesejada e também o problema de trazer uma criança para a família inapta, psicologicamente ou por qualquer outra razão, para cria-la. Em outros casos, como no presente, a dificuldade adicional e o estigma permanente da maternidade fora do casamento podem estar envolvidos (...) Nós assim concluímos que o direito de privacidade inclui a decisão sobre o aborto, mas que este direito não é incondicionado e deve ser sopesado em face daqueles importantes interesses estatais[30].
5.2 Itália:
A Corte Constitucional italiana declarou, em fevereiro de 1975, a inconstitucionalidade parcial do art. 546, do Código Penal, que punia o aborto sem excetuar a hipótese de que sua realização poderia implicar em dano ou risco à saúde das gestantes. A seguir, um trecho da Sentença nº18:
(...) o interesse constitucionalmente protegido relativo ao nascituro pode entrar em colisão com outros bens que gozam de tutela constitucional e que, por consequência, a lei não pode dar ao primeiro uma prevalência total e absoluta, negando aos segundos adequada proteção. E é exatamente este o vício de ilegitimidade constitucional que, no entendimento da Cote, invalida a atual disciplina penal do aborto (...) Ora, não existe equivalência entre o direito não apenas à vida, mas também à saúde de quem já é pessoa, como a mãe, e a salvaguarda do embrião, que pessoa ainda pode tornar-se[31].
5.3 Alemanha:
Em 1993, a Corte Constitucional da Alemanha emitiu decisão conhecida como Aborto II; nesse julgamento, ela afirmou que a proteção ao feto não precisava ser, necessariamente, através dos meios repressivos de Direito Penal, mas através de outras medidas de caráter assistencial e administrativo:
Os embriões possuem dignidade humana; a dignidade não é um atributo apenas de pessoas plenamente desenvolvidas ou do ser humano depois do nascimento... Mas, na medida em que a Lei Fundamental não elevou a proteção da vida dos embriões acima de outros valores constitucionais, este direito a vida não é absoluto... pelo contrário, a extensão do dever do Estado de proteger a vida do nascituro deve ser determinada através da mensuração da sua importância e da necessidade de proteção em face de outros valores constitucionais. Os valores afetados pelo direito à vida do nascituro incluem o direito da mulher a proteção e respeito à própria dignidade, seu direito a vida e à integridade física e seu direito ao desenvolvimento da personalidade... Embora o direito à vida do nascituro tenha um valor muito elevado, ele não se estende ao ponto de eliminar todos os direitos fundamentais das mulheres à autodeterminação. Os direitos fundamentais das mulheres podem gerar situação em que seja permissível em alguns casos, e até obrigatório, em outros, que não se imponha à elas o dever legal de levar a gravidez a termo. [32]
5.4 Espanha:
Na decisão em que se analisou a constitucionalidade do Projeto de Lei que previa a alteração do Código Penal, em 1985, a Corte Espanhola adotou, como premissa, a ideia de que a vida do nascituro é protegida pela Constituição, mas não com a mesma intensidade com que se tutela a vida humana após o nascimento, concluindo no sentido da admissibilidade da realização de ponderação entre a vida do embrião e outros direitos da gestante que não a própria vida:
Os casos envolvendo aborto não podem contemplar-se tão somente desde a perspectiva dos direitos da mulher nem desde a proteção da vida do nascituro. Nem esta pode prevalecer incondicionalmente frente àqueles, nem os direitos da mulher podem ter primazia absoluta sobre a vida do nascituro (..). Por isso, na medida em que não se pode afirmar de nenhum deles (os interesses em conflito) seu caráter absoluto, o intérprete constitucional se vê obrigado a ponderar os bens e direitos ... tratando de harmonizá-los se isto for possível ou, em caso contrário, precisando as condições e requisitos em que se poderia admitir a prevalência de um deles.[33]
Hoje, o aborto é permitido na Espanha até a 14ª semana de gestação e, até a 22ª, desde que a gestação possa comprometer a vida ou a saúde da gestante ou constatada malformação no feto, se certificada por dois médicos.
5.5 A criminalização do aborto no Brasil
No Brasil, o aborto é considerado crime, com duas exceções: em caso de risco de vida para a mulher e em caso de estupro[34]. Apesar disso, de acordo com os dados coletados em todo Brasil urbano, uma em cada cinco mulheres entre 18 e 40 anos de idade já realizou pelo menos um aborto. Isso significa que mais de cinco milhões de mulheres em idade reprodutiva, ou 15% das mulheres nessa faixa etária, já realizaram o aborto[35].
As evidências têm demonstrado que a simples proibição do aborto em nada tem contribuído para diminuir sua prática entre as mulheres. Constata-se que países com legislações restritivas apresentam taxas mais elevadas de aborto entre mulheres em idade reprodutiva do que países que asseguram ampla autonomia da mulher em decidir pelo destino da gravidez, nos quais as taxas de aborto estão entre as mais baixas[36].
O assunto ‘aborto’ vem sendo tratado em diferentes tendências com o passar dos anos; a primeira caracterizou-se pelo uso de leis criminais como instrumento de proteção de grau máximo da vida humana; uma segunda tendência é a de regular o acesso ao abortamento por leis de saúde, relacionando as questões de reprodução humana ao direito à saúde[37]; uma terceira tendência, seguindo o exemplo de diversos países, seria/deveria, então, apontar para o uso de leis constitucionais e convenções internacionais dos direitos humanos, que associam o direito ao aborto aos direitos e garantias individuais (liberdade, intimidade, privacidade, autonomia reprodutiva), e sociais (saúde), defendendo o direito da mulher ao aborto voluntário, mesmo que, para isso, sejam satisfeitas determinadas condições.
Embora já existam avanços pontuais no entendimento jurisprudencial pátrio, como o de não ser punível o aborto no caso de fetos anencefálicos[38], as tentativas de alargamento das possibilidades de prática do aborto no Brasil são frustradas; os projetos de leis para a ampliação dos permissivos legais relativos ao abortamento, ou aqueles que preveem a retirada do aborto do rol de crimes, ou, ainda, a legalização da prática, não avançam.
Constata-se, no âmbito do poder executivo brasileiro, que já deveria ter havido a implementação de algumas ações importantes para avanços no plano legal da possibilidade de aborto em nosso país, uma vez que o Governo Federal assumiu, em 2002 e em 2010, através do Programa Nacional de Direitos Humanos 2 e 3[39], o compromisso de apoiar reformas legais que visassem à adequação do Código Penal para a descriminalização do aborto e o alargamento dos permissivos para a prática do aborto legal, em conformidade com os compromissos assumidos pelo Estado brasileiro no marco da Plataforma de Ação de Pequim(1995)[40], como uma questão de direitos humanos relevante.
Não obstante a existência de ações pontuais do setor saúde e de promoção de políticas para as mulheres no âmbito federal, essas, apenas, têm revelado a disposição governamental na discussão e não o efetivo avanço no plano legal da possibilidade de aborto como direito e garantia individual da mulher em nosso país.
À luz desse contexto, procede-se a avaliação da viabilidade de legalização do aborto no Brasil com base no direito público, no direito público privado e no direito interno, visando responder se seria compatível entre esses sistemas a mudança do tratamento legal conferido ao aborto em nosso país.
6 A VIABILIDADE DE LEGALIZAÇÃO DO ABORTO NO BRASIL COM BASE NO DIREITO PÚBLICO, NO DIREITO PÚBLICO PRIVADO E NO DIREITO INTERNO
A Carta Magna Brasileira não trata expressamente do aborto, o que não significa, obviamente, que o tema da interrupção voluntária da gravidez seja um indiferente constitucional; muito pelo contrário, a matéria está fortemente impregnada de conteúdo constitucional na medida em que envolve direitos fundamentais que concernem proteção não só a mulher, mas também, ao feto. Ademais é, na Constituição, que deve ser buscado o norte para o equacionamento jurídico a ser conferido à questão da descriminalização do aborto, devendo qualquer entendimento voltado à interrupção voluntária da gravidez se coadunar com seus preceitos.
É necessário se atentar, ainda, para o caráter constitucional dos tratados internacionais sobre direitos humanos[41], de modo que os preceitos legais infraconstitucionais devem buscar harmonização não só com a Constituição, mas também com os tratados de direitos humanos e demais tratados ratificados pelo país, uma vez que a previsão do art. 5º, §2º, da Carta de 1988, dispõe que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes dos tratados internacionais de que o Brasil é integrante.
Como esclarecido anteriormente, um argumento muito forte para os segmentos que reprovam a liberalização do aborto seria a incompatibilidade instransponível entre a legalização e o Pacto de San José da Costa Rica, e um argumento muito forte para aqueles que defendem a liberalização do aborto seria o da proteção à vida do nascituro não ser equivalente àquela proporcionada à vida após o nascimento, com respaldo não só no Pacto de Direitos Civis e Políticos, mais ainda na Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher, no Plano de Ação da Conferência sobre População e Desenvolvimento do Cairo de 1994 e pela Declaração e Plataforma de Ação de Pequim de 1995[42].
Ocorre que, mesmo para quem atribua caráter constitucional ao Pacto de San José da Costa Rica, não se pode conferir peso absoluto à proteção da vida embrionária quando a saúde da mulher, a privacidade, a autonomia reprodutiva e a igualdade são valores contidos não só na Constituição da República, como também em outros tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo nosso país, a exemplo do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e da Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher.
Esse posicionamento, conforme já demonstrado, foi adotado por diversos países e encontra total respaldo em nosso sistema normativo. Observa-se que a Carta de 1988, em seu artigo 226, parágrafo 7º, está afinada com os parâmetros internacionais, na medida em que afirma o planejamento familiar como livre decisão do casal (e dos indivíduos), cabendo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito (prestação estatal positiva, típica dos direitos sociais), vedada qualquer coerção (prestação estatal negativa, típica dos direitos civis). A Lei 9.263, de 12 de janeiro de 1996, veio regulamentar o aludido preceito constitucional, tratando do planejamento familiar, no âmbito do atendimento global e integral à saúde. Em seu artigo 2º, a Lei define o planejamento familiar como ‘o conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal’. O parágrafo único desse artigo proíbe a utilização de tais ações para qualquer tipo de controle demográfico[43].
Cabe ao País, em vez de interferir nas decisões sobre a reprodução, livre de discriminação, coerção ou violência, adotar políticas públicas garantidoras do direito à saúde sexual e reprodutiva, dimensão típica dos direitos sociais[44], bem como criar mecanismos extrapenais para evitar a banalização da prática. A mudança da legislação pátria relativa ao aborto baseia-se não só em argumento fáticos e políticos, mas principalmente em argumentos jurídicos:
No plano jurídico, a criminalização do aborto viola os chamados direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, amparados pela Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento do Cairo de 1994, bem como pelas Conferências de Copenhagem de 1994 e de Pequim de 1995. A criminalização do aborto resulta, assim, como uma violação a direitos humanos internacionalmente protegidos, em particular nas esferas da sexualidade e reprodução. Importa reiterar que a comunidade internacional, por meio de comitês da ONU sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher (CEDAW), e sobre Direitos Humanos (PIDCP) recomendou ao Estado brasileiro a adoção de medida que garantem o pleno exercício dos direitos sexuais e reprodutivos. Este comitês enfatizaram a necessidade de revisão da legislação punitiva com relação ao aborto a fim de que o mesmo seja enfrentado como grave problema de saúde pública. [45].
Apesar disso, há uma falta de ação do poder legislativo brasileiro, que parece deixar prevalecer questões culturais e socioeconômicas para a mudança da lei restritiva brasileira, que não mais é compatível com o conjunto de novos valores e vivências. Sabe-se que o Código Penal Brasileiro é de 1940 e foi elaborado no contexto de uma sociedade profundamente machista, e num momento político autoritário, em que a liberdade e os direitos sexuais não eram devidamente prezados, porém, hoje, não há como se negligenciar os valores que têm sido incorporados e aceitos como elementos da vida moderna em especial nos grandes centros urbanos do país como, por exemplo, a liberdade sexual para homens e mulheres, a difusão de métodos contraceptivos, a divulgação e uso da camisinha como elemento moderno de garantia de vida e de saúde no contexto da AIDS, o reconhecimento da maternidade solteira, etc.[46].
Ademais, a observância da legislação internacional e, em particular daquela relativa a direitos humanos, se constitui em diretriz relevante nos dias atuais, uma vez que a Carta Magna Brasileira, ao consagrar a prevalência dos direitos humanos como princípio a reger a ordem constitucional[47], se compromete não apenas com o engajamento do país no processo de elaboração de normas vinculadas ao Direito Internacional dos Direitos Humanos, mas sim na busca da plena integração de tais regras na ordem jurídica interna brasileira[48], de modo que o Estado, ao adotar determinado tratado internacional de direitos humanos, passa a ter o dever de equacionar o direito interno com as obrigações internacionalmente assumidas.