Resumo: O imóvel tombado na propriedade das pessoas políticas está no destino final previsto pela norma constitucional. Está na propriedade daquele que tem o dever constitucional de preservá-lo, e que tem o poder político-constitucional de instituir tributos e de destinar recursos na elaboração da lei orçamentária para a manutenção, revitalização e restauração dos imóveis tombados. A interpretação que melhor atende ao interesse público é a que autoriza a alienação de imóveis tombados de propriedade de autarquias e fundações públicas a particulares, pois, como a transferência se dará com as restrições impostas pelo tombamento, o particular-adquirente saberá que a exploração econômica do bem deverá ser feita de modo a preservá-lo; ao mesmo tempo, as referidas pessoas jurídicas de direito público estarão auferindo receita para investirem na prestação de serviços públicos à população.
Palavras-chave: Direito administrativo. Tombamento. Patrimônio histórico e cultural. Bens públicos. Alienação.
1. Considerações iniciais
A teoria geral do Direito ensina que os elementos de um Estado são povo, território e governo soberano, bem como que a Constituição representa o ponto de partida normativo de qualquer Estado, na medida em que faz a divisão do poder, estabelece as competências dos diversos órgãos estatais e os direitos e deveres dos seus cidadãos.1
No Estado brasileiro, a Constituição Federal de 1988 fixou como competência comum da União, dos Estados e dos Municípios “proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos” (artigo 23, III), e como competência concorrente dessas pessoas políticas legislar sobre “proteção ao patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico” (artigo 24, VII).
A União descentralizou a sua competência para proteção do patrimônio histórico, artístico e cultural com a criação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), autarquia vinculada ao Ministério da Cultura.2 Especificamente sobre o instituto do tombamento, o IPHAN editou o Parecer nº 044/2010-PF/IPHAN/SEDE/GM, que concluiu o seguinte:
a) são inalienáveis os bens públicos dominicais objeto de tombamento federal, nos termos do art. 11. do Decreto-Lei nº 25/37;
b) são inalienáveis os bens públicos dominicais objeto de tombamento estadual e municipal quando houver previsão legal expressa na respectiva legislação estadual e municipal ou nas hipóteses em que estas adotem o Decreto-Lei nº 25/37;
c) não é pacífica a aplicação do Decreto-Lei nº 25/37 aos bens objeto de tombamento estadual e municipal, existindo entendimento no sentido de que o referido decreto-lei abrange apenas os bens de interesse da União, regulando somente a proteção federal; bem como entendimento, no sentido de que o Decreto-Lei nº 25/37 se constitui em norma geral, de observância obrigatória pelos Estados e Municípios, corrente esta a que nos filiamos;
d) a adoção do entendimento que preconiza a aplicação do Decreto-Lei nº 25/37 aos tombamentos efetivados na esfera estadual e municipal conduz à inalienabilidade dos bens públicos tombados, mesmo nas hipóteses de ausência de legislação municipal ou estadual prevendo expressamente a vedação à alienação.3
Este é o tema deste ensaio: a possibilidade de autarquias e fundações públicas alienarem os imóveis de sua propriedade, que foram tombados por órgão federal, estadual ou municipal de proteção ao patrimônio histórico e artístico, a pessoas naturais ou jurídicas de direito privado.
2. A alienação por autarquias e fundações públicas de imóveis tombados a particulares.
O presente estudo versa sobre a possibilidade de as autarquias e fundações públicas alienarem os imóveis de sua propriedade, que foram tombados por órgão federal, estadual ou municipal de proteção ao patrimônio histórico e artístico, a pessoas naturais ou jurídicas de direito privado.
Segundo Marçal Justen Filho,
o tombamento consiste num regime jurídico específico, imposto por ato administrativo unilateral de cunho singular, quanto ao uso e fruição de coisa determinada, cuja conservação seja de interesse da coletividade e consistente em dever de manter a identidade dele, podendo gerar direito de indenização.4
Depreende-se do conceito supra que o ato de tombar é um poder conferido ao Estado de interferir na propriedade, limitando o exercício deste direito real, em razão da importância do bem para a sociedade. Sua disciplina legal está prevista no Decreto-Lei nº 25/37, que organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional. A expressão “tombamento”, por sua vez, origina-se nos livros onde os imóveis com restrição a propriedade eram registrados. Esses imóveis eram inscritos nos “arquivos do Reino, guardados na Torre do Tombo”5. Mantendo essa origem, o Decreto-Lei nº 25/37 prevê que os imóveis tombados só serão considerados parte integrante do patrimônio histórico o artístico nacional, depois de inscritos separada ou agrupadamente num dos quatro Livros do Tombo (artigo 1º, § 1º). Contudo, antes de se falar em alienação de bem imóvel tombado da Administração Pública, revela-se importante definir a espécie de bem público que pode ser objeto de atos negociais.
Os bens públicos dividem-se em de uso comum, de uso especial e dominicais. Nos termos do artigo 99 e seguintes do Código Civil, os bens de uso comum do povo são aqueles utilizados por toda a coletividade sem que haja apossamento individual, tais como rios, mares, estradas e praças; os bens de uso especial são aqueles destinados ao estabelecimento da Administração Pública, como, por exemplo, os imóveis-sede das entidades públicas; os bens dominicais, por fim, constituem o patrimônio das pessoas jurídicas de direito público, como objeto de direito pessoal ou real, de cada uma dessas entidades. Os bens públicos de uso comum do povo e os de uso especial são inalienáveis enquanto conservarem essas qualificações. Já os bens públicos dominicais podem ser alienados, observadas as exigências da lei. A qualificação do bem em especial ou dominical depende da existência de afetação, ou seja, do ato de a Administração Pública atribuir determinada destinação específica ao bem de sua propriedade.
Tanto as operações de afetação quanto de desafetação são da competência única e exclusiva da pessoa jurídica proprietária do bem, a quem também se reconhece, como bem pontua Diógenes Gasparini, “a competência exclusiva para dizer se e quando um bem que integra seu patrimônio poderá ser afetado ou desafetado”6. Lucas Rocha Furtado explica de forma clara o instituto de afetação/desafetação ao consignar que,
a rigor, a necessidade de desafetação, mais do que condição jurídica, é requisito lógico à alienação de qualquer bem público. Consideremos, por exemplo, a alienação de veículo do serviço. Seria ilógico admitir que referido bem pudesse ser alienado e, ainda assim, continuar afetado à prestação de serviço público. A sua desafetação ocorre, todavia, com a sua simples exclusão da frota de serviço e o seu encaminhamento ao órgão responsável pela alienação.7
O referido autor continua a explicação discorrendo acerca do procedimento a ser observado para o ato de afetação ou desafetação: “a afetação ou desafetação podem decorrer de atos formais, praticados pelo Poder Público, ou de fatos administrativos. (...) Caso a afetação tenha decorrido de fato formal, é necessário que se pratique outro da mesma natureza para sua desafetação”8.
Outrossim, sabidamente o Estado está jungido à lei. Afora o conceito clássico de que, pelo princípio da legalidade, a Administração Pública só pode fazer o que a lei autoriza, à sua conceituação técnica geralmente são conferidos dois sentidos. A reserva de lei, ou seja, a necessidade de que a atuação administrativa fundamente-se na vontade popular consolidada em lei pelos seus representantes eleitos, e a primazia da lei e do Direito, segundo a qual toda a conduta administrativa contrária a lei deve ser declarada inválida por quem tenha legitimidade para fazê-lo9. Nessa seara, violando-se qualquer regra legal, estar-se-á, simultaneamente, violando-se o princípio da legalidade.
Assim, além da desafetação, toda e qualquer alienação de bens imóveis da Administração Pública deve observar os requisitos trazidos pelo artigo 17, inciso I, da Lei n.º 8.666/93, que exige a existência de interesse público, avaliação prévia, autorização legislativa e licitação na modalidade de concorrência, dispensada essa em alguns casos arrolados nas alíneas do referido inciso I do artigo 17.
A discussão sobre a possibilidade de as autarquias e fundações públicas alienarem os imóveis de sua propriedade, que foram tombados por órgão federal, estadual ou municipal de proteção ao patrimônio histórico e artístico, a pessoas naturais ou jurídicas de direito privado, no plano legal, configura conflito aparente de normas, mais especificamente entre o artigo 11 do Decreto-Lei nº 25/37 e o dispositivo de cada autarquia ou fundação pública que fixa a sua missão institucional. O referido artigo 11 tem a seguinte redação:
Decreto-Lei nº 25/37:
Art. 11. As coisas tombadas, que pertençam à União, aos Estados ou aos Municípios, inalienáveis por natureza, só poderão ser transferidas de uma à outra das referidas entidades.
Parágrafo único. Feita a transferência, dela deve o adquirente dar imediato conhecimento ao Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
Nesse ponto, utiliza-se como parâmetro de estudo a situação do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), pois, além de possuir um grande número de imóveis recebidos em execuções fiscais de contribuições previdenciárias, foi a autarquia que provocou a manifestação do IPHAN sobre o tema. Para o INSS é pacífica a interpretação de que a autorização legislativa para que aliene os seus bens imóveis considerados desnecessários ou não vinculados a suas atividades operacionais consiste numa ordem jurídica de alienação. Essa posição foi firmada pelo Tribunal de Contas da União (TCU) em consulta formulada pelo Ministro de Estado da Previdência Social, consulta essa que, por força do artigo 1º, § 2º, da Lei nº 8.443/92, tem caráter normativo e constitui prejulgamento de tese. Eis o item 9.2.1 do Acórdão nº 170/2005, da Consulta TC-019.491/2004-4, do TCU:
9.2.1 a natureza do art. 1º da Lei nº 9.702/98 é a de um ‘poder-dever’, no sentido de que o INSS deve procurar alienar seus imóveis não-operacionais. Excepcionalmente, nos casos em que não for possível se fazer essa alienação pelos valores mínimos estabelecidos, fato que deverá ser devidamente demonstrado, o INSS pode promover a locação desses imóveis;
Dessa forma, enquanto a Lei nº 9.702/98 determina que o INSS aliene os bens imóveis de sua propriedade considerados desnecessários ou não vinculados às suas atividades operacionais, o Decreto-Lei nº 25/37 determina que as coisas tombadas, que pertençam à União, aos Estados ou aos Municípios, inalienáveis por natureza, só poderão ser transferidas de uma à outra das referidas entidades, configurando conflito aparente de normas.
No que tange às demais autarquias e fundações públicas, não se pode perder de vista o princípio constitucional da eficiência (artigo 37, caput), cujo “núcleo (…) é a procura de produtividade e economicidade e, o que é mais importante, a exigência de reduzir os desperdícios de dinheiro público, o que impõe a execução dos serviços públicos com presteza, perfeição e rendimento funcional.”10. Assim, embora inexista lei determinando a todas as autarquias e fundações públicas alienem todos os seus imóveis não operacionais e que essa alienação dependa de lei específica por força do artigo 17, I, da Lei nº 8.666/93, é contraditório proibir previamente a possibilidade de alienação dos imóveis tombados a particulares. Essa impossibilidade decorre da interpretação contrario sensu missão institucional de autarquias e fundações públicas em consonância com o princípio da eficiência.
Em outros termos, se a missão institucional da respectiva autarquia ou fundação pública não for “proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos” (artigo 23, III, da Constituição Federal de 1988), mesmo dependendo de prévia lei autorizativa, ela deverá alienar seus imóveis não operacionais porque a sua manutenção ocasionará despesa incompatível com as melhores técnicas de gestão exigidas na Administração Pública pelo princípio constitucional da eficiência.
A melhor doutrina refere que o conflito de normas sempre é aparente porque, aplicando-se as regras interpretativas, sejam as clássicas, positivistas ou pós-positivistas, o intérprete acabará concluindo pela incidência, isolada ou preponderante, de uma delas.
Com efeito, o artigo 11 do Decreto-Lei de regência foi extremamente claro ao fixar que “as coisas tombadas, que pertençam à União, aos Estados ou aos Municípios” não poderão se alienadas. Note-se que não houve referência à “Fazenda Pública” ou “Administração Pública”, expressões que englobam as demais pessoas jurídicas de direito público. Uma das regras basilares da interpretação é que a exceção deve ser interpretada restritivamente. O tombamento, na medida em que limita o direito constitucional à propriedade, é uma exceção; a inalienabilidade dos bens tombados também é uma exceção, já que a regra é a possibilidade de transferência do domínio, na medida em que o próprio Decreto-Lei autoriza expressamente a alienação dos bens de propriedade privada tombados (artigo 12). Nesse sentido, se o intérprete não está autorizado a ampliar o conteúdo da exceção, imperioso concluir que o artigo 11 do Decreto-Lei nº 25/37 não se aplica a autarquias e fundações públicas.
Especificamente em relação ao INSS, sob outro prisma, reclama aplicação a regra hermenêutica de que a lei especial incide em detrimento da lei geral. Note-se que o próprio Parecer nº 044/2010-PF/IPHAN/SEDE/GM sustenta que o Decreto-Lei nº 25/37 consiste em norma geral (item “c” da conclusão). Por outro lado, não há dúvida de que a Lei nº 9.702/98 é lei especial em relação aos imóveis do INSS, pois a sua ementa inclusive emprega o vocábulo “especiais” ao consignar que ela “dispõe sobre critérios especiais para alienação de imóveis de propriedade do Instituto Nacional do Seguro Social - INSS e dá outras providências.” Nessa senda, o conflito aparente de normas fica solucionado pela aplicação da lei especial, ou seja, pela aplicação do artigo 1º da Lei nº 9.702/98, que determina ao INSS a alienação dos “bens imóveis de sua propriedade considerados desnecessários ou não vinculados às suas atividades operacionais”.
Importante destacar que o legislador poderia ter excepcionado os imóveis tombados da ordem de alienação, mas não o fez. Em nenhum momento a Lei nº 9.702/98 pretendeu conservar na propriedade do INSS, sob qualquer título, “bens imóveis de sua propriedade considerados desnecessários ou não vinculados às suas atividades operacionais”. Essa opção legislativa pode ser extraída da exposição de motivos da Medida Provisória nº 1.707, de 30/06/1998, que lhe deu origem:
21. Excelentíssimo Senhor Presidente, tendo em vista a atual situação em que se encontra a Previdência Social e o déficit que se tem verificado no INSS temos que essa providência é de grande relevância e mesmo urgente, pois com ela se reduzirá notavelmente o custo operacional da instituição, que deixará de ocupar tempo e recursos da administração na manutenção destes bens, podendo direcioná-los para a sua atividade primordial, isto sem dizer no significativo acréscimo de receita que se poderá obter.11
Essa determinação legal nada mais é do que a observância de uma previsão constitucional, na medida em que o artigo 250 da Constituição Federal de 1988 dispôs que, “com o objetivo de assegurar recursos para o pagamento dos benefícios concedidos pelo regime geral de previdência social, em adição aos recursos de sua arrecadação, a União poderá constituir fundo integrado por bens, direitos e ativos de qualquer natureza, mediante lei que disporá sobre a natureza e administração desse fundo.”
O Fundo do Regime Geral de Previdência Social foi criado pela Lei Complementar nº 101/2000, conhecida como Lei de Responsabilidade Fiscal, que assim dispôs no seu artigo 68:
Art. 68. Na forma do art. 250. da Constituição, é criado o Fundo do Regime Geral de Previdência Social, vinculado ao Ministério da Previdência e Assistência Social, com a finalidade de prover recursos para o pagamento dos benefícios do regime geral da previdência social.
§ 1º O Fundo será constituído de:
I - bens móveis e imóveis, valores e rendas do Instituto Nacional do Seguro Social não utilizados na operacionalização deste;
(...)
§ 2º O Fundo será gerido pelo Instituto Nacional do Seguro Social, na forma da lei.
Nessa linha, apesar de os bens tombados terem a finalidade de conservar o patrimônio histórico e cultural do país, os bens imóveis do INSS não são um bem público qualquer, mas um bem público que já contém uma função social pré-definida por lei complementar (custear e garantir o pagamento do Regime Geral de Previdência Social). Sendo assim, negar a possibilidade de o INSS alienar os seus bens imóveis tombados a particulares é negar vigência ao artigo 68, § 1º, inciso I, da Lei Complementar nº 101/2000 e ao artigo 1º da Lei nº 9.702/98, ainda mais numa realidade que, em regra, não há órgãos públicos interessados na aquisição. Note-se, por pertinente, que não se está defendendo que o bem público do INSS não pode ser tombado para que se proteja o patrimônio histórico e cultural. Não é isso. Sustenta-se apenas a possibilidade de transferência da propriedade, mantidas as restrições do tombamento, a particulares.
O mesmo raciocínio se aplica às demais autarquias e fundações públicas, em especial porque os fundamentos do item 21 da exposição de motivos da Medida Provisória nº 1.707, de 30/06/1998, também se aplicam a elas. Essa, aliás, é a interpretação que prestigia a regra hermenêutica que exige a máxima eficácia das normas. Na verdade, a finalidade específica do Decreto-Lei nº 25/37 é conservar o patrimônio histórico e cultural do país. Por outro lado, a finalidade do Fundo do Regime Geral de Previdência Social é auferir recursos para o pagamento dos benefícios previdenciários, ao passo que as demais autarquias e fundações públicas têm missão institucional específica. Dessa forma, a insistência na interpretação de que o artigo 11 do Decreto-Lei nº 25/37 proíbe a Administração Pública Indireta de alienar seus bens imóveis tombados a particulares ofende o interesse público nas duas finalidades recém referidas.
Ora, se é fato público e notório que as contas do INSS e das demais autarquias e fundações públicas são deficitárias, já que o seu orçamento e as suas receitas são insuficientes para o cumprimento das suas missões institucionais, é evidente que não haverá recursos para obras de preservação e conservação dos seus imóveis tombados. Nesse diapasão, a interpretação que melhor atende ao interesse público, quiçá a única, é a que autoriza a alienação de imóveis tombados de propriedade de autarquias e fundações públicas a particulares, pois, como a transferência se dará com as restrições impostas pelo tombamento, o particular-adquirente saberá que a exploração econômica do bem deverá ser feita de modo a preservá-lo; ao mesmo tempo, as referidas pessoas jurídicas de direito público estarão auferindo receita para investirem na prestação de serviços públicos à população.
Mas não é só pelas já citadas regras de interpretação que as autarquias e fundações públicas ficam excluídas da incidência do artigo 11 do Decreto-Lei nº 25/37. A interpretação deste ato normativo com supedâneo na Constituição Federal de 1988 alcança idêntica conclusão. A União, os Estados e os Municípios, além de pessoas administrativas, são pessoas políticas, e esse é o motivo pelo qual os imóveis tombados - exclusivamente - de sua propriedade não poderão ser alienados a particulares.
Em verdade, a Constituição Federal de 1988 confere competência à União, aos Estados e aos Municípios para “proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos” e para “impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural” (artigo 23, incisos III e IV). Contudo, essa obrigação político-constitucional vem acompanhada do poder de produzir receitas para que a proteção do patrimônio artístico e histórico seja efetivada. Nesse ponto, somente União, Estados e Municípios - e não as autarquias e fundações públicas - têm o poder político-constitucional de instituir tributos (artigo 145) e de destinar recursos na elaboração da lei orçamentária (artigo 165 e ss.) para a manutenção, revitalização e restauração dos imóveis tombados.
Em outras palavras, o artigo 11 do Decreto-Lei previu a inalienabilidade a particulares dos imóveis tombados da União, dos Estados e dos Municípios, excluindo as autarquias e fundações públicas, porque o imóvel tombado na propriedade das pessoas políticas está no destino final previsto pela norma constitucional. Está na propriedade daquele que tem o dever constitucional de preservá-lo. Em posição totalmente contrária está o imóvel tombado na propriedade de uma autarquia ou fundação cujo mister institucional não é a proteção do patrimônio histórico e artístico, pois, se o particular tem o direito de definir como irá investir o seu dinheiro, podendo destinar todos os seus recursos para conservação de um imóvel tombado, as autarquias e fundações públicas têm a sua missão institucional e, em consequência, a destinação dos seus recursos definidas por lei.
Assim, a interpretação que proíbe a Administração Pública Indireta de vender seus imóveis tombados a particulares e que, em decorrência, dela exige a destinação dos seus insuficientes recursos para conservação do patrimônio artístico e cultural, em violação ao seu mister institucional, revela-se totalmente desarrazoada, e não encontra amparo no ordenamento jurídico.
3. Considerações finais
O instituto do tombamento, previsto expressamente na Constituição Federal de 1988, tem particular relevância para a sociedade brasileira, já que seu objetivo é preservar justamente o patrimônio histórico e artístico que permitiu ao povo brasileiro alcançar o nível cultural dos dias de hoje. Nesse sentido, as restrições impostas pelo tombamento devem, sim, ser respeitadas, sob pena de negativa de vigência à própria Constituição.
No entanto, na dúvida sobre a possibilidade de autarquias e fundações públicas alienarem seus imóveis tombados a particulares, a solução que melhor guarda coerência com o ordenamento jurídico brasileiro é a declaração de legalidade da alienação em questão. Não fosse o fato de o Decreto-Lei nº 25/37 não ter estendido às autarquias e fundações públicas a proibição de alienação dos seus imóveis tombados a particulares, cada pessoa jurídica de direito público tem uma missão institucional definida por lei, ou seja, pela mesma coletividade que o tombamento pretende resguardar.
Por esse motivo é que o Decreto-Lei de regência previu a inalienabilidade a particulares somente dos imóveis tombados da União, dos Estados e dos Municípios, excluindo as autarquias e fundações públicas. O imóvel tombado na propriedade das pessoas políticas está no destino final previsto pela norma constitucional. Está na propriedade daquele que tem o dever constitucional de preservá-lo, e que tem o poder político-constitucional de instituir tributos e de destinar recursos na elaboração da lei orçamentária para a manutenção, revitalização e restauração dos imóveis tombados.
Nesse diapasão, a interpretação que melhor atende ao interesse público é a que autoriza a alienação de imóveis tombados de propriedade de autarquias e fundações públicas a particulares, pois, como a transferência se dará com as restrições impostas pelo tombamento, o particular-adquirente saberá que a exploração econômica do bem deverá ser feita de modo a preservá-lo; ao mesmo tempo, as referidas pessoas jurídicas de direito público estarão auferindo receita para investirem na prestação de serviços públicos à população.
Notas
1 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 541.
2 Disponível em https://portal.iphan.gov.br/portal/montarPaginaSecao.do?id=11175&retorno=paginaIphan Acesso em: 14 out. 2013.
3 Processo administrativo federal nº 35366.000357/2010-11, p. 565-73.
4 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 4. ed. rev.e.ampl.. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 521.
5 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 27.ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 542-43.
6 GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 13.ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 872.
7 FURTADO, Lucas Rocha. Curso de direito administrativo. Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 828.
8 Ibidem, p. 820-21.
9 MAFFINI, Rafael. Direito administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 45.
10 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 21.ed.rev.amp.atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 28.
11 Disponível em: https://legis.senado.gov.br/diarios/BuscaPaginasDiario?codDiario=14316&seqPaginaInicial=1&seqPaginaFinal=1291. Acesso em: 14 out. 2013.