6. A CRISE DE REPRESENTATIVIDADE
A Democracia Representativa se torna a forma de governo que melhor encarna a participação do demos nas tomadas de decisão do Estado, pois a sua característica principal é fazer com que cada parcela da sociedade seja representada na administração política.
A democracia cresceu não pelo número de pessoas que votam, mas pelos espaços que a população passou a ter na governança e pela liberdade de circulação das pessoas nas mais variadas esferas sociais30. Não adiantaria ter um número gigantesco de pessoas com direito de voto se elas não pudessem transitar pelos espaços do governo para saber o que se passa. A transparência e a participação permitem aos cidadãos o controle dos seus governantes e segurança de estabilidade política.
O pensamento arendtiano afirma que a política promete ao povo a isonomia e promete, ainda, formar cidadãos com capacidades reflexivas a ponto de escolher de modo melhor seus governantes, pois a proposta da representação é justamente escolher alguém que possa o representar de forma a fazer valer as vontades dos que o elegem.
Na sociedade hodierna, há uma desconfiança em relação aos atores políticos, principalmente no que tange aos nossos políticos, por conta da não-eficácia de suas atividades executivas e parlamentares, que intermedia os interesses sociais junto ao Estado. De forma que os eleitores se sentem “cada vez menos representados por aqueles que elegeram”31.
Paralelamente a essa crise de representatividade, entendemos que ocorre cada vez mais a diminuição da legitimidade de autoridades, de representantes. A vontade popular fica sem saber a quem recorrer quando reconhece no poder estatal um espaço elitista, em que se defendem interesses privados e econômicos.
Portanto, para Hannah Arendt, a dominação política moderna, ou, então, a crise da representatividade encontra-se no nascimento do Estado-nação, onde se fecham os espaços de liberdade dos cidadãos, de agir conforme a pluralidade. Aparecendo novos comportamentos, segundo normas técnicas, que visam ao poder econômico com a maximização da produção e do trabalho. Há uma despolitização da sociedade e com ela, o “não-envolvimento” na discussão politica pelo povo (o maior interessado).
7. A DESOBEDIêNCIA CIVIL NA POLITICA BRASILEIRA
Se o contrato social brasileiro tem em si tendências mais verticais que horizontais, em um contrato social em que se elege um soberano com seus concidadãos que dele não podem dissentir, a desobediência civil neste contexto, perde seu solo e sentido? Antes de concluirmos tal coisa procederemos a algumas reflexões.
A lei é uma construção que fica a cargo do Poder Legislativo que é composto obedecendo aos princípios da representatividade, de onde se chega à precipitada conclusão de que, por isso, todos os cidadãos devem obedecer às leis, pois a elas aquiesceram quando escolheram seus representantes. A questão, portanto, repousa na legitimidade e na efetividade do regime representativo admitido por nossa Constituição. Segundo Teixeira:
um regime se diz representativo quando os governantes ou parte deles, exercem sua competência não em virtude de direito próprio, mas em razão de sua qualidade de representantes geralmente obtida mediante eleição e apenas por um certo prazo.32
Contudo, segundo assevera Maria Garcia, ideia a que nos apegamos plenamente, é que uma das características do mandato representativo na forma com que se pratica nos dias de hoje é a de um mandato imperativo, calcada basicamente na independência do representante em relação ao representado, têm suas faculdades indelegáveis e gozam de inúmeras imunidades no exercício de seus cargos. Para a autora, o que se constata, portanto, através da experiência e dos tempos é a insuficiência atual dos mecanismos para a proteção da cidadania: a representatividade apresenta engrenagens viciadas e é posta em dúvida a autenticidade da representação, a correspondência possível do eleitor-cidadão e de seu mandatário.33
A onipresente dicotomia entre a justiça e a segurança jurídica, entre a concepção dos valores objetivos de uma sociedade em um determinado tempo e a obediência e o funcionamento eficaz das leis positivas, deve, portanto pender para a primeira. Deve-se, sob pena de tiranização legal, encontrar um nicho constitucional para a defesa do cidadão contra o Estado e sua eventual opressão.
CONCLUSÃO
Nossa reflexão se baseou no aporte filosófico para análise do campo jurídico-politico. Este artigo, escrito no calor das manifestações que tomam nosso país34 e vêm ao encontro, de forma harmoniosa, com a questão da desobediência civil em Hannah Arendt.
Destarte, dentro do parâmetro traçado do paradigma do Estado clássico (hobbesiano) e da concepção de contestação civil em Hannah Arendt, a desobediência civil não só é legítima como um instrumento de luta contra um Estado ou outras forças de opressão que atentam contra os direitos e garantias inerentes à cidadania, como é necessária à atual horizontalização do contrato social brasileiro.
Devemos analisar o que a lei pode e o que ela não pode fazer. A desobediência civil é legítima, pois se encontra inserida no próprio conceito de cidadania que, como afirma Arendt, é o direito a ter direitos. Tendo como pontos basilares o modelo federativo de Estado e o exercício democrático do governo pelo Estado, que é de Direito, assim sendo, implica numa República que se constitui em Estado pela afirmação da cidadania como um dos seus fundamentos.
Se o cidadão é que constitui o Estado, pode ele contestar sua legitimidade por meio de um direito constante não de uma norma meramente exposta no art. 5.º e seus incisos, mas na abertura colocada no § 2.º, ou seja, existe uma legitimação para a desobediência civil e este é seu próprio fundamento: a cidadania.
A desobediência civil é também necessária por outro lado, pois é em sua possível existência no quadro político-social brasileiro que se procederá a uma autêntica horizontalização do contrato social.
Mais do que isso: é através do consenso real, que inclui o dissenso trazido pela desobediência civil, que se pode caminhar para uma autêntica possibilidade democrática, em se tratando de uma cultura brasileira enraizada em instituições sociais hostis.
A cultura, entretanto, é dinâmica e as possibilidades democráticas abertas pela Constituição Federal de 1988 devem ser levadas à plenitude, sob pena de se tornar “mais uma” forma de se propor mudanças por meio de tecnicidades de leis sem eficácia alguma, que servem apenas como orientações vagamente piedosas, o que, até então, parece estar se sucedendo desde os tempos do Império.
É certo que vivemos um momento de desconfiança em relação à classe política do país, principalmente por nos sentirmos cada vez menos representados por aqueles que elegemos, fazendo com que, embora tenhamos uma Constituição cidadã, que vislumbra direitos e garantias fundamentais da democracia, estamos apáticos e indiferentes às decisões politicas por conta de um desinteresse histórico em participar da política.
Todavia, a existência da desobediência civil no universo político e jurídico brasileiro justamente no sentido de proporcionar a tão esperada vigência e eficácia da nossa Constituição Federal de 1988, poderá ser o instrumento para fazer valer os preceitos estampados no texto constitucional, tendo a cidadania como fundamento deste Estado Democrático de Direito.
Hannah Arendt demonstrou que somente a repolitização da sociedade, por meio de reivindicações populares, pode trazer uma cultura política mais participativa, criando, assim, novos espaços públicos de discussão e de ação política.
Certamente a política ainda tem muito que avançar, buscar um molde que melhor se encaixe e que agrade o maior número possível de pessoas, mas, também, é possível observar que a democracia representativa já conquistou grandes feitos, com os espaços públicos se tornando, cada vez mais, propriedade do povo, onde podem se expressar e fazer valer seus direitos.
Por fim, inobstante o radicalismo de mensurar nossa apatia e indiferença às decisões políticas e atribuir tais características a um desinteresse histórico em particular da política, devemos também refletir que tal desinteresse, as vezes, é mais contextual do que histórico. Visto que, não podemos esquecer que a juventude sempre participou da política brasileira, desde os primórdios com os “jovens abolicionistas”, dos levantes contra os governos oligárquicos da Primeira República (Forte de Copacabana, o movimento tenentista, a Coluna Prestes etc.), passando pela atuação da União Nacional dos Estudantes que é presença importante na vida política e social do país, além dos diversos movimentos de vanguarda que pegaram em armas para lutar contra o Governo Militar nas décadas de 60/70.
Essa juventude não só se interessava por política, como pretendeu mudar a sociedade e, certamente, nossa Constituição Federal de 1988, com todas as suas garantias sociais fundamentais, é inequívoco reflexo desta luta.
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Notas
1 ARENDT, Hannah. Desobediência Civil IN Crises da República. São Paulo: Perspectiva, 1993, p. 49-90
2 Henry David Thoreau (1817/1862) foi um autor estadunidense, ativista anti-impostos, crítico da ideia de desenvolvimento, no ensaio Desobediência Civil faz defesa da desobediência civil individual como forma de oposição legítima frente a um estado injusto. Influenciou o pensamento político e ações de personalidades notáveis como Liev Tolstói e Martin Luther King, Jr. É por vezes citado como um anarquista individualista, ainda que por vezes ambicione por melhorias no governo, mais do que sua abolição a direção desta melhoria é que ambiciona o anarquismo: "’O melhor governo é aquele que não governa;' então os homens estarão preparados para isso, este será o tipo de governo que eles terão.” (Thoreau, H. D. Resistance to Civil Government)
3 ARENDT, Hannah. Desobediência Civil. IN Crises da República. São Paulo: Perspectiva, 1999, p. 52.
4 Circunstância jurídica também possível no ordenamento jurídico brasileiro.
5 op. cit., p. 52.
6 ARENDT, Hannah. Desobediência Civil. IN Crises da República. São Paulo: Perspectiva, 1999, p. 55.
7 G1, Brasil. Linha do tempo das manifestações, 16 de junho de 2013. Disponível em: http://g1.globo.com. Consulta em: 05 set 2013
8 G1, Ibidem.
9 FOLHA de S. Paulo. Protesto em São Paulo é o maior desde manifestação contra Collor, 17 de junho de 2013. Disponível em> http://www1.folha.uol.com.br. Consulta em: 05 set 2013.
10 R7. Brasil. Manifestações agradam a 84% dos brasileiros, diz pesquisa Ibope, 06 de julho de 2013. Disponível em: http://noticias.r7.com. Consulta em: 05 set 2013.
11 UOL. Brasil. Dilma diz que receberá líderes de protestos e propõe pacto para melhorar transporte, educação e saúde. 21 de junho de 2013. Disponível em: http://noticias.uol.com.br. Consulta em: 05 set 2013.
12 R7. Brasil. Após protestos, Dilma anuncia Plano Nacional de Mobilidade Urbana, 21 de junho de 2013. Disponível em: http://noticias.r7.com. Consulta em: 05 set 2013.
13 REVISTA CONSULEX. Violência Urbana. São Paulo: Consulex, n.º 4, de 30 de abril de 1997, p. 24-25.
14 ARENDT, Hannah. op.cit., p. 64.
15 Cf. a análise de Celso Lafer sobre os liames críticos das principais obras da autora no prefácio de ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. São Paulo: Perspectiva, 1997, p. 9-27
16 ARENDT, Hannah. O que é Política? – Fragmentos das Obras Póstumas Compilados por Úrsula Ludz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999, p. 38
17 ARENDT, Hannah. Desobediência Civil. IN Crises da República. São Paulo: Perspectiva, 1999, p. 68.
18 Conceito utilizado pelo sociólogo Zyhmunt Bauman para identificar a sociedade atual, extraído da obra “Modernidade Líquida” (Tradução: Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2003). Decorrendo da modernidade da sociedade que avança em vários sentidos, porém, questionável em suas atitudes e o seu contexto enquanto sociedade. A liquidez, a qual Bauman propõe vem do fato que os líquidos não têm uma forma, ou seja, são fluídos que se moldam conforme o recipiente nos quais estão contidos, diferentemente dos sólidos que são rígidos e precisam sofrer uma tensão de forças para moldar-se a novas formas.
19 ARENDT, Hannah. Desobediência Civil. IN Crises da República. São Paulo: Perspectiva, 1999, p. 75.
20 Alguns críticos de Arendt, especialmente marxistas, ignoram o teor desta crítica fundamental de Arendt ao contratualismo e individualismo de matiz moderno.
21 op. cit., p. 55.
22 LOPES, Andre Luiz. “Noções gerais do Estado: roteiro de estudos”, Escola Superior Dom Helder Câmara. Belo Horizonte, 2010.
23 Celebrado entre Deus e o povo por intermédio das leis reveladas às quais se deve obediência irrestrita. Típico do convênio bíblico de Moisés e do povo hebreu.
24 Celebrado entre os homens, que renunciam a todos os direitos e poderes para estabelecer uma autoridade secular para garantir principalmente segurança e proteção. Reivindica para esta autoridade o monopólio de poder em benefício dos que estão submetidos a ele. Também chamado de variante de Hobbes.
25 Versão do pacto social que guia não o governo, mas notadamente a própria sociedade. Feito o pacto entre os indivíduos é que se estabelece um contrato de governo. Portanto, o governo é regido pelo pacto social e não o contrário. É chamado por Arendt também de variante de Locke.
26 ARENDT, Hannah. Desobediência Civil. IN Crises da República. São Paulo: Perspectiva, 1999, p. 79.
27 ARENDT, Ibidem, p. 87.
28 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 32
29 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 180.
30 Entendimento extraído da leitura de BOBBIO, Norberto. O Futuro da democracia. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 40.
31 Santos, Boaventura de Sousa (org.), Democratizar a Democracia: os caminhos da democracia participativa, Porto, Afrontamento, 2003, p. 32.
32 TEIXEIRA, José Horácio Meirelles. Curso de Direito Constitucional. São Paulo. Forense, 1991, p. 487.
33 GARCIA, Maria. Desobediência Civil - Direito fundamental. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, p.131.
34 foram várias manifestações populares por todo o país que inicialmente surgiram para contestar os aumentos nas tarifas de transporte público, principalmente em Natal Salvador, Recife, Belo Horizonte, Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro e que ganharam grande apoio popular após a forte repressão policial contra as passeatas, levando grande parte da população a apoiar as mobilizações. Atos semelhantes rapidamente começaram a se proliferar em diversas cidades do Brasil e do exterior em apoio aos protestos, passando a abranger uma grande variedade de temas, como os gastos públicos em grandes eventos esportivos internacionais, a má qualidade dos serviços públicos e a indignação com a corrupção política em geral.