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O dever de fundamentação em procedimentos policiais

Agenda 26/04/2014 às 13:13

A fundamentação dos atos de polícia judiciária e a posterior conclusão de conformação com a legalidade garantem transparência e credibilidade à atuação policial.

1.Introdução: atividade investigativa e ônus ao investigado

A polícia judiciária, tradicionalmente, sempre foi vinculada a signos como armas, algemas, investigação, repressão. Esta é a visão que a sociedade e outras instituições sempre tiveram sobre a polícia investigativa.

Justamente pela parcial ideia de que as Polícias Civil e Federal apenas investigam fatos e segregam pessoas, talvez orientada pela limitada e tendenciosa publicidade feita por filmes, series e novelas - que alimentam o imaginário popular -, pouco ou quase nada se noticia a respeito de atos típicos de provocação de jurisdição que são realizados pelo Delegados de Polícia.

Entretanto, esta ótica, além de reducionista, não se conforma à realidade da atividade que é exercida pela polícia judiciária. Vários instrumentos utilizados na investigação devem seguir requisitos legais expressos no Código de Processo Penal, legislação especial e na Constituição Federal. Não obstante a lei 12.830/2013 e 12.850/2013 permitirem que algumas provas sejam buscadas diretamente pela Autoridade Policial mediante requisição de documentos e dados, é bem verdade que existem instrumentos investigativos que somente podem ser utilizados mediante prévia autorização judicial. Num e noutro caso, a necessidade e adequação das medidas pretendidas merecem uma análise jurídica sobre a adequação e necessidade.

A investigação policial, como atividade de constante busca de elementos de prova, produz intenso conflito (mas não, necessariamente, contradição solúvel pela exclusão) entre o poder de ingerência do Estado e as garantias individuais do cidadão. Esta tensão é comum e constante.

Mas o poder estatal é um poder regrado, balizado pela legalidade. Não há busca ilimitada de indícios a todo custo. Há regras, e estas, são garantias abstratas para todo aquele que ingressa no jogo procedimental. Evidentemente, a condução da investigação poderá trazer ônus para o suspeito, o que não pode ser feito de qualquer forma. E a melhor forma, segundo pensamos, é aquela que permite o direito de informação ao investigado (sem frustração de atos investigatórios) e o controle de legalidade pelo Poder Judiciário: o exercício da fundamentação.


2. Atos de constrangimento jurídico e o dever de fundamentar

Considerando o iter procedimental previsto no inquérito policial, a primeira Autoridade a decidir sobre a prisão de uma pessoa (em potencial situação de flagrância) é o Delegado de Polícia. Conduzidas as partes pelas polícias ou por qualquer do povo - o que constitui mera detenção -, caberá a análise da situação em concreto pela Autoridade Policial, a qual ordenará que o suspeito seja levado1 ao cárcere em razão da prisão em flagrante ou colocado em liberdade, se for o caso.

Este juízo acerca da liberdade ou não do indivíduo é complexo. Deve considerar a existência de indícios suficientes de autoria, prova da materialidade, situação configuradora de flagrante, tipicidade da conduta, possibilidade de concessão de liberdade mediante fiança, além da avaliação da necessidade de representação por medida cautelar de prisão ou outra que lhe seja diversa2.

Trata-se de um momento de extrema importância na medida em que a análise destas circunstâncias pode acarretar graves consequencias jurídicas para o conduzido. Após este juízo de delibação, o suspeito poderá ostentar a qualidade de investigado (o que já lhe causa constrangimento psicológico), ter sua liberdade restringida imediatamente e, caso receba liberdade provisória (com ou sem fiança), poderá ser atingido por medidas cautelares diversas da prisão.

Todas as possibilidades, portanto, trazem ônus a alguém que, por imperativo da Convenção Americana de Direitos Humanos e da Constituição Federal, é considerado inocente até decisão condenatória da qual não caiba mais recurso. Via de regra, todos os atos acima mencionados podem ser praticados desde logo na Delegacia de Polícia (após a condução de pessoas por membros das polícias ou por qualquer do povo), salvo quanto às medidas que deverão ser objeto de representação pela Autoridade Policial e analisadas pela Autoridade Judiciária.

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Entretanto, não apenas na avaliação da situação de flagrância que a Autoridade Policial pratica atos de constrangimento jurídico3. Durante o inquérito policial, é comum a possibilidade de representação por prisão temporária, prisão preventiva, interceptação telefônica, busca e apreensão, captação ambiental, entre outros, desde que demonstrada a implementação dos requisitos legais e, de forma geral, a adequação, necessidade e proporcionalidade das medidas postuladas.

Ocorre que o Delegado de Polícia, por ser agente público que exerce parcela de poderes conferidos pelo Estado, tem o dever de justificar seus atos de forma a garantir o controle e a idoneidade da forma como age. É dever que é imposto a todos os agentes estatais, os quais devem submeter todos os seus atos ao controle jurisdicional. O Estado que não efetiva instrumentos de autocontrole e que não fomenta a clareza e a publicidade da motivação dos atos que pratica, não pode ser considerado democrático e tende, de forma perigosa, à arbitrariedade.

É da essência dos Direitos Humanos e dos Direitos Fundamentais de primeira dimensão que o poder público se abstenha de praticar atos ilegitimamente invasivos. Esta legitimidade, assim, deve ser avaliada com o conhecimento das razões que motivaram o agente público a adotar uma ou outra decisão, a restringir ou não determinados direitos, bem como o tipo e a extensão da medida escolhida. E isto, gera, inexoravelmente, o dever de fundamentação.

Na Constituição Federal, o art. 93, IX dirige ao Magistrado o dever de fundamentar suas decisões. Este artigo, entretanto, não necessita de similar destinado à Autoridade Policial, pois ela, enquanto membro da Administração Pública, pratica atos administrativos regidos por um regime jurídico que lhe impõe a publicidade e motivação. Ainda, é válido resgatar a lição de que a motivação é citada como obrigatória em casos expressos do artigo 5.º da Lei 9784/994.

Neste contexto, analisar em qual circunstância a prisão em flagrante se adequa (hipóteses dos art. 301 e 302, CPP), em qual tipo penal a conduta se enquadra (fazendo-se a análise da tipicidade formal e material de forma comedida, sem excesso de linguagem para não prejudicar a opinião da Autoridade que presidirá o procedimento investigativo), representar pela conversão da prisão pré-processual em prisão cautelar ou por outra medida diversa da segregação, bem como conceder ou não fiança de forma fundamentada, são deveres do Delegado de Polícia.

A lei 12.830/2013 também exige que o relatório final - que redunde (ou não) em indiciamento - deverá ser feito de forma fundamentada, mediante análise técnico-jurídica do fato. Em essência, o dispositivo nada mais fez do que explicitar e sedimentar, em texto de lei, deveres já decorrentes do regime jurídico dos atos administrativos que são praticados por um agente público (Autoridade Policial) na condução de procedimento administrativo pela polícia judiciária.

Merece destaque a fundamentação dos atos pela Autoridade Policial, pois também contribui para que as medidas judiciais deferidas tenham suporte fático e jurídico baseados na realidade do inquérito policial. Isto evita que eventual pronunciamento judicial padeça de fundamentação perene, genérica ou sem lastro suficiente e, futuramente, venha a ser anulado pelas instâncias superiores. Como efeitos de decisões nulas citem-se a concessão de liberdade e anulação de todos os atos relacionados com a decisão judicial proferida, possibilitando até mesmo o reconhecimento da prescrição. Em suma: impunidade.


Alguns axiomas e uma breve conclusão

Estas anotações são importantes e nos permitem formular alguns axiomas sobre a atividade investigatória, o inquérito policial e as garantias fundamentais:

  1. Toda restrição a direitos deve ser fundamentada;
  2. A fundamentação dos atos praticados é corolário lógico da observância do Princípio da Legalidade;
  3. O Princípio da Legalidade é o que justifica os atos praticados por agentes públicos e, na presente análise, por Delegados de Polícia;
  4. Delegados de Polícia, alçados à condição de integrantes de uma carreira jurídica, devem fundamentar juridicamente suas decisões;
  5. A fundamentação dos atos de polícia judiciária e a posterior conclusão de conformação com a legalidade garantem transparência e credibilidade à atuação policial;
  6. A fundamentação dos atos permite amplo acesso ao Poder Judiciário aos investigados e Ministério Público e o respectivo controle de legalidade, o que maximiza a proteção das garantias fundamentais;
  7. A proteção dos direitos e garantias fundamentais durante os atos investigativos promovem a valorização de um instrumento persecutório que é muitas vezes desmerecido por doutrina e jurisprudência que o apontam como tendente à irregularidade, às vicissitudes, mas que, no entanto, “não contaminam” a ação penal;
  8. A fundamentação dos atos no inquérito permite maior suporte às decisões judiciais, impedindo que o pronunciamento do magistrado seja genérico e, posteriormente, anulado;
  9. A realização de atos dentro de uma legalidade publicizada e controlada garante provas colhidas validamente, importando, se for o caso, em condenações legítimas;
  10. Condenações legítimas tendem a salvaguardar a segurança pública, missão institucional das polícias judiciárias.

Assim, em uma ligeiríssima abordagem e com poucos exemplos, pretende-se afirmar que o caráter jurídico da atividade exercida pela Autoridade Policial lhe impõe certos deveres. Dentre eles, há o de fundamentar decisões no inquérito policial (desde a análise da situação de flagrância até o indiciamento e formulação de relatório final) nas situações geradoras de gravames ao investigado.

A atuação fundamentada possibilita um melhor controle de legalidade pelo Poder Judiciário, potencializando a regularidade e a respeitabilidade do inquérito policial. Crê-se que a satisfação do direito fundamental à segurança pública (no tocante à missão constitucional da polícia judiciária) concretiza-se, antes, com o respeito às garantias individuais, evitando que decisões administrativas e judiciais sejam anuladas e gerem concessão de liberdade, absolvição, impunidade e reincidência.


NOTAS

1 A Constituição Federal assevera que “ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória com ou sem fiança”, conforme artigo 5.º, inciso LXVI. – sem grifos no original

2 “Art. 319. São medidas cautelares diversas da prisão:

I - comparecimento periódico em juízo, no prazo e nas condições fixadas pelo juiz, para informar e justificar atividades;

II - proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações;

III - proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante;

IV - proibição de ausentar-se da Comarca quando a permanência seja conveniente ou necessária para a investigação ou instrução;

V - recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos;

VI - suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais;

VII - internação provisória do acusado nas hipóteses de crimes praticados com violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável (art. 26 do Código Penal) e houver risco de reiteração;

VIII - fiança, nas infrações que a admitem, para assegurar o comparecimento a atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial;

IX - monitoração eletrônica.

3 Por “constrangimento jurídico”, leia-se o ônus decorrente dos atos administrativos e investigativos que é imposto ao investigado. Decorre de atos legítimos e baseados no princípio da legalidade, mas que, no entanto, causam gravame ao suspeito.

4 Art. 5.º Os atos administrativos deverão ser motivados, com indicação dos fatos e dos fundamentos jurídicos, quando:

I – neguem, limitem ou afetem direitos ou interesses;

II – imponham ou agravem deveres, encargos ou sanções;

(...)

Sobre o autor
Thiago Solon Gonçalves Albeche

Delegado de Polícia no Rio Grande do Sul.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALBECHE, Thiago Solon Gonçalves. O dever de fundamentação em procedimentos policiais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3951, 26 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27931. Acesso em: 22 nov. 2024.

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