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Da não representatividade do Estatuto do Nascituro à legalização do aborto

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Legalização do aborto

O aborto consiste na interrupção da gestação prematura do embrião ou feto, tal processo pode ocorrer de modo induzido ou espontâneo. A maior parte das pessoas que não concorda com o aborto induzido, possui tal convicção por acreditarem que abortar um feto/embrião em “vias de ser criança” é uma prática moralmente condenável, corresponderia a um verdadeiro homicídio. Para Dworkin (2003) há uma confusão em torno do debate sobre o aborto, na sua obra “Domínio da Vida – aborto, eutanásia e liberdades individuais”, o autor busca demonstrar o conflito em torno do tema e os motivos de tal prática ser desaprovada.

A confusão que, acredito, tem envenenado a controvérsia pública sobre o aborto, [...] é a confusão entre esses dois tipos de razões para acreditar que o aborto é frequentemente, quando não sempre, moralmente errado. A exaltada retórica do movimento “pró-vida” parece pressupor a afirmação derivativa de que um feto já é, desde o momento de sua concepção, uma pessoa em sua plenitude moral, [...] Muito poucas pessoas, porém – mesmo aquelas que pertencem aos grupos mais radicalmente antiaborto –, realmente acreditam nisso [...]. A divergência que realmente divide as pessoas é uma divergência bem menos polarizada sobre o melhor modo de respeitar uma ideia fundamental que quase todos compartilhamos de alguma forma: que a vida humana individual é sagrada. (DWORKIN, 2003, p. 15)

Há, portanto, duas vertentes do problema uma que Dworkin chama de derivativa e outra autônoma, a primeira acredita que o feto deve ser protegido e que tem direito à vida por ser uma pessoa, enquanto que a outra vertente acredita que a vida tem um valor em si mesmo, por isso que destruir uma vida é considerado moralmente errado. O que ele pretende é apontar que a discussão principal envolvendo o aborto não é saber se o feto/embrião é ou não uma pessoa, tendo assim direitos e garantias, para ele as pessoas discordam da prática abortiva por compreenderem que a vida é sagrada, termo utilizado aqui não somente numa perspectiva religiosa, mas para evidenciar que a vida tem um valor intrínseco.

Um exemplo de que o discurso predominante é, realmente, mais autônomo do que derivativo são as exceções abertas para a realização do aborto em determinados casos, como quando a gestação é proveniente de estupro ou quando a mãe sofre risco de vida. Tais exceções são incompatíveis com a ideia de que o feto tem direito a vida, elas demonstram o contrário, que a vida possui um valor e que nestes casos a vida da mãe é mais importante que a futura vida do feto.

Mas, o mais importante a se perceber é que adotar uma visão autônoma, de que a vida é sagrada e afirmar que a gestante tem o direito de decidir sobre realizar ou não o aborto, não implica numa contradição, pois tal concepção é antes uma ideologia carregada de preceitos morais. Agora, permitir que essa concepção moral seja imposta a todo e quaisquer indivíduo, seria, sim, recair em contradição, visto que vivemos num Estado Democrático de Direito em que as liberdades individuais devem prevalecer sobre os discursos ideológicos. Uma mulher que se vê obrigada a carregar em seu ventre um feto não desejado tornaria-se uma escrava do Estado e isto seria incorrer em tirania. Contrariando, portanto, a própria Constituição que assegura a todos o direito à liberdade.

A decisão de ter ou não um filho é, constitucionalmente, uma decisão que compete à esfera privada de cada um, não cabendo ao Estado intervir neste assunto retirando o direito da mulher de decidir sobre seu próprio corpo, ou melhor, sobre sua própria vida. Dizer, no entanto, que a escolha compete ao campo privado não exime o Estado de garantir assistência médica as optantes pelo aborto, visto que a saúde é um direito fundamental.

A discussão entre direito a vida, direito a proteção dos interesses do feto versus o direito de autonomia feminina, é na realidade, um embate aparente. Não há que se falar em interesse do feto, não há como determinar o interesse de algo por vício de recair numa regressão infinita, isso permitiria argumentos absurdos como o de que ao usar preservativo o casal estaria afetando o interesse do óvulo e do espermatozoide de realizar a fecundação. Só é possível se falar em interesse quando existe consciência, o que ocorre segundo estudos científicos somente após se passar mais da metade do período de gestação quando as ligações nervosas estão completamente formadas e o feto já possui a sensação de dor (DWORKIN, 2003, p.22), daí a importância de se regularizar o aborto para que este aconteça nos momentos iniciais da gestação, tanto para proteger a mãe quanto para não afetar a possível sensibilidade do feto.

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Há aqueles, no entanto, que defendem que não basta a sensibilidade do feto, é preciso que este possua consciência de si próprio, de sua existência é o caso do filósofo norte- americano Tooley que acredita que

ter o direito à vida [...] é ter o direito de continuar a existir enquanto sujeito de experiências e de outros estados mentais. Para se ter esse direito, acrescenta, é preciso ter a capacidade de desejar continuar a existir enquanto sujeito desse gênero. (GALVÃO, p.2)

José Afonso da Silva constitucionalista brasileiro defende o direito à vida proferido na constituição a partir de uma dimensão biográfica. “Vida no texto constitucional (art. 5º, caput), não será considerada apenas no seu sentido biológico de incessante auto-atividade funcional, peculiar à matéria orgânica, mas na sua acepção biográfica mais compreensiva” (2005, p.197). Esta dimensão implica que tal direito é atribuído a um ser consciente de si e do mundo, que possui história de vida, ser individuado perante o Direito positivo.

Para além desta discussão de natureza filosófica e moral é preciso ainda a verificação de dados fáticos, estatísticos que demonstram que a atuação proibicionista do aborto não resulta na sua expressa diminuição quantitativa, mas sim num desrespeito às mulheres de classes mais pobres que são excluídas do acesso a saúde. A criminalização do aborto, que é seletiva, gera, portanto, resultados mais desastrosos do que a sua legalização, pois não impede que os abortos sejam realizados clandestinamente. Recentemente a própria ONU – Organização das Nações Unidas – cobrou uma resposta do Brasil sobre a criminalização do aborto, recomendando o fim da legislação que promove penalidades a prática abortiva, inclusive tecendo críticas ao projeto do Estatuto do Nascituro[6].

O Estado brasileiro precisa tratar o Aborto como um problema de saúde público, a sua proibição leva a abortos inseguros e consequentemente ao aumento da mortalidade feminina. Não há no Brasil dados precisos que demonstrem a quantidade de abortos induzidos realizados dentro de um determinado período de tempo, isto ocorre devido à extensão do país, assim como pela falta de dados, uma vez que, somente os abortos que geraram complicações chegam aos “ouvidos” do sistema de saúde. No entanto, em 2010 foram apresentados resultados da Pesquisa Nacional de Aborto (PNA) que demonstram a média geral de mulheres brasileiras urbanas que já realizaram aborto induzido durante suas vidas, segundo os dados apresentados cerca de metade destes abortos geraram alguma complicação médica que poderia ter sido evitado se não houvesse a criminalização.

A PNA indica que o aborto é tão comum no Brasil que, ao completar quarenta anos, mais de uma em cada cinco mulheres já fez aborto. Tipicamente, o aborto é feito nas idades que compõem o centro do período reprodutivo feminino, isto é, entre 18 e 29 anos, e é mais comum entre mulheres de menor escolaridade, fato que pode estar relacionado a outras características sociais das mulheres de baixo nível educacional (DINIZ; MEDEIROS, 2010, p.6).

A pesquisa comprova que a lei penal não é um instrumento impeditivo para o aborto, assim como não o será o Estatuto do Nascituro. É preciso atentar-se aqui ao princípio da razoabilidade, que nos serve como uma diretriz de interpretação da constituição, segundo Luís Roberto Barroso (2010). Tal princípio implica na atribuição de valores como justiça, racionalidade e proporcionalidade, isso significa que as medidas tomadas pelo Estado devem ter um benefício superior às perdas que ela promove. A legislação brasileira que trata sobre o aborto desconsidera veemente este princípio, ao passo que, ao proteger o feto ela gera danos maiores a vida de diversas mulheres, principalmente daquelas que possuem baixa renda e que não tem acesso aos direitos básicos garantidos constitucionalmente.

A legalização do aborto, portanto, não fere nenhum direito constitucional de proteção à vida, a sua regulamentação busca, na realidade, promover tal direito, garantindo a possibilidade de escolha das mulheres sobre sua própria vida e seu livre desenvolvimento sem a intervenção de preceitos morais, promovendo o acesso a um aborto legal e seguro, permitindo ainda a existência de um Estado Laico e Democrático que respeita a liberdade de seus cidadãos.


Pluralismo Jurídico e Movimentos feministas

Quando tratamos da discussão da regulamentação do aborto na esfera legislativa é importante que identifiquemos os sujeitos políticos e sociais que participam dessa discussão polêmica. Geralmente, essa discussão é protagonizada por uma zona de conflito bem explícita. De um lado estão aqueles que são desfavoráveis ao aborto, capitaneado, principalmente, por grupos religiosos através de iniciativas contínuas e bem estruturadas, inclusive com uma atuação bastante incisiva no parlamento e na mídia. E de outro lado, uma construção de opinião pública favorável ao aborto que é demandada por vários sujeitos políticos e sociais, e não somente pelo movimento feminista.

O debate sobre o aborto sempre foi presente no Congresso Nacional. Em 1995, ano da Conferência Mundial sobre a Mulher, o deputado pernambucano Severino Cavalcanti deu entrada em uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC/95) para incluir, na Constituição, o direito à vida desde a concepção. Em outras palavras, assim como quer o Estatuto do Nascituro, a proposta pretendia proibir o aborto em qualquer circunstância. Apesar de ampla articulação da bancada evangélica e da bancada católica, essa proposta foi derrotada.

A provocação do debate a respeito do aborto a partir da proposta desta PEC influenciou no ano seguinte, a discussão sobre o Projeto de Lei 20/91, que versava sobre a obrigatoriedade de atendimento pelo SUS nos casos de aborto previstos por lei. Em 1997, após uma longa batalha, a PL 20/91 foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça, porém, ainda hoje é pauta de difícil aprovação, visto a grande articulação dos parlamentares da bancada religiosa. Exemplo atual desse tipo de situação é o projeto da Deputada Iara Bernardi (PT-SC) que tem sido duramente atacado pela bancada religiosa, acusado de abrir “brechas” para ao aborto quando prevê a “profilaxia da gravidez” [7]. Acontece que o projeto apenas trata da prevenção à gravidez nas primeiras 72 horas depois do ato sexual violento, como já é previsto em lei.

Esse tipo de resistência imposta pelos parlamentares de bancadas mais conservadoras a projetos desse tipo, só mostra como os direitos das mulheres estão ainda mais suscetíveis ao fundamentalismo religioso e a questões morais dos parlamentares. É contrária à opinião pública e à vontade do povo que projetos como o Estatuto do Nascituro sejam aprovados. Ou que projetos como o proposto pela Deputada Iara Bernardi sejam negados. Isso pode ser aferido a partir da pesquisa realizada pelo Ibope Opinião em julho de 2003 sob encomenda da Comissão de Cidadania e Reprodução (CCR) [8].

De acordo com a pesquisa: 1) seis em cada dez brasileiros são contrários à proibição do aborto; 2) 63% dos brasileiros não querem retrocesso da atual legislação; 3) a maioria (53%) apoia o aborto legal vigente; 4) 10% querem ampliar a permissão do aborto. Outro dado curioso da pesquisa, é que se selecionarmos as amostras a partir de alguns critérios como a região onde os entrevistados moram (urbana ou rural) ou pelo nível de escolaridade, veremos que a taxa de pessoas favoráveis ao aborto legal vigente e a sua ampliação chega a mais de 70%. Isso significa que, quanto mais informados e mais preparados para a questão, maior o apoio ao aborto legal e maior é a quantidade de pessoas favoráveis à ampliação da legislação para a permissão do aborto.

Um ponto tocado na pesquisa que vai de encontro diretamente com a falta de correspondência entre a vontade do povo e os seus representantes no que é proposto pelo Estatuto do Nascituro é que de acordo com o levantado, os brasileiros seguidores de alguma religião, são, em sua maioria, favoráveis ao "não-retrocesso" da legislação sobre o aborto: 63% dos católicos, 53% dos evangélicos, 65% dos que adotam outras religiões e 70% de religiosos não-seguidores, a exemplo do movimento de mulheres ‘Católicas pelo direito de decidir’. Esses dados demonstram, portanto, que as lideranças religiosas que pregam no parlamento a proibição do aborto em qualquer circunstância (ainda que de maneira tácita) estão distantes da opinião dos seguidores de diversas religiões.

Nesse sentido, constatamos que além de todos os abusos legais e principiológicos, o projeto de lei nº 478 carece de aceitação, não garantindo sequer, maioria de opinião acerca do assunto nos setores mais conservadores da sociedade. Como dito acima, vários são os sujeitos políticos e sociais que se colocam junto a luta pela legalização do aborto e a não-criminalização das mulheres, tendo o movimento feminista como grande vanguarda dessa pauta.

A decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF nº54 como também o debate progressista que temos hoje no campo dos direitos humanos marca um avanço no campo dos direitos reprodutivos no Brasil. Ao abordar os movimentos sociais como fonte de produção jurídica, Wolkmer assim coloca:

o ponto de partida para a constituição e o desenvolvimento do Direito vivo comunitário não se prende nem à legislação, nem a ciência do Direito e tampouco à decisão judicial, mas às condições da vida cotidiana, cuja real eficácia apoia-se na ação de grupos associativos e organizações comunitárias. Nesse quadro de referência, as "vontade coletivas" organizadas, utilizando-se de práticas sociais que instrumentalizam suas exigências, interesses e necessidades, possuem a capacidade de instituir "novos" direitos, direitos ainda não contemplados e nem sempre reconhecido pela legislação oficial do Estado. (WOLKMER, 2001, p.153)

Não há duvidas de que a criminalização do aborto acaba levando todo ano milhares de mulheres no Brasil, sobretudo as mais humildes, a se submeterem a procedimentos clandestinos perigosos, realizados sem a mínima condição de segurança e higiene. E as consequências desses procedimentos abortivos representa uma das maiores causas de mortalidade materna no país, tirando a vida de muitas mulheres que poderiam ser poupadas caso houvesse a legalização. E é por violar diretamente o direito a saúde, autonomia e a liberdade da mulher, que os movimentos feministas se articulam e levantam suas bandeiras em favor da legalização. Pois é justamente quando

as regras formais clássicas de legitimidade e os arranjos institucionais liberal-burgueses tornam-se inapropriados para canalizar e processar uma grande diversidade de demandas inerentes às sociedades de massa, que os movimentos sociais inauguram um estilo de política pluralista assentado em práticas não-institucionais e autossustentáveis, e nele avançam, buscando afirmar identidades coletivas e promovendo um lócus democrático, descentralizado e participativo. (WOLKMER, 2001, p.139)

A luta das mulheres atravessou muitas gerações em busca de igualdade e de proteção dos seus direitos fundamentais. O direito de não ser propriedade do marido, de educar-se, de votar e ser votada, de ingressar no mercado de trabalho, da liberdade sexual. E quanto ao aborto, cabe a mulher, e não ao Estado, analisar valores e sentimentos de ordem estritamente privada para deliberar pela interrupção ou não da gravidez. A luta pela não criminalização das mulheres que cometem ato abortivo, faz parte da luta histórica do movimento feminista de garantir o direito da mulher de autodeterminar-se, de escolher e de agir com a sua própria vontade.  Assinala Wolkmer que é a partir desse protagonismo por parte dos movimentos sociais, que representam interesses cotidianos concretos e necessidades históricas, que surge uma nova concepção de juridicidade, não mais identificada somente pela dogmática.

Sobre os autores
Keuelanne Alves Carvalho

Graduanda em Bacharelado em Direito UFPI.<br>Integrante do Corpo de Assessoria Jurídica Estudantil – CORAJE.<br>Voluntária do Programa de Ensino Tutorial - Integração.<br>Estagiária do Ministério Público do Piauí.

Marcelo Raimundo de Souza Filho

Acadêmico de Direito da UFPI Integrante do Projeto Cajuína - Centro de Assessoria Jurídica Popular de Teresina.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARVALHO, Keuelanne Alves; FILHO, Marcelo Raimundo Souza. Da não representatividade do Estatuto do Nascituro à legalização do aborto. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4089, 11 set. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29568. Acesso em: 22 dez. 2024.

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