Resumo: O objetivo do presente trabalho é discutir o pensamento de Hannah Arendt, dissertando acerca da desobediência civil na sociedade brasileira. Para o desenvolvimento deste estudo, o método foi o interpretativo, com procedimento de análise do material de pesquisa, ou seja, trata-se de um estudo bibliográfico, cuja trajetória metodológica percorrida funda-se nas leituras explorativas de alguns autores. Veremos que a pensadora propõe alguns questionamentos sobre a desobediência civil em debate organizado pelo Foro de Nova Iorque em 1970 e ao mesmo tempo busca explicações esclarecedoras, presente na obra Crises da República, que servirá, basicamente, como supedâneo deste trabalho.
Palavras-chave: desobediência civil, sociedade, política, Brasil.
Sumário: INTRODUÇÃO; 1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE O ENSAIO DE HANNAH ARENDT; 2 AS RECENTES MANIFESTAÇÕES NO BRASIL; 3 A PERDA DA AUTORIDADE DA LEI: OS DESMANDOS E A VIOLÊNCIA; 4 AS MUDANÇAS SOCIAIS; 5 O CONTRATO SOCIAL; 5.1 O CONTRATO SOCIAL NO BRASIL; 6 CRISE DE REPRESENTATIVIDADE; 7. DESOBEDIÊNCIA CIVIL NA POLITICA BRASILEIRA; CONCLUSÃO; REFERÊNCIAS.
INTRODUÇÃO.
Pode-se falar atualmente em descrença diante das ações dos agentes políticos que ocupam as diversas instâncias do Estado. Esta condição leva estudiosos à pesquisa acerca de uma crise de representatividade.
Em 1970, na cidade de Nova Iorque, Hannah Arendt participava de um simpósio, cujo título era “A morte da lei”. Propôs ali, uma perspectiva bastante original sobre as questões então suscitadas, discorrendo sobre a relação da lei e da moral em uma sociedade de consentimento1.
Inicialmente, lançou algumas perguntas sobre o tema do simpósio, questionando o motivo de seu título “sombrio”. Seria a crueldade das modernas tiranias que minavam a fé dos cidadãos em relação à lei, ou o fato de a desobediência civil ter se mostrado bastante eficaz para ativar processos de mudança na lei? Suas considerações buscam explicações esclarecedoras, e são elas que compõem o ensaio Civil Disobedience, publicado em 1973, em uma coletânea de seus escritos intitulada “Crises da República”.
Analisaremos neste artigo cientifico os principais pontos e aspectos inovadores na teoria clássica sobre a desobediência civil e as contribuições possíveis deste ensaio à política brasileira, refletindo sobre a desobediência civil em nossa sociedade, associando o pensamento de Hannah Arendt e a Constituição Federal de 1988, tendo como pano de fundo, o atual cenário político, a crise de representatividade na politica e as recentes manifestações ocorridas no Brasil.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE O ENSAIO DE HANNAH ARENDT.
Ao iniciar o debate, a pensadora ironiza o fato de Sócrates e Thoreau2 serem considerados como os paradigmas mais recorrentes da contestação civil, tanto de juristas quanto dos próprios contestadores.
Segundo ela, a desobediência civil implícita no pensamento destes filósofos é a alegria dos juristas3 pois, se interpretada superficialmente, sugere que a desobediência a uma norma legal só pode ser justificada caso o contestador aceite e esteja ansioso para receber a pena por seu ato. Isto marca um retrocesso nas interpretações de Sócrates, que mais adiante trata de criticar.
A aceitação deste argumento se deve à possibilidade existente no sistema de leis dos Estados Unidos de serem incompatíveis uma lei federal e outra lei estadual4. Neste impasse, segundo os juristas, a contestação se daria na ação de um indivíduo que testasse a constitucionalidade de uma lei sujeitando-se à pena pelo seu descumprimento.
Testando a constitucionalidade de uma lei, o contestador seria então impelido a constituir um direito decorrente de sua “desobediência”, resultando no casamento infeliz da moralidade com a legalidade na relação entre a consciência e a lei. Segundo Hannah Arendt, no campo teórico a defesa desta ideia é ingênua, pois o contestador civil que viola uma lei somente com o intuito de testar sua constitucionalidade é "apenas perifericamente, se tanto, a condição de contestador civil"5.
Em seguida, a autora trata da razão dos teóricos do assunto ainda estarem longe de sair da obscuridade na compreensão do fenômeno. De um lado, associam o contestador civil do objetor de consciência, aquele que faz uma objeção ou exceção de consciência, recusando-se por exemplo, a participar do serviço militar obrigatório alegando motivos morais ou religiosos. E de outro lado, associam-no ao indivíduo que tenta violar uma lei para testar sua constitucionalidade.
O motivo do obscurantismo teórico é que o contestador civil não tem analogia com nenhum daqueles, pois não pode ser visto exclusivamente como um indivíduo, mas como membro de um grupo que tem interesses comuns.
Apenas quando é membro de um grupo é que pode o contestador levar a cabo a desobediência indireta, ou seja, quando o contestador viola uma lei não por achá-la injusta, mas para contestar uma outra ação ou política governamental. Ao contrário da desobediência direta, que é quando o contestador viola uma lei para atacar o conteúdo apenas da lei que viola. A autora define assim a natureza dos grupos de contestação civil:
(...) são, na verdade minorias organizadas, delimitadas mais pela opinião comum do que por interesses comuns, e pela decisão de tomar posição contra a política do governo mesmo tendo razões para supor que ela é apoiada pela maioria; sua ação combinada brota de um compromisso mútuo, e é este compromisso que empresta crédito e convicção e opinião, não importando como a tenham originalmente atingido.6
É justamente este outro tipo de desobediência que não pode ser praticada nem pelo objetor de consciência, nem pelo indivíduo que quer testar a constitucionalidade de uma lei.
2. AS RECENTES MANIFESTAÇÕES NO BRASIL
O ano de 2013 certamente será lembrado como um ano de repercussão no cenário político brasileiro, ocorreram várias manifestações populares por todo o país, organizadas através das redes sociais, principalmente pelo Movimento Passe Livre (MPL), focadas, inicialmente, em contestar os aumentos nas tarifas de transporte público, passando a contar com massiva participação popular, surgindo, então, novas exigências em pauta. Marcado para o dia 17 de junho, uma segunda-feira, cerca de 300 mil brasileiros saíram às ruas para protestar em 12 cidades espalhadas pelo Brasil7.
No dia 20 de junho, as manifestações tomam outro caráter, e começam a ter temas menos focados na questão do transporte, como: a PEC 37 (Projeto de Emenda Constitucional que restringe o poder de investigação do Ministério Publico) e PEC 33 (visa submeter as decisões do STF ao controle pelo Congresso Nacional), "cura" gay, ato médico, gastos com a Copa das Confederações FIFA de 2013 e com a Copa do Mundo FIFA de 2014, melhoria nos serviços públicos e, principalmente, o fim da corrupção.
Houve um pico inacreditável de mais de 1,4 milhão de pessoas nas ruas com mais de 120 cidades pelo Brasil8, mesmo depois das reduções dos valores das passagens anunciadas em várias cidades. Foram, sem duvida, as maiores mobilizações no país desde as manifestações pelo impeachment do presidente Fernando Collor de Mello em 19929 , e tiveram aprovação de pelo menos 84% da população.10
Em resposta, o governo brasileiro anunciou várias medidas para tentar atender às reivindicações dos manifestantes11 e o Congresso Nacional votou uma série de concessões, como ter tornado a corrupção como um crime hediondo, arquivamento da PEC 37 e proibição do voto secreto em votações para cassar o mandato de legisladores acusados de irregularidades. Houve também a revogação dos aumentos das tarifas nos transportes em várias cidades do país.
No dia 21 de junho de 2013, a presidenta do Brasil, Dilma Roussef, faz pronunciamento ao povo brasileiro prometendo conversar com prefeitos e governadores para realizar um pacto de melhoria dos serviços públicos e a criação de um Plano Nacional de Mobilidade Urbana. Prometeu, ainda, destinar 100% do dinheiro dos royalties do petróleo à educação, a trazer médicos estrangeiros para ampliar o atendimento do SUS e a se encontrar com os líderes das manifestações12.
Entre os “efeitos dos protestos”, além do amplo debate acerca da qualidade e melhoria da saúde, educação e transportes públicos, destaca-se a proposta de reforma política e combate à corrupção com a criação de um plebiscito para que uma assembleia constituinte exclusiva para isto seja criada.
3. A PERDA DA AUTORIDADE DA LEI: OS DESMANDOS E A VIOLÊNCIA.
A perda da autoridade mesma, incluindo a autoridade da lei que é apenas um subtipo da autoridade social, seja ela religiosa, secular ou política, é um fato notório em várias partes do mundo, incluindo os EUA conforme acentua Arendt.
No Brasil, podemos afirmar que esta perda da autoridade da lei se mostra principalmente no estado de violência urbana que já dominou o cotidiano de todas as grandes cidades e invade a cada dia o interior do país e na corrupção generalizada que mantém e se alimenta do caos urbano gerado pela violência permanente, objeto, inclusive, de recentes manifestações que tomaram todo o país.
O Constitucionalista Manoel Gonçalves Ferreira Filho, ao tecer comentários sobre as causas da violência urbana, afirma que:
o problema da criminalidade é outro é o aumento da criminalidade violenta, chamada violência urbana. É evidente que o aumento da criminalidade tem numerosas causas. Causas econômicas, causas sociais, mas tem também outras causas que não são freqüentemente apontadas, por exemplo: as causas políticas e as causas morais. Quando eu falo de causas morais, no aumento da criminalidade, estou me referindo ao fato de que hoje existe uma crise na formação dos jovens, decorrente de valores tradicionais conseqüencia daquela moralidade que era, no passado, considerada intocável, que era imposta a todos, ‘do lar à escola’, como é a famosa expressão e, obviamente, servia de freio para as atitudes que essas pessoas iam tomar. Houve como que um esquecimento, isto foi posto de lado e, em nome da liberdade, se deixou à margem a importância dessa formação moral para que o indivíduo se comporte dos modos condizentes com a vida social. É ingenuidade, é mesmo tolice, supor que a polícia ou mesmo o Estado, podem impor a ordem e, na verdade, isto tudo mostra que 80% das pessoas não se comportam de acordo com a lei, tornando-se inviável para as forças policiais impor o respeito a essa lei. Por exemplo, tenho visto em matéria política quando o Governo, apoiado pelo Exército, pela polícia, etc., acaba por deixar o Poder no momento em que a sua legitimidade é contestada por uma porcentagem muito grande da população.13
A crise mencionada pelo jurista, a qual atribui uma conotação moral, é chamada por Hannah Arendt, ao contrário, de crise da desintegração dos sistemas políticos que causam uma progressiva erosão da autoridade governamental14.
É, portanto, uma crise das possibilidades públicas de realização da sociedade muito mais do que uma crise da moral ocasionada pela liberdade moderna, como cita o jurista, data venia, de forma ingênua.
O trabalho teórico de Hannah Arendt, portanto, contrário ao que expõe Manoel Gonçalves Ferreira Filho não vê liberdade alguma em uma sociedade onde não há motivos críveis para identificar-se o indivíduo com as normas e leis sociais, onde prevalece a incapacidade de realização de uma verdadeira política, que há uma realização do homem no espaço público, preservando sua individualidade e diferenciando-a dos acontecimentos da esfera pública de relações; onde o homem pode construir-se publicamente entre os outros homens.
Esta incapacidade, sentida no mundo moderno em sua plenitude, segundo Arendt demonstrou de várias maneiras em suas obras15, é justamente a impossibilidade da liberdade. Nos fragmentos póstumos, Hannah Arendt afirma que: "O sentido da política é a liberdade"16. Desta forma, “estar na pólis” e ser-livre são sinônimos. A visão jurídica contida na declaração de Ferreira Filho, coloca o oposto. Para ele, a liberdade consiste nas faculdades e possibilidades de realização do indivíduo isoladamente, atomicamente.
Destarte, esclarecer esta questão foi uma das preocupações de Hannah Arendt especialmente quando publicou A Condição Humana. Pois faz uma longa reflexão sobre a gênese da divisão entre as esferas públicas e privadas no decorrer da história e na implicação destas divisões na constituição da sociedade e nas possibilidades de liberdade abertas por esta.
Voltando ao ensaio, notamos que a autora afirma que, em um ambiente de permissividade social, o indivíduo mais pacato pode se tornar um sádico homicida. Crimes que este apenas pensaria em cometer, nestes ambientes e situações de permissividade e impunidade, passariam para a prática inevitavelmente.
Não concorda, porém, que a desobediência civil incita o comportamento criminoso. De forma alguma. Há um abismo que separa o contestador civil e o criminoso, garante ela.
O contestador age quando "um número significativo de cidadãos se convence de que, ou os canais normais para mudanças já não funcionam, e que as queixas não serão ouvidas nem terão qualquer efeito, ou então, pelo contrário, o governo está em vias de efetuar mudanças e se envolve e persiste em modos de agir cuja legalidade e constitucionalidade estão expostas a graves dúvidas."17
Já os que cometem crimes, mesmo quando agem em grupo, buscam um benefício necessariamente individual e, seus atos buscam sempre o escondido, o soturno, enquanto que o contestador busca a praça pública, o espaço amplo de discussão.
4. AS MUDANÇAS SOCIAIS
A transformação é inerente à condição humana, embora aconteça de formas diferentes em cada civilização. Na contemporaneidade, ou na pós-modernidade18, em que o mundo parece se configurar e se desconfigurar por várias vezes durante a vida, não se eliminou a necessidade de estabilidade sentida por todos os homens, pois nem a necessidade de mudanças nem a de estabilidade podem ser ilimitadas. Em toda forma de civilização deve haver uma estrutura estável consistente para que ocorram mudanças realmente significativas e a lei tem o papel de assegurar esta estrutura de estabilidade.
Neste mundo de constantes mudanças, a lei parece uma força repressora e negativa que contraria a positividade da sociedade, seus anseios de mudança acelerada. A relação entre lei e mudança é colocada desta forma: a lei faz parte do processo civilizatório e tem legitimidade na medida em que decorre de um movimento inerente à sociedade politicamente constituída.
É justamente enquanto vox populi que a lei pode ser imposta à sociedade de forma legítima. Ela apenas reflete uma mudança que é extra-legal, advinda do seio da própria sociedade. Assim, a lei não tem a capacidade de modificar a vida da sociedade.
De acordo com o exame de fatos históricos, as mudanças efetivas em relação à segregação racial nos estados sulistas dos EUA, por exemplo, apesar de serem constitucionalmente reguladas há quase cem anos, somente tiveram efetividade após lutas de resistência e desobediência civil por parte das minorias negras. É neste contexto que a desobediência civil adquire grande importância no cenário político atual.
Destarte, a tarefa de se encontrar um nicho constitucional para a desobediência civil é "tão importante, talvez, quanto a descoberta, há quase duzentos anos, da constitutio libertatis."19 O compromisso do cidadão com as leis advém primordialmente do fato deste ter supostamente sido o legislador ou ter dado consentimento a este por meio de processos formais. Sendo assim, o homem, quando se sujeita à lei não se sujeita a uma vontade alheia, mas a uma vontade a que ele próprio aquiesceu, e, sendo assim, é senhor e escravo de si mesmo. Esta foi a solução de Rousseau e de Kant para o problema do compromisso.
Arendt critica esta posição pela simples razão de que ela retorna ao indivíduo, em seu foro íntimo de consciência, o conflito original entre os interesses subjetivos e o bem comum20. Em última análise, podemos apontar este como o ponto primordial dos argumentos em prol da obediência irrestrita à lei.
O argumento é um só: nós devemos obedecer à lei, pois vivemos em uma democracia e nos foi dado o direito de votar. Acontece que é exatamente este direito das maiorias, assevera a autora, este "sufrágio universal em eleições livres, como sendo uma base suficiente para a democracia e uma pretensão de liberdade pública, que está sob ataque."21
No regime representativo, o sufrágio é o processo legal para escolha dos representantes do povo no exercício das funções eletivas. Ou seja, é o meio pelo qual o povo designa as pessoas que devem governar em seu nome como seus representantes. Também significa “a participação do indivíduo na vida do Estado, demonstra não só o seu interesse pelos destinos da sociedade política a que pertence, como é ainda a concretização do seu direito a se fazer ouvir”22.
É elemento fundamental do Estado contratualista, vez que a sociedade é o produto de um acordo de vontades, um contrato hipotético celebrado entre os homens, onde estes transferem mutuamente direitos, que é cumprido por temor às normas. Hannah Arendt conceituou de forma singular a teoria contratualista.
5. O CONTRATO SOCIAL
Segundo a autora, havia três tipos diferentes de contratos sociais, a saber: contrato teocrático23, contrato vertical24 e contrato horizontal25. O terceiro tipo de contrato, conforme Arendt, limita a ação do indivíduo, mas mantém intacto o poder da sociedade. Institui então o governo sobre o firme terreno de um contrato anterior entre os membros da sociedade.
Este contrato tem a enorme vantagem de ligar os membros da sociedade em uma relação recíproca de reconhecimento, na qual os indivíduos são mantidos unidos pela força das promessas mútuas e não pela homogeneidade étnica, reminiscências históricas ou pelo Leviatã hobbesiano que a todos intimida, e pelo medo os une.
Assim, ao contrário das outras versões do contrato, o horizontal é o único em que o consentimento não é apenas uma ficção sem correlato na realidade. Segundo a autora, este é o argumento mais recorrente, a saber "o consentimento à Constituição, o consensus universalis, implica em consentimento às leis estatutárias também, pois no governo representativo o povo também ajudou a fazê-las." Tal consentimento, contudo, segundo ela, "(...) é completamente fictício." 26
E no mais, no atual momento perdeu toda a plausibilidade, pois o sistema de governo representativo está em crise. Em primeiro lugar porque perdeu todas as possibilidades práticas da participação real do cidadão no governo ao longo do tempo e em segundo lugar porque não representa ninguém mais além da burocrática máquina dos partidos.
Não se trata de uma apologia acrítica. A autora é consciente dos perigos que são trazidos pela desobediência civil, mas estes perigos não são maiores do que os perigos inerentes ao direito à livre associação. Já finalizando o ensaio, Arendt resume suas objeções ao debate sobre a desobediência civil:
O maior erro do presente debate, a meu ver, a suposição de que estamos tratando com indivíduos que se colocam subjetivamente e conscientemente contra as leis e costumes da comunidade – suposição esta que é partilhada pelos defensores e detratores da desobediência civil. O caso é que estamos tratando com minorias organizadas, que se levantam contra maiorias supostamente inarticuladas, embora nada ‘silenciosas’. E eu considero inegável que estas maiorias tenham mudado em ânimo e opinião num grau espantoso, sob pressão das minorias. (...) Quanto a isto, talvez tenha sido lamentável que nossos debates tenham sido dominados em larga escala por juristas – advogados, juízes e outros homens da lei – pois para eles deve ser particularmente difícil reconhecer o contestador civil como membro de um grupo, ao invés de vê-lo como um transgressor individual e, assim, um réu em potencial da corte 27
Todo Estado desenvolve sua complexa atividade que têm aspectos jurídicos e político, pois, toda fixação de regras de comportamento se prende a fundamentos e finalidades, enquanto que a permanência de meios orientados para certos fins depende de sua inserção em normas jurídicas, assim, reduz-se a margem de arbítrio, assegurando a existência de limites jurídicos à ação do Estado.
Enquanto sociedade política, voltada para fins políticos, o Estado participa da natureza política, que convive com a jurídica, ocorrendo uma interação entre elas. O caráter político do Estado é que lhe dá a função de coordenar os grupos e indivíduos em vista de fins a serem atingidos, impondo a escolha dos meios adequados.
5.1. O CONTRATO SOCIAL NO BRASIL
Após análises do texto de Hannah Arendt, podemos apreender que o contrato social vertical obriga cada cidadão mais ao poder laico e secular do que uns aos outros.
O governo civil, nesta versão de pacto social é o poder que se alça para além dos interesses individuais inconciliáveis para exercer, de cima, o poder e a força plena sobre os indivíduos que, saídos de um selvagem estado de natureza, reclamam por um poder superior que os regule. Sendo este poder superior a todos os envolvidos, regulando-os de cima, daí o termo vertical.
É cediço que o pensador que representa esta versão do contrato social e que, de uma forma direta é o teórico que o respalda, é Thomas Hobbes, em sua principal obra política, o Leviatã.
Sérgio Buarque de Holanda inicia seu livro mais importante, “Raízes do Brasil”, mencionando a principal característica do povo brasileiro que, segundo ele, herdamos dos povos ibéricos: a cultura da personalidade individual. Diferentemente de seus vizinhos europeus os portugueses e espanhóis desenvolveram ao extremo o "valor próprio da pessoa humana, a autonomia de cada um dos homens em relação aos semelhantes no tempo e no espaço” 28.
Para ele, o único valor verdadeiramente plausível ao homem é inferido onde este não precise dos demais, onde sozinho se baste e não necessite dos outros. Esta característica foi engrandecida pela poesia, recomendada pela moral e sancionada pelo estado, é a razão maior da fraqueza e da insuficiência das formas de organização social dos ibéricos. Assim, os valores ancorados apenas no mérito pessoal e nas responsabilidades individuais sempre foram dominantes na vida cultural brasileira.
Esta inaptidão política fundamental resulta na existência de um contrato social com tendências fortemente direcionadas para a versão vertical na vida política brasileira. Fato este que explicaria, de certa forma, a tendência autoritária onipresente na história do Brasil e sua constante recaída em ditaduras autoritárias.
Retomando o tema no último capítulo, Buarque de Holanda, após propor a superação do conflito entre o liberalismo e o caudilhismo no Brasil, afirma que: "essa vitória nunca se consumará enquanto não se liquidem, por sua vez, os fundamentos personalistas e, por menos que o pareçam, aristocráticos, onde ainda assenta nossa vida social”29.
O contrato social no Brasil possui tendência a ser predominantemente vertical pela inaptidão do povo e da cultura em estabelecer espaços políticos onde se construa o que Arendt chamava de pensamento plural. Esta experiência advém exatamente do oposto ao que Buarque de Holanda apresenta como as características mais presentes nos povos ibéricos e que foi legada aos brasileiros: a adoração à personalidade humana autônoma.
Identifica-se o fim desta desventura cultural que minou a possibilidade de maiores mobilizações sociais e políticas e da sociedade como um todo, entregando sempre o país todo em poucas mãos e quando não nas mãos de ditaduras, ao fim destas formas arcaicas de sobrevivência e ao advento de uma democracia real.
Quando olhamos para o Leviatã de Hobbes notamos que ele nasce justamente da impossibilidade dos contratantes em estabelecer, entre eles mesmos, quem e de que forma se dará o governo civil. É aí que surge o poder acima destes que os regularão independentemente de suas vontades e consentimento.
Na terra de barões, como afirmou Buarque de Holanda, onde todos são cultores de uma personalidade individual e de regalias da vida privada abastada, e de onde é difícil distinguir entre o público e o privado apenas um poder temido por todos pode estabelecer a ordem. O medo e o terror são as alavancas fundamentais das engrenagens que o Leviatã põe em movimento. Surge então, na constituição histórica brasileira, sua predisposição à versão vertical do contrato social.