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Transferência do poder de polícia às entidades privadas da Administração Pública segundo os Tribunais Superiores

Agenda 06/08/2014 às 15:45

Análise da jurisprudência do STJ e do STF acerca da possibilidade de delegação das atividades estatais típicas aos entes privados da Administração Pública.

A questão referente à delegabilidade, ou não, do exercício do poder de polícia às entidades privadas integrantes da Administração Pública indireta (notadamente, empresas públicas e sociedades de economia mista) é tema de discussão na jurisprudência pátria, tendo já chegado à apreciação dos Tribunais Superiores.

No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, destaca-se o julgamento proferido em 10 de novembro de 2009 no bojo do Recurso Especial nº 817.534/MG, quando foi debatida a possibilidade de sociedade de economia mista exercer atividades relativas ao poder de polícia na esfera de trânsito.

Nessa ocasião, a Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça, interpretando a legislação infraconstitucional incidente na matéria – calcada em dispositivos da Lei nº 9.503/97, que institui o Código de Trânsito Brasileiro, e da Lei nº 6.404/76, que trata das sociedades por ações –, assentou o entendimento de que tais atividades abrangeriam quatro espécies de atos, quais sejam, legislação, consentimento, fiscalização e sanção, das quais apenas a primeira e a última não seriam passíveis de serem delegadas às entidades privadas integrantes da Administração Pública indireta. Ou seja, as atividades referentes ao consentimento e à fiscalização de trânsito poderiam ser exercidas por empresas públicas e sociedades de economia mista, sendo vedada às mesmas, contudo, a delegação de atos relativos à aplicação de multas e, evidentemente, à legislação em matéria de trânsito.

Com isso, aproximou-se o Superior Tribunal de Justiça da orientação dominante da doutrina brasileira, firmada no sentido da delegabilidade do poder de polícia a entidades privadas componentes da Administração Pública indireta.

A fim de facilitar a compreensão do julgado acima mencionado, transcreve-se a seguir a ementa do acórdão proferido:

ADMINISTRATIVO. PODER DE POLÍCIA. TRÂNSITO. SANÇÃO PECUNIÁRIA APLICADA POR SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. IMPOSSIBILIDADE.

1. Antes de adentrar o mérito da controvérsia, convém afastar a preliminar de conhecimento levantada pela parte recorrida. Embora o fundamento da origem tenha sido a lei local, não há dúvidas que a tese sustentada pelo recorrente em sede de especial (delegação de poder de polícia) é retirada, quando o assunto é trânsito, dos dispositivos do Código de Trânsito Brasileiro arrolados pelo recorrente (arts. 21 e 24), na medida em que estes artigos tratam da competência dos órgãos de trânsito. O enfrentamento da tese pela instância ordinária também tem por conseqüência o cumprimento do requisito do prequestionamento.

2. No que tange ao mérito, convém assinalar que, em sentido amplo, poder de polícia pode ser conceituado como o dever estatal de limitar-se o exercício da propriedade e da liberdade em favor do interesse público. A controvérsia em debate é a possibilidade de exercício do poder de polícia por particulares (no caso, aplicação de multas de trânsito por sociedade de economia mista).

3. As atividades que envolvem a consecução do poder de polícia podem ser sumariamente divididas em quatro grupos, a saber: (i) legislação, (ii) consentimento, (iii) fiscalização e (iv) sanção.

4. No âmbito da limitação do exercício da propriedade e da liberdade no trânsito, esses grupos ficam bem definidos: o CTB estabelece normas genéricas e abstratas para a obtenção da Carteira Nacional de Habilitação (legislação); a emissão da carteira corporifica a vontade o Poder Público (consentimento); a Administração instala equipamentos eletrônicos para verificar se há respeito à velocidade estabelecida em lei (fiscalização); e também a Administração sanciona aquele que não guarda observância ao CTB (sanção).

5. Somente os atos relativos ao consentimento e à fiscalização são delegáveis, pois aqueles referentes à legislação e à sanção derivam do poder de coerção do Poder Público.

6. No que tange aos atos de sanção, o bom desenvolvimento por particulares estaria, inclusive, comprometido pela busca do lucro - aplicação de multas para aumentar a arrecadação.

7. Recurso especial provido.

(STJ, REsp 817.534/MG, Segunda Turma, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, julgado em 10/11/2009, DJe 10/12/2009) (sem grifos no original)

Cabe anotar que, após a prolação do acórdão acima citado, o Superior Tribunal de Justiça, em 25 de maio de 2010, julgou embargos de declaração opostos em face da aludida decisão. Na oportunidade, foi ratificada a conclusão anterior no sentido da possibilidade de entidade privada exercer o poder de polícia no seu aspecto fiscalizatório, mas não na sua faceta punitiva. O novo julgamento restou assim ementado:

PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. OMISSÕES INEXISTENTES. CONTRADIÇÃO CARACTERIZADA. (ADMINISTRATIVO. PODER DE POLÍCIA. TRÂNSITO. SANÇÃO PECUNIÁRIA APLICADA POR SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. IMPOSSIBILIDADE.)

1. Nos aclaratórios, sustenta a parte embargante que existem vícios a serem sanados no acórdão combatido, a saber: (i) omissão acerca da regra de competência, a qual imputa o processamento e o enfrentamento da presente causa ao Supremo Tribunal Federal (incompatibilidade entre lei local em face de lei federal); (ii) omissão acerca das regras constitucionais de balizamento da matéria de fundo (possibilidade de sociedade de economia mista exercer a atividade de controle de trânsito ante à inexistência de vedação constitucional no ponto); e (iii) contradição existente entre o provimento final do acórdão (provimento integral do especial) e sua fundamentação, na qual restou afirmada a possibilidade de a embargante exercer atos relativos a fiscalização.

2. Em relação ao item (i), tem-se que o acórdão da origem apreciou apenas a tese jurídica – possibilidade de delegação de poder de polícia para particulares – com base em diversos dispositivos de lei local, lei federal e da própria CR/88, mas jamais entendeu que a lei específica de delegação (lei local) era válida em face de lei federal. Trechos do acórdão da origem.

3. É possível, e isso é de cotidiana percepção pelos magistrados que integram o STF e o STJ, que um provimento judicial de última instância adote, simultaneamente, argumentos de ordem constitucional e infraconstitucional.

4. Daí ser igualmente possível o manejo (autônomo e simultâneo) de recurso especial e de recurso extraordinário, sem que se possa dizer que o julgamento do especial importa em usurpação de competência do Supremo Tribunal Federal.

5. O que se tem, nesses casos, é uma competência cindida para apreciação de matérias distintas: o STJ aprecia a alegada ofensa à legislação infraconstitucional federal e o STF aprecia as questões de sua competência.

6. Na espécie, entendeu-se que o art. 24 do CTB permitia a delegação do poder de polícia para particulares.

7. Tal tese encontra-se, pois, no âmbito da legislação infraconstitucional, pois envolve a correta extensão do conteúdo de norma integrante de diploma normativo federal – norma cuja mal interpretação importaria ipso facto na ofensa a legislação infraconstitucional. Cabível, portanto, o recurso especial, com base no art. 105, inc. III, “a”, da CR/88.

8. Não fosse isso bastante, a regra consubstanciada no art. 237 da Lei nº 6.404/76 autoriza concluir acerca da impossibilidade da transferência do poder de polícia para particulares. Esta foi a conclusão adotada no voto-vista proferido pelo Min. Herman Benjamin.

9. Fácil perceber, nesta esteira, que o âmbito de atuação do STJ deu-se nos estritos limites de sua competência, interpretando unicamente a legislação infraconstitucional (dispositivos do CTB e da Lei nº 6.404/76).

10. Uma tese de reforço: a rigor, os votos que fundamentaram o acórdão da Corte Superior sequer fizeram menção à lei local - limitaram-se a discutir a possibilidade de delegação de poder de polícia a particular. Então, não houve nenhum juízo de validade acerca da lei local.

11. Mesmo que não houvesse lei local específica, as teses vencedoras nesta instância especial seriam exatamente as mesmas, o que bem demonstra que não houve a dita incursão em competência do STF.

12. Bem, além da incidência dos arts. 7º e 24 do CTB, a origem, é bem verdade, discutiu a possibilidade de delegação de serviços públicos a particulares, com base no art. 175 da CR/88, bem como a competência municipal para gerir os serviços públicos locais (art. 30 da Lei Maior). Neste ponto, cabível a interposição do extraordinário (a propósito: o Ministério Público estadual protocolou mesmo o extraordinário).

13. Em suma: a origem conclui pela possibilidade de delegação do exercício do poder de polícia para sociedades de economia mista com base no alcance e conteúdo (i) dos arts. 22, 30 e 175 da CR/88 e (ii) dos arts. 7º e 24 do CTB. Não se julgou válida lei local em confronto com lei federal, mas apenas e tão-só definiu parâmetros de interpretação de lei federal e de normas constitucionais. Assim, uma parte dos argumentos enfrentava especial; a outra parte, extraordinário. Neste contexto, o julgamento do especial não implica usurpação da competência do Supremo Tribunal Federal.

14. No que tange ao item (ii), é pacífica a jurisprudência desta Corte Superior no sentido de que não cabem embargos de declaração para que o STJ enfrente matéria constitucional, ainda que para fins de prequestionamento, sob pena de usurpação da competência do Supremo Tribunal Federal. Precedentes.

15. Finalmente, no que diz respeito ao item (iii), assiste razão à embargante.

16. Tanto no voto condutor, como no voto-vista do Min. Herman Benjamin, ficou claro que as atividades de consentimento e fiscalização podem ser delegadas, pois compatíveis com a personalidade privadas das sociedades de economia mista.

17. Nada obstante, no recurso especial, o pedido do Ministério Público tinha como objetivo impossibilitar que a parte embargante exercesse atividades de policiamento e autuação de infrações, motivo pelo qual o provimento integral do especial poderia dar a entender que os atos fiscalizatórios não podiam ser desempenhados pela parte recorrida-embargante.

18. Mas, ao contrário, permanece o teor da fundamentação e, para sanar a contradição, é necessária a reforma do provimento final do recurso, para lhe dar parcial provimento, permitindo os atos de fiscalização (policiamento), mas não a imposição de sanções.

19. Embargos de declaração parcialmente acolhidos, com efeitos modificativos, para dar parcial provimento ao recurso especial, no sentido de que permanece a vedação à imposição de sanções pela parte embargada, facultado, no entanto, o exercício do poder de polícia no seu aspecto fiscalizatório.

(STJ, EDcl no REsp 817534/MG, Segunda Turma, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, julgado em 25/05/2010, DJe 16/06/2010) (sem grifos no original)

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No Supremo Tribunal Federal, por sua vez, a decisão paradigmática sobre a matéria em foco foi exarada em 07 de novembro de 2002, quando da apreciação da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.717/DF. Nesse julgamento, decidiu-se pela indelegabilidade de atividades típicas de Estado – como o exercício do poder de polícia – a entidades privadas. A ementa do acórdão apresenta o seguinte teor:

DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 58 E SEUS PARÁGRAFOS DA LEI FEDERAL Nº 9.649, DE 27.05.1998, QUE TRATAM DOS SERVIÇOS DE FISCALIZAÇÃO DE PROFISSÕES REGULAMENTADAS. 1. Estando prejudicada a Ação, quanto ao § 3º do art. 58 da Lei nº 9.649, de 27.05.1998, como já decidiu o Plenário, quando apreciou o pedido de medida cautelar, a Ação Direta é julgada procedente, quanto ao mais, declarando-se a inconstitucionalidade do "caput" e dos § 1º, 2º, 4º, 5º, 6º, 7º e 8º do mesmo art. 58. 2. Isso porque a interpretação conjugada dos artigos 5°, XIII, 22, XVI, 21, XXIV, 70, parágrafo único, 149 e 175 da Constituição Federal, leva à conclusão, no sentido da indelegabilidade, a uma entidade privada, de atividade típica de Estado, que abrange até poder de polícia, de tributar e de punir, no que concerne ao exercício de atividades profissionais regulamentadas, como ocorre com os dispositivos impugnados. 3. Decisão unânime.

(STF, ADI 1.717, Plenário, Rel. Min. Sydney Sanches, julgado em 07/11/2002, DJ 28/03/2003) (sem grifos no original)

Não obstante o julgamento acima mencionado, ainda pende de decisão no âmbito do Supremo Tribunal Federal a viabilidade, ou não, de transferência do poder de polícia às empresas públicas e sociedades de economia mista, que, embora caracterizadas como pessoas jurídicas de direito privado, integram a Administração Pública indireta, não podendo, assim, ser tratadas como simples particulares. Isso porque tal ponto não foi abordado, de forma específica, na decisão anteriormente citada, que se limitou a declarar a indelegabilidade do poder de polícia às entidades privadas de modo geral.

De fato, não há, até o momento, decisão de mérito sobre o tema no Supremo Tribunal Federal. O único precedente localizado refere-se a um provimento liminar, deferido nos autos da Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.310, posteriormente extinta sem exame de mérito. Nessa decisão, exarada em 19 de dezembro de 2000, concluiu-se não ser possível o desempenho de poder de polícia administrativa por empregados públicos celetistas – condição que caracteriza justamente os funcionários de empresas públicas e sociedades de economia mista –, denotando, com isso, possível entendimento negativo do Supremo Tribunal Federal, à época, quanto à delegabilidade desse poder a entidades privadas integrantes da Administração Pública.

Recentemente, contudo, tal tema foi novamente trazido à tona no bojo do Recurso Extraordinário com Agravo nº 662.186/MG, tendo o Supremo Tribunal Federal proferido decisão cuja ementa segue reproduzida a seguir:

DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. APLICAÇÃO DE MULTA DE TRÂNSITO POR SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. PODER DE POLÍCIA. DELEGAÇÃO DOS ATOS DE FISCALIZAÇÃO E SANÇÃO A PESSOA JURÍDICA DE DIREITO PRIVADO.

(STF, ARE 662.186/MG, Plenário, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 22/03/2012, DJe-180 12/09/2012, publicado em 13/09/2012)

Observa-se, pois, que foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, em 12 de setembro de 2012, a existência de repercussão geral da matéria, face à necessidade de verificação da observância dos limites impostos à delegação do exercício do poder de polícia à luz do disposto no art. 24 do Código de Trânsito Brasileiro (Lei nº 9.503/97) e no art. 30 da Constituição Federal.

O Superior Tribunal de Justiça, como já visto, sinalizou pela possibilidade de delegação da fiscalização, mas não quanto à atividade sancionatória (naquele caso também foi vedada a delegação da atividade legislativa).

Assim, por ocasião do julgamento final do indigitado recurso, que ainda se encontra pendente, caberá ao Supremo Tribunal Federal pronunciar-se expressamente acerca da possibilidade, ou não, de transferência do poder de polícia às entidades privadas integrantes da Administração Pública indireta.

Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEZZOMO, Renato Ismael Ferreira. Transferência do poder de polícia às entidades privadas da Administração Pública segundo os Tribunais Superiores. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4053, 6 ago. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29130. Acesso em: 18 dez. 2024.

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